David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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Uma noite alucinante ou fuga de cães raivosos

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Escaparam pelo portão de uma casa e vieram correndo no meu encalço como duas crianças famintas

Percorri mais cem metros e notei um automóvel se aproximando vagarosamente na Rua Getúlio Vargas (Foto: David Arioch)

Percorri mais cem metros e notei um automóvel se aproximando vagarosamente na Rua Getúlio Vargas (Foto: David Arioch)

Houve uma época da minha vida em que eu caminhava todos os dias no mesmo horário, e não para me exercitar, mas somente para espairecer ou refletir. Andar diariamente 10 quilômetros ou até mais no final da tarde ou início da noite me ajudava a ter boas ideias e também a me desligar de tudo que não me interessava naquele momento. Em síntese, era uma excelente forma de manter o equilíbrio.

Na realidade, era imprescindível, já que eu passava muito tempo em frente ao computador produzindo textos e lendo. Então havia dois horários do dia que eram sagrados para me manter longe de qualquer máquina. De manhã, por volta das 5h50, quando eu ia à academia, e após às 17h ou 18h. Eu nunca carregava o telefone celular comigo, hábito que mantenho até hoje.

Conforme eu andava, tentava captar a boa essência ao meu redor, principalmente o aroma sinestésico e verdejante das árvores quando o calor arrebatador do dia partia com o poente. Um dia, saí de casa no início da noite. Desci a Rua John Kennedy até chegar à Avenida Parigot de Souza. Tudo parecia tão tranquilo, difícil crer que era uma segunda-feira. Continuei andando, observando os animais da vizinhança revirando sacolas enquanto os lixeiros não passavam para recolhê-las ao lado do meio-fio.

Mandriões, quatro gatos, não sei se por fome ou capricho, miavam ruidosamente com desejo de se aproximar dos sacos ocultados por três cães. Entendi. Era o dia preferido dos negligenciados, já que as sobras de comida do sábado e do domingo se acumulavam em tantas sacolas, criando um cheiro variegado e sui generis que as narinas dos famintos sorviam com o paroxismo de quem se vê pela primeira vez diante de um banquete etrusco.

Sensibilizado com a cena, chamei a atenção de dois cães e os afastei de uma das sacolas, entre as tantas que monopolizavam, permitindo que os gatos também vasculhassem seu tesouro em meio aos orgânicos detritos da glutonaria. Acredito que ficaram satisfeitos. Silenciaram, e segui meu caminho depois de vê-los com os bigodes sujos de contentamento.

Passei por um trecho da Avenida Paraná e segui em direção ao centro. Na Rua Getúlio Vargas, pessoas saíam do trabalho, embora quase todas as portas das lojas estivessem fechadas. O aspecto de cansaço no rosto de tanta gente a pé, sobre os bancos das motos e no interior dos carros dava mostras do quão intenso pode ser o limiar da semana.

Um ou outro ainda sorria, raros num mar de expressões macambúzias de desânimo. “Será que não gostam do que fazem da vida? Alguns parecem infelizes. Posso estar enganado também. Talvez seja apenas uma má impressão minha”, refleti. Então mirei o céu por entre os galhos e vi um céu ainda avermelhado envolvendo a lua tímida que pouco despontava, mal sendo notada.

A passos rápidos, subi um trecho da Getúlio Vargas e assisti dois homens maltrapilhos, talvez andarilhos ou mendigos, sentados no banco da praça da Igreja São Sebastião dividindo um pão francês e tomando uma bebida escura, provavelmente café, em copos descartáveis. A cada gole e mordida, os dois riam como se nada na vida valesse mais do que o momento, a paradoxal plenitude do efêmero.

Contavam piadas sem sentido um para o outro e gargalhavam como crianças, pressionando as mãos contra suas barrigas cobertas por camisetas em frangalhos. Dois carros pararam em frente à praça e os motoristas testemunharam com espavento a alegria dos dois marginalizados. “Do que esses doidos estão rindo? Que nada a ver, rir nessa situação. Deviam chorar”, talvez pensem alguns.

Percorri mais cem metros e notei um automóvel se aproximando vagarosamente. Um homem colocou a cabeça para fora e me chamou. Sem problema. Deveria ser alguém perdido por aquelas bandas. Não, não era. “Ô camarada, você gosta de se divertir?”, questionou o motorista. “Quê?” E ele repetiu a pergunta. “Olhe, eu e minha mulher, dê uma olhada nela aqui do meu lado, estamos a fim de umas aventuras. O que você acha de vir com a gente? Tudo no sigilo, temos local próprio e bem discreto.”

Agradeci o convite e falei que não tinha interesse. “Como não tem interesse na minha mulher? Olha aqui, cara! Isso não existe. Temos altas ferramentas aqui. Vambora que você não vai se arrepender”, falou o homem com a voz alterada, revelando um misto de nervosismo e raiva. De repente, o sujeito se virou em direção ao banco traseiro e retirou uma maça medieval de borracha, mas com um adorno de spikes que parecia muito real. No banco ao lado, a mulher apenas sorria, retocando o batom vermelho com uma das mãos e piscando para mim, sensualizando.

“Você tem cara de bad boy. E minha mulher só curte homem assim. Vem, cara! A gente paga!” Insisti, falei que não aceitava, que tinha namorada e andei a passos céleres, sem ter a mínima ideia do que aquele casal era capaz. Virei à esquerda e para piorar ainda ouvi o som do motor me acompanhando e a sombra de uma pessoa apontando em minha direção. “E se esse maluco sacar um revólver e atirar em minhas costas?”, aventei, rendido a uma criatividade que me assustava e entorpecia. Afinal, me tornei refém de um universo de possíveis impossibilidades.

“Seu viado filho da puta!”, foi a última frase que ouvi antes de sentir uma cálida rajada que repentinamente aqueceu meu corpo álgido. Consegui respirar melhor quando o carro desapareceu no horizonte do Jardim Paulista. Feliz por estar vivo, retomei a caminhada sentindo-me mais leve que o próprio vento que ocasionalmente massageava minhas orelhas.

Perto da antiga Escola Jean Piaget, na Rua Manoel Ribas, fui surpreendido novamente pelo acaso quando dois cães enormes e negros como a noite escaparam pelo portão de uma casa e vieram correndo no meu encalço como duas crianças famintas. Seus olhos amarelos rutilavam como vagalumes graúdos. Só tive tempo de saltar, pendurar e me equilibrar sobre a fragilizada grade da escola que por pouco não cedeu, o que me deixaria à mercê dos meus algozes.

Sem subestimar a astúcia animal, pulei sobre uma árvore no jardim da escola e fiquei observando eles por instantes, limpando minhas mãos repletas de vestígios de cal. Encolerizados, seus músculos se contraíam enquanto seus dentes afiados mal cabiam dentro da boca. A saliva dos dois caía grossa sobre a grama.

Me senti vitorioso, mas não zombei deles porque nunca sei o que o dia seguinte me reserva. Persistentes, mantinham as patas pressionadas contra a grade e os olhos fixos em mim. Eram fortes, ágeis e pouco inteligentes. Só precisei fingir que iria fugir pelo outro lado para despistá-los. Logo ficaram confusos e perderam seu ponto de referência – eu.

Corri até a Rua Chozo Kamitami e não vi mais eles. Um tremendo alívio que fez minhas pernas pararem de bambear. “Nada mais pode acontecer hoje. Acredito que atingi a minha cota”, achincalhei o meu próprio azar. Após restabelecer a serenidade, tudo parecia em harmonia quando ouvi cigarras cantando e corujas piando em meio aos pisca-piscas dos pirilampos.

“Agora é só prosseguir minha caminhada e curtir a noite”, ponderei absorvendo a amorável calmaria notívaga. Voltando para casa pela Avenida Rio Grande do Norte, mais uma vez fui parado por um carro. Um rapaz gritou um nome, vi que não era comigo e continuei andando. “É você, mano! É você! É você mesmo! Calmae, calmae!”, falou com malemolência.

Não o reconheci e pensei que fosse um bêbado querendo confusão ou jogar conversa fora. “Ué, Mafud! Vai tirar na cara dura? Vai dar de louco pra cima de mim, manon?”, replicou. Fiquei sem reação e depois declarei que ele me confundiu com outra pessoa. Em seguida, olhei atentamente e vi que em sua mão direita, parcialmente velada na altura da barriga, tinha um revólver de calibre 38.

“Conheço essa sua barba em qualquer lugar, manon. Tem erro não. Quero saber se tu tá metido nos esquemas da gravataria lá ainda ou se já deu linha. Conta pro seu manon aí!”, indagou. Não consegui pensar com clareza e de repente as luzes dos faróis de um segundo carro foram sinalizadas em nossa direção. Outro rapaz acenou com a mão através da janela, chamou a atenção do jovem que me abordou e gritou:

“Esse não é o Mafud, cara! Tá fazendo merda de novo. Simbora!” Antes de partir, ele sorriu, abriu a carteira e lançou cinco notas de R$ 100 em minha direção. “Mal aí, meu chapa! Esquece a parada que tudo segue de buena”, sugeriu. Fui embora e deixei um repentino vento sortido arrastar as notas para longe de mim. Com receio de novas abordagens, equívocos e confusões, respirei fundo e voltei para casa correndo, mergulhado em um turbilhão de pensamentos. Sem dar margem ao azar e ao acaso, sequer olhava para o lado, agulheado pela ferocidade do imponderado.

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O dia em que Pedro Tenório assassinou Alma de Gato e Bartolo no Líder Bar

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Crime aconteceu no centro de Paranavaí no dia 8 de agosto de 1964

Líder Bar (ao fundo), cenário de um dos crimes mais macabros da região na década de 1960 (Acervo: João Carlos Antunes)

Líder Bar (ao fundo), cenário de um dos crimes mais macabros da região na década de 1960 (Acervo: João Carlos Antunes)

No dia 8 de agosto de 1964, um homem bebendo no Líder Bar, na Avenida Paraná, perto do cruzamento com a Rua Getúlio Vargas, no centro de Paranavaí, explicou a um conhecido que estava negociando a venda de uma fazenda que pertencia a uma família de gaúchos em Querência do Norte. “Vou fechar esse negócio, daí pago a minha dívida, né?”, enfatizou o homem, de acordo com Honório Bonfadini, um dos proprietários do Líder Bar na época, que acompanhou a conversa diante do balcão.

Quando chegou a hora de formalizar a venda, o negociante chamado Pedro Tenório se sentiu lesado porque a transação não foi concluída e ele perdeu a chance de ganhar uma boa comissão. Dois dias depois, retornou ao bar por volta do meio-dia. O local estava lotado, tanto que não havia mais cadeiras e mesas disponíveis. Então Tenório se aproximou do balcão e caminhou até dois homens que conversavam. Sem dizer palavra, sacou um revólver de calibre 44, puxou Onofre de Oliveira, mais conhecido como Alma de Gato, pelo braço e deu-lhe um tiro à queima-roupa no peito.

Alma de Gato foi sepultado na gaveta superior e Bartolo na gaveta inferior do Cemitério Municipal de Paranavaí (Foto: David Arioch)

Alma de Gato foi sepultado na gaveta superior e Bartolo na gaveta inferior do Cemitério Municipal de Paranavaí (Foto: David Arioch)

Bartolo Sanches Perez, que estava ao lado do amigo ferido, ficou inerte, com os olhos estalados. Antes que reagisse, também foi alvejado no peito. Os dois caíram lado a lado enquanto o sangue se misturava no chão do bar. Durante a ação, alguns fregueses tremiam assustados e encolhidos embaixo das mesas. Outros ficaram tão desesperados que correram em direção à Avenida Paraná. “Todo mundo saiu de perto quando ouviu o primeiro tiro. O atirador não chegou a quebrar nada. Só furou a parede e o forro”, relata Bonfadini.

Com calma, Tenório abaixou o revólver e saiu do bar da mesma forma que entrou, ou seja, calado. “Havia muito sangue no chão e muito medo nos olhos de quem presenciou esse crime”, relata o pioneiro João Mariano. O atirador caminhou com tranquilidade até a Rua Getúlio Vargas, onde foi abordado pelo tenente Walter Porto, da Polícia Militar. Não resistiu à prisão e ainda confidenciou que sua intenção era ir até outro bar assassinar mais duas pessoas que segundo ele faziam parte do grupo que interferiu em seus negócios. Feridos gravemente, Alma de Gato e Bartolo acabaram falecendo no hospital.

O pioneiro e ex-prefeito Deusdete Ferreira de Cerqueira se recorda que foi procurado por João Tenório para testemunhar a favor de Pedro Tenório. “Ele era de família abastada. Eu me dava bem com esse parente dele. Mas um dia ele passou na minha casa e disse: ‘É sobre o Pedro, sei que você faz parte do júri popular e quero pedir que salve ele’. Aí expliquei: ‘Ô Seu João, pra mim é difícil. A única coisa que você pode fazer é pedir pra me tirar do júri porque se eu for lá eu condeno ele. Tenho minha consciência e meu senso de justiça’”, lembra.

Deusdete Cerqueira, Honório Bonfadini e João Mariano conheciam Pedro Tenório e as vítimas (Foto: David Arioch)

Deusdete Cerqueira, Honório Bonfadini e João Mariano conheciam Pedro Tenório e as vítimas (Foto: David Arioch)

Após a condenação, Tenório foi transferido para Curitiba. O que o motivou a matar Alma de Gato e Bartolo foi o desejo de vingança e a sensação de impunidade. “Ele tinha amizade com um juiz e um escrivão que se dispuseram a ajudar ele. Ou seja, tudo gente boa”, ironiza Honório Bonfadini, lembrando que era muito comum as pessoas andarem munidas de revólveres de calibre 22 e 38 em 1964.

O duplo homicídio repercutiu tanto que se tornou o assunto mais falado na região por semanas. Inclusive a polícia exigiu que os Bonfadini fechassem o Líder Bar por alguns dias, reabrindo numa segunda-feira. “E tudo isso por causa da corretagem de uma fazenda. Naquele tempo as pessoas matavam facilmente por causa de comissão de terras. Ainda bem que os outros não quiseram se vingar porque senão ia acabar não sobrando ninguém”, pondera Deusdete.

Vizinho de Bartolo Sanches Perez, o pioneiro João Mariano conta que ele era tranquilo e educado. “Uma vez ele passou por uma situação difícil quando o filho dele foi laçar um boi e o animal o arrastou. Levaram o rapaz ao médico e ele se recuperou, mas ficou sem a mão”, confidencia.

Mariano também defende que Alma de Gato, homem alto e magro que conheceu em 1955, não era má pessoa. “Eu era mais novo que o Alma de Gato e tive o primeiro contato com ele em 1953, um ano depois que cheguei em Paranavaí. A propriedade onde moro hoje [Estância Reno] era do pai dele. Tinham uma fazenda enorme, com muito café e mato. Quando comprei, já tinham loteado. O forte deles sempre foi a cafeicultura”, garante Cerqueira.

Curiosidades

Alma de Gato e Bartolo estão sepultados na primeira seção de gavetas do Cemitério Municipal de Paranavaí.

Alma-de-Gato é o nome de um pássaro originário da Amazônia que tem a cauda longa, o peito acinzentado e a plumagem cor de ferrugem.

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Os marginais da colonização

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“Éramos assim, vagabundos e marginais aos olhos de um mundo já corrompido pela ganância”

Pavão que trouxe Toninho, Beto e Maneco a Paranavaí em 1946 (Foto: Acervo da Fundação Cultural de Paranavaí)

Pavão que trouxe Toninho, Beto e Maneco a Paranavaí em 1946 (Foto: Acervo da Fundação Cultural de Paranavaí)

Toninho, Beto e Maneco são três personagens desconhecidos da história de Paranavaí. Jovens na década de 1940, seguiam na contramão da maioria da população. Sentiam prazer em não ter propósitos comuns, apenas viviam o presente. Distantes da ambição que atraía tantos migrantes e imigrantes a Paranavaí, vagavam como marginais, curtindo a vida à sua maneira.

Depois de menos de um ano em Londrina, Toninho, Beto e Maneco decidiram partir para o Noroeste do Paraná, destino que na concepção dos três tinha tudo para garantir muita diversão. “Éramos solteiros e ouvíamos falar muito do Norte Novíssimo do Paraná. Diziam que era um lugar muito diferente. Ficamos curiosos e pensamos em ver isso de perto”, explica Beto.

Na manhã fria de 29 de julho de 1946, desembarcaram do pavão no Ponto Azul em Paranavaí. Carregando sacos de estopa com poucas peças de roupa, os três se conheceram em Londrina enquanto aguardavam o ônibus. “Ficamos rindo quando vimos que os nossos sacos eram iguais”, explica Toninho que deixou a família em Paranaguá para conhecer Londrina. Beto e Maneco fizeram o mesmo. Um saiu de Santos e o outro de Joinville.

Quando colocaram os pés no chão de terra batida, um garoto de 12 anos, conhecido como Amendoim, se aproximou e, assim que viu uma velha cigarreira despontando do bolso da camisa branca de Maneco, gritou: “Ô senhor, me dá um desse aí!” O rapaz então acendeu um Lincoln com um leve riscar de palito velado sob o dedo. Disse que o cigarro seria de Amendoim se conseguisse segurá-lo pela ponta do filtro durante um arremesso. Habilidoso, o garoto o pegou no ar sem queimar os dedos. Depois ajeitou a boina parda surrada, agradeceu, colocou o cigarro na boca e seguiu o trio.

No mesmo dia alugaram uma casa perto da entrada da Vila Operária, na região que ficaria conhecida na década de 1950 como Zona do Baixo Meretrício, um reduto de bordéis onde a agitação começava quando o restante da cidade se silenciava. “Era uma casinha, coisa simples, só pra gente ter um lugar pra ver a vida passar sem pressa”, comenta Toninho.

Ponto Azul, onde o trio desembarcou e conheceu o garoto Amendoim (Foto: Acervo da Fundação Cultural de Paranavaí)

Ponto Azul, onde o trio desembarcou e conheceu o garoto Amendoim (Foto: Acervo da Fundação Cultural de Paranavaí)

Em pouco tempo, Beto teve a ideia de fabricar rapé artesanal no fundo de casa. O desejo surgiu meses antes, quando leu o romance “Eugênia Grandet”, do francês Honoré de Balzac, e o conto “O Bote de Rapé”, de Machado de Assis. No início buscava parte da matéria-prima em Londrina. Misturava as folhas de tabaco com as cinzas das cascas de árvores que selecionava em Paranavaí e processava tudo em um moedor caseiro. “A gente inalava uma vez por dia usando o polegar e o dedo indicador. Era como uma liturgia de purificação. Chegava a ficar com as unhas encardidas”, confidencia Beto rindo e mostrando com a mão direita como se consumia.

Ocasionalmente os três se juntavam aos peões que atuavam na derrubada de mata, mas só até reunirem uma boa quantidade de cascas para o preparo do rapé. A verdade é que não gostavam de trabalhar. Encaravam como forma de aprisionamento todo serviço que impusesse ao ser humano uma rotina que não permitisse o autoconhecimento, a visão periférica do mundo e a fluência da vida. “Éramos assim, vagabundos e marginais aos olhos de um mundo já corrompido pela ganância. E de fato nos víamos como marginais, o que nunca foi ofensa pra nós”, declara Maneco.

Ao longo de duas semanas de trabalho na mata, testemunharam cinco pessoas com intensos calafrios e pele amarelada, vítimas de malária. Para evitar despesas ao ter de percorrer mais de 50 quilômetros de carreador até o hospital, e seguindo recomendação do patrão, o fiscal preferiu ignorar a situação dos enfermos e ameaçou atirar em quem parasse o serviço para tentar ajudá-los. Dois não resistiram à doença e morreram lá mesmo, agonizando silenciosamente, com seus corpos encharcados de suor. Preocupado com o mau cheiro, o homem obrigou seis peões a enterrarem os mortos – dois rapazes de 18 e 19 anos.

As valas improvisadas foram forradas com galhos e folhas. Quando cobriram as covas com terra, Toninho pediu autorização ao fiscal para dizer algumas palavras em memória dos falecidos. O sujeito não aceitou, bateu o chapéu contra a perna e ordenou que continuassem o serviço. “Já morreu, não significa mais nada. O que vale é nóis que tamo vivo”, justificou o fiscal enquanto talhava com um facão um naco de carne seca. Depois daquele dia nenhum dos três atuou como peão. Porém, jamais esqueceram a expressão de desilusão nos olhos de tantos homens que trabalhavam até 16 horas por dia ajudando a desmatar a região.

Avenida Paraná quando os jovens chegaram à colônia (Foto: Acervo da Fundação Cultural de Paranavaí)

Avenida Paraná quando os jovens chegaram à colônia (Foto: Acervo da Fundação Cultural de Paranavaí)

Em casa, transformaram o ambiente em um lugar que deram o nome de “La Mancha” em homenagem ao eterno Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Passavam boa parte do tempo lendo, escrevendo, cantando, criando invenções, dançando e consumindo absinto, rapé, ópio, chá de ayahuasca e soltierra, uma bebida à base de raízes e flores silvestres. “Acredito que foi a primeira bebida inventada no Noroeste do Paraná. Só que consumíamos apenas entre nós. Ela ajudava a restabelecer o equilíbrio entre os sentidos”, confidencia Beto que comprava papoula sonífera de um turco conhecido como Symancora Katifoi que conheceu em São Paulo em 1945 por intermédio de um primo.

No interior da La Mancha, uma casa ordinária por fora e extraordinária por dentro, havia o mínimo possível de móveis, quase tudo criado ou lapidado pelos três amigos. As paredes internas eram adornadas por trepadeiras que cresciam livremente. Até frutas como melancia de cipó, melãozinho do mato, maracujá, uva e fava de arara brotavam dos ramos nas paredes. “Todos puderam se servir delas, tirando direto da natureza”, rememora Maneco. O clima no local era tão ameno que nem as mais severas ondas de calor alteravam o frescor dentro da casa.

No entanto a solitude dos três não durou tanto quanto imaginavam. Em outubro de 1946, duas jovens que trabalhavam em um prostíbulo a 150 metros da La Mancha estavam caminhando quando sentiram um aroma acre e adocicado. Curiosas, se aproximaram e bateram palmas. Toninho, Beto e Maneco, que nunca tinham recebido visita em meses, a não ser do garoto Amendoim, se surpreenderam com o desembaraço das moças. Ao mesmo tempo ficaram receosos. “O que vocês tão preparando aí? É de beber?”, questionou uma loira chamada Lara. Toninho respondeu que era um chá para cefaleia. A moça então insistiu que gostaria de experimentá-lo e acabaram cedendo.

As duas entraram e todos foram para o primeiro cômodo da casa, uma saleta separada das outras dependências por uma longa cortina verde. A conversa se estendeu por pelo menos duas horas e os três relataram que eram estudantes tirando um ano sabático para repensarem a vida. Lara também deu detalhes de sua história. Teve uma briga séria com os pais e deixou Prudentópolis, no Sudeste do Paraná, para conhecer Paranavaí, onde uma amiga já trabalhava em um bordel.

Após a despedida, pediu que as deixassem retornar. Sem noção das intenções da moça, concordaram, só que não velaram a resistência. Ainda assim, Toninho, Beto e Maneco receberam mais de 50 pessoas na casa antes do Natal de 1946. A maior parte chegava através do vínculo de confiança que o trio criou com Lara. Para entrarem no local, era preciso dizer uma senha – Papilio Innocentia, uma referência à obra poética homônima do paranaense Emiliano Perneta.

Beto começou a fabricar rapé artesanal no fundo de casa (Foto: Reprodução)

Beto começou a fabricar rapé artesanal no fundo de casa (Foto: Reprodução)

Os frequentadores da La Mancha eram pessoas simples, personagens anônimos da história de Paranavaí, mas principalmente damas da noite e peões que enxergavam um paraíso na modesta casinha de tábuas escuras – um espaço peculiar onde podiam extravasar anseios, emoções reprimidas e buscar ajuda.

“Alguns começaram a nos ver como curandeiros. Claro que nunca nos vimos assim, só que para não decepcionar aquela gente atendemos cada um. À nossa porta vinham desde vítimas de acidentes de trabalho até pessoas com sífilis e gonorreia. Outros queriam auxílio espiritual. Deu pra ajudar um pouquinho”, enfatiza Beto que admite ter usado substâncias alucinógenas na composição de diversos medicamentos caseiros. Em vez de cobrar pela ajuda, o trio deixava uma cumbuca sobre a mesinha na saleta. Assim cada um contribuía da forma que pudesse ou quisesse.

No dia 26 de julho de 1947, um sábado, Toninho, Beto e Maneco prepararam uma festa para 20 pessoas. Amendoim, Lara e quatro amigas estavam entre os presentes. A comemoração na La Mancha começou por volta das 18h e se estendeu até as 23h. “Uma celebração tranquila, com cantoria, gaita, boa conversa, troca de confidências, muitas bebidas e outras coisinhas mais”, pontua Toninho com um sorriso acintoso.

Antes do fim da noite o trio revelou aos convidados que a festa era uma despedida. Tinham acertado tudo para partir na segunda-feira pela manhã. A notícia desapontou os muitos miseráveis que viam a La Mancha como refúgio e os três jovens como parte importante de suas vidas. Lara e Amendoim não conseguiram esconder as lágrimas que escorriam como chuva de verão. “Se acalmem! Não é o fim do mundo. Um dia vamos nos encontrar e também podemos nos corresponder”, anunciou Maneco com voz indolente enquanto vertia uma sobra de absinto do fundo de um cálice de barro.

A festa acabou cedo porque no dia seguinte os três acordariam às 3h. Em meio à escuridão serena, ouviram o som de um jipe Land Rover encostando em frente ao casebre. Era João José, um senhor de quem alugaram o veículo por dois dias, assumindo o compromisso de mais tarde deixá-lo atrás de uma tulha em uma propriedade rural na entrada de Maringá, onde o proprietário do jipe poderia buscá-lo.

Toninho, Beto e Maneco aproveitaram a ausência de brisa e o calor matutino que principiava breve estiagem. Como o silêncio da natureza os privilegiava, atearam fogo em tulhas e cafezais de cinco propriedades rurais de alguns dos homens mais ricos da região. Um era o responsável por contratar o sujeito que deixou os dois jovens peões morrerem à míngua, de malária, no seio da mata. Quando o fogo começava a se alastrar, saltavam sobre o jipe e partiam sem qualquer remorso.

Entre as lavouras destruídas estava a de um fazendeiro ciumento que feriu várias partes do corpo de Lara com um punhal, na tentativa de assassiná-la. Em uma noite da semana anterior o homem berrou e exigiu que a jovem não atendesse mais nenhum outro cliente. Ela não aceitou. Ensandecido, só foi contido graças à intervenção do Capitão Telmo Ribeiro que tomou a arma da mão do sujeito, o agarrou pelo pescoço e deu-lhe um vigoroso soco no estômago.

No final da tarde de terça visitaram a residência do fiscal a quem culpam até hoje pela morte dos peões vitimados pela maleita. Pensaram em atear fogo em sua casa. Mudaram de ideia quando viram três crianças brincando no quintal descampado e sem cerca. Ao lado, uma jovem mãe esfregava fervorosamente a calça bege do marido em um tanque improvisado. “Vamos largar esse pra lá. A vida se encarrega de fazer justiça. O que é dele tá guardado”, sugeriu Maneco. Toninho e Beto concordaram.

À noite, por volta das 21h, receberam a confirmação de que os estragos nas lavouras e tulhas eram enormes e ainda inestimáveis. Recolheram os pertences e anteciparam a partida. Estavam entrando no jipe quando ouviram a suplicante voz de Lara. Segurando uma malinha amarelada, a moça pediu para deixá-la partir com eles. Hesitaram um pouco, mas, como se tornara tradição, cederam ao pedido da jovem.

Paranavaí parecia mais serena do que nunca. A população dormia enquanto o jipe atravessava as ruas de terra da cidade, deixando pequenas cortinas de poeira clara que cobriam com sutileza os cães deitados próximos das soleiras das casinhas de tábuas. “Foi um sonho intenso. Vivemos em Paranavaí algumas das maiores dores e alegrias de nossas vidas. Agradeço por estarmos vivos, por ter a chance de contar pela primeira vez com detalhes a fase mais emocionante da nossa história. Talvez amanhã não estejamos mais aqui, então cabe a você compartilhar com outras pessoas”, aconselha Toninho, aos 89 anos, com a voz embargada e um olhar úmido e cristalino.

Saiba Mais

Toninho e Beto tinham 20 anos quando chegaram a Paranavaí. Maneco, o mais jovem, estava com 19, assim como Lara.

Os três amigos moram em Curitiba e mantêm contato frequente até hoje. Toninho é médico veterinário aposentado. Beto também se aposentou, mas como engenheiro florestal. Maneco continua trabalhando como artista plástico e escritor.

O trio retornou a Paranavaí a passeio somente 32 anos após a partida.

Lara se casou com Toninho em 1949. Viveram juntos até 1995, quando ela faleceu em decorrência de um câncer de mama.

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Irmãos Bonfadini, uma história de luta e união

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Raridade entre as famílias de hoje em dia, os Bonfadini nunca se separaram

 Honório Bonfadini: “Nosso pai ensinou que devemos estar sempre perto uns dos outros, se respeitando e se ajudando” (Foto: David Arioch)


Honório Bonfadini: “Nosso pai ensinou que devemos estar sempre perto uns dos outros, se respeitando e se ajudando” (Foto: David Arioch)

Assim como muitos migrantes, o que trouxe os sete irmãos Bonfadini a Paranavaí, no Noroeste do Paraná, foi a vida difícil. Em Encantado, cidade situada em uma região de morros no Rio Grande do Sul, a economia da família era baseada na criação de suínos. Então sonhavam em migrar para uma área plana, onde pudessem investir em outras atividades. “A vida no Rio Grande era dura. A gente queria ir pra um lugar sem pedras. Trabalhamos, lutamos e fizemos economia, crentes de que um dia sairíamos de lá”, explica o pecuarista Honório Bonfadini.

O sonho se concretizou em 1960, quando se mudaram para Paranavaí logo depois de conhecer um corretor que falou das terras boas da região. “Viemos em sete irmãos. Eram quatro homens e três mulheres. Cheguei e me senti no paraíso. A diferença para o lugar onde morávamos no Rio Grande era imensa”, explica Honório entre sorrisos e um tom de voz remansoso.

O trajeto até Paranavaí levou dias e foi percorrido de ônibus. A vontade de mudar de vida era tão grande que trouxeram pequenas malas com poucas peças de roupa, deixando todos os móveis e utensílios domésticos. “Paranavaí sempre foi bonita, né? Só que asfalto não tinha. Na Avenida Paraná só existia um pedacinho de malha viária”, lembra Honório.

O maior objetivo dos Bonfadini era investir na área urbana. Quando ficaram sabendo que o Líder Bar estava fechado por ordem judicial, em decorrência de badernas, brigas e trocas de tiros, não pensaram duas vezes. “O preço era bom. Por isso compramos e reabrimos. Só deu um pouco de trabalho pra reformar. Como não tínhamos dinheiro pra gastar, contratamos um pedreiro e ajudamos a reconstruir”, relata rindo e meneando a cabeça.

Além de Honório, o Líder Bar, situado na Avenida Paraná, perto do cruzamento com a Rua Getúlio Vargas, contou com a dedicação de Ida, Eva, Gema, Ricieri, Adão e Orestes. Praticamente a família inteira trabalhou no local de 1960 a 1965. “Era bar e restaurante. Tinha o prato do dia, salgados, sanduíches, bolos, chocolates e sorvetes. Os doces eram mais das crianças, né? Ah, o pessoal gostava muito de bauru! Mas a maioria vinha pelo café”, explica. A comida era vendida “por cabeça”. Pagava-se um preço fixo e comia à vontade no almoço ou no jantar.

Embora o ambiente fosse familiar, o Líder Bar se popularizou como ponto de encontro de homens. “A mulherada naquele tempo tinha medo de homem”, justifica Honório às gargalhadas. Apesar das limitações da época, o estabelecimento surpreendia pelo horário de funcionamento. Começava a atender às 6h30 e parava de madrugada, por volta da 1h. No verão, logo cedo a casa enchia. No inverno, à tarde o movimento crescia.

Avenida Paraná na época em que os irmãos Bonfadini ainda investiam no comércio local (Acervo: Fundação Cultural de Paranavaí)

Avenida Paraná na época em que os irmãos Bonfadini ainda investiam no comércio de Paranavaí (Acervo: Fundação Cultural de Paranavaí)

Além de proporcionar horas de descontração, o bar servia como escritório, tanto para profissionais quanto picaretas. Muita gente passava no estabelecimento antes do início do expediente, assim como muitos saíam do trabalho e iam direto pra lá bater papo e tomar um aperitivo.

A fama do bar atraía pessoas de toda a região de Paranavaí. E mais, até estrangeiros. Honório Bonfadini perdeu as contas de quantas vezes recebeu italianos, alemães, espanhóis e portugueses que chegaram ao balcão segurando um pedaço de papel em que estava escrito o endereço do Líder Bar acompanhado de alguns elogios. “Só que era um tempo difícil. Não tinha conforto e o nosso abastecimento de energia dependia de um motor”, garante.

Apesar das dificuldades, admite que ser proprietário do bar mais movimentado de Paranavaí era um privilégio. Vendiam muito e ganhavam bastante dinheiro. Honório sempre viu o Líder Bar como um ambiente modesto, de proporções medianas – com um longo balcão, algumas porções de cadeiras e mesas, sala e área reservada para comemorações.

Muita gente frequentava o local por causa do frango frito e do frango em molho, duas das especialidades dos Bonfadini. “Não tinha frango de granja, era só caipira. A gente fazia o possível pra nunca faltar”, enfatiza. Outro ponto alto era a limpeza. Independente do horário em que o bar fechasse, a família fazia questão de deixá-lo limpinho para a manhã do dia seguinte. Também se uniam para uma faxina geral uma vez por semana.

Líder Bar antes dos Bonfadini chegarem a Paranavaí (Acervo: Fundação Cultural de Paranavaí)

Líder Bar antes dos Bonfadini chegarem a Paranavaí (Acervo: Fundação Cultural de Paranavaí)

Os jovens engraxates aproveitavam a movimentação para encostarem caixas e banquinhos em frente ao bar, aguardando a entrada e a saída da freguesia. Na entrada os clientes se livravam do barro batendo as botas na soleira. No interior ouviam-se muitas vozes acompanhadas de sons de pratos, copos, cadeiras e mesas sendo arrastadas. A música no bar era o “barulho do movimento”, segundo Honório Bonfadini.

Em 1965, a crise da monocultura cafeeira motivou a família a se mudar para Planaltina do Paraná, a pouco mais de 50 quilômetros de Paranavaí. O Líder Bar precisava de reforma e o investimento seria desproporcional aos lucros. A melhor opção era desistir da atividade. “As geadas acabaram com o café. Muita gente foi embora. Como nosso bar ficou parado, decidimos partir. Os que moravam aqui nesta propriedade rural em Planaltina, onde conversamos agora, queriam ir pra cidade. Fizemos a troca pelo bar e viemos para o mato. Já estamos aqui tem 50 anos”, revela.

Seis dos irmãos Bonfadini nunca se casaram

Dos sete irmãos Bonfadini que se mudaram para o Paraná, seis jamais se casaram. “Tivemos de fazer economia pra conseguir alguma coisa na vida quando ainda tinha idade pra casar. A luta foi feia. Namorei pouco. Não deu tempo”, justifica o pecuarista Honório Bonfadini em tom singelo.

Apesar disso, Honório não se esquece que em Paranavaí tinha muitas mulheres bonitas. “Era uma alegria para os olhos. Só que eu não ia em festas porque precisava trabalhar”, argumenta. À noite, quando saía de vez em quando para passear, era impossível ficar sozinho com alguma moça. Sempre havia guardas noturnos nas esquinas e eles repreendiam quem tentasse namorar em locais escuros. Mesmo com a rotina atribulada, o comerciante teve a oportunidade de conhecer figuras lendárias da música brasileira, como Tonico e Tinoco, Cascatinha e Inhana e Roberto Carlos. “O comércio e as emissoras de rádio organizavam shows muito bons”, assinala.

Uma vez uma cantora espanhola se aproximou de Honório Bonfadini no balcão do Líder Bar e pediu uma dose de conhaque Dreher. Então os dois começaram a conversar. O comerciante entendia bem o espanhol, tanto que o papo se estendeu por horas. Antes de se despedir, a cantora o convidou para ir ao seu show que seria realizado em Paranavaí na mesma noite. Como o jovem Honório não poderia se ausentar do trabalho, ela se comprometeu em retornar ao final da apresentação.

Honório a esperou. Depois ficou sabendo que a moça encontrou um espanhol. Em vez de ir ao Líder Bar a cantora foi com o acompanhante para a Adega Espanhola na Rua Marechal Cândido Rondon. “Nunca mais a vi”, lamenta. Após se mudar para Planaltina do Paraná, não quis mais saber de se casar. “Aqui eu já estava fora de época. Não queria mais. Não tinha mais idade pra isso”, pontua.

Família sempre se manteve unida

Raridade entre as famílias de hoje em dia, os Bonfadini sempre se mantiveram unidos. De um total de 11 irmãos que viviam no Rio Grande do Sul, sete vieram ao Noroeste do Paraná e nunca perderam contato. Inclusive seis moraram juntos a vida toda.

“Só tivemos uma irmã que se casou e mudou para Presidente Epitácio, no interior de São Paulo. Nosso pai ensinou que devemos estar sempre perto uns dos outros, se respeitando e se ajudando. Se houver alguma falha, tudo bem, a gente tem que perdoar e seguir em frente”, ensina Honório Bonfadini que teve de lidar com a morte dos quatro irmãos mais velhos que viviam no Rio Grande do Sul. Em Planaltina do Paraná, perdeu também a irmã Ida em 2006 e os irmãos Ricieri e Orestes em 2004 e 2010.

Desde que se mudaram para Planaltina em 1965, não quiseram mais investir no comércio. Nos primeiros anos arriscaram plantar café. Depois priorizaram a pecuária. “Você levava uma manhã para chegar a Paranavaí quando chovia. E havia mato para todo lado. Era complicado chegar na cidade”, pondera e declara que Planaltina do Paraná tinha o mesmo tamanho de hoje.

Netos de imigrantes italianos, os irmãos Bonfadini tem raízes em Bento Gonçalves, onde os pais nasceram e viveram até migrarem para a região de Porto Alegre. “Temos sobrinhos lá no Rio Grande do Sul, mas não viajamos mais pra lá. Eles que costumam vir pra cá”, garante Honório.

Sentado em uma cadeira de varanda no sobrado que ajudou a construir em 1982, Honório diz com um sorriso impoluto e um olhar sereno que até hoje se sente bem vivendo no campo, onde a vegetação ajuda a reter umidade e preservar o frescor nos dias mais ensolarados. Mais à frente, aponta o dedo para uma área erma.

Lá, ele e os irmãos viveram anos em um casebre de madeira. Dos tempos de colonização resta ainda uma tulha acinzentada que pode ser vista logo na entrada da propriedade rural, às margens da PR-218, um marco das transformações culturais da região. O local que um dia armazenou grandes quantidades de café, há muito tempo serve de abrigo para o feno.

Curiosidades

Nos tempos da colonização, o revólver de calibre 44 era conhecido em Paranavaí como uma arma usada em execuções.

Honório Bonfadini nasceu em 8 de setembro de 1929.

Paranavaí e a sociedade de “colonização bruta”

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Uma cidade que de tão heterogênea surgiu com grandes falhas sociais

Paranavaí foi colonizada pelo próprio governo paranaense (Foto: Reprodução)

Sem planejamento, Paranavaí foi colonizada pelo próprio governo paranaense (Foto: Acervo da Fundação Cultural de Paranavaí)

Não são poucos os pioneiros que afirmam que Paranavaí, no Noroeste do Paraná, é uma cidade formada a partir de uma sociedade de “colonização bruta”. Mas qual é o significado disso?Declarações como essa são justificadas por fatos envolvendo principalmente distinções culturais. Paranavaí foi colonizada pelo governo paranaense, ou seja, houve pouca participação ou abertura para a colonização de iniciativa privada ou planejada. Assim a organização precisava partir da própria comunidade.

Nos anos 1940, nos tempos da Fazenda Brasileira, Paranavaí contava com uma sociedade restrita, pouco sociável e formada pela política da conquista de novas terras. A colônia atraía todo tipo de gente porque os lotes eram baratos e, em algumas situações, até doados. “Havia a coletividade, mas sem articulação social. A maior parte das pessoas vinha pra cá com esse interesse em comum. Não socializavam quase. Assim surgiu uma sociedade com uma colonização bruta, sustentada apenas pelos mesmos objetivos econômicos”, afirma o pioneiro Ephraim Marques Machado.

Como havia povos das mais diferentes origens, por vários anos persistiu uma segregação entre os moradores. Muitos se relacionavam apenas com pessoas que vieram do mesmo estado, região ou país. “Em Paranavaí, naquele tempo, mineiro era chamado de nortista e nortista aqui era considerado ladrão para os migrantes preconceituosos. Sofri muito com isso”, lembra o pioneiro Sátiro Dias de Melo. O testemunho é endossado pelo pioneiro cearense João Mariano que viu muitos peões e colonos nordestinos serem escravizados por migrantes do Sul e Sudeste nos anos 1950 e 1960.

De acordo com Ephraim Machado, a heterogeneidade podia ser vista como um problema social, já que Paranavaí lembrava uma colônia dividida em pequenos povoados. “Os nortistas e os sulistas eram muito diferentes, então o distanciamento foi inevitável. Sem dúvida, algo que interferiu na evolução local. Paranavaí demorou para começar a se constituir como o que chamamos de sociedade nos moldes atuais”, avalia Machado.

População demorou para se articular socialmente (Foto: Toshikazu Takahashi)

População demorou para se articular socialmente (Foto: Toshikazu Takahashi)

A facilidade de acesso às terras fez Paranavaí receber muita gente diferente, não apenas migrantes que sonhavam com um pedaço de terra para construir uma moradia, plantar e assegurar o futuro da família. Aventureiros e oportunistas das mais diversas regiões do Brasil, até mesmo assassinos e ladrões, vinham para a região, crentes de que encontrariam um lugar isolado e de muitas riquezas. “O governo até fretava aviões para abandonar criminosos nas matas virgens das imediações de Paranavaí. O objetivo era não ter despesas e responsabilidades com essa gente”, diz João Mariano.

Pelo país afora, a colônia era conhecida como um local administrado pelo poder público, com pouca interferência da iniciativa privada. “Muitos gostaram daqui por isso”, declara Mariano. Já cidades colonizadas por companhias não atraíam tanta gente assim. O custo de vida não era barato e o investimento era maior em função do planejamento minucioso. E claro, também tinha mais exigências e mais burocracia. Outro diferencial é que em áreas loteadas pelo poder público havia menor participação de autoridades e maior facilidade na realização de negociações escusas.

Intimidada pelo baixo custo dos lotes da antiga Fazenda Brasileira, a Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP), conhecida por vender imóveis por preços mais altos, criou uma situação desconfortável entre as décadas de 1940 e 1950. “A companhia chegou até Nova Esperança e ali parou. Eles queriam nos isolar. Não deixavam ninguém fazer nada em Paranavaí, inclusive convenciam quem queria investir aqui de que seria um mau negócio”, lamenta Mariano.

Nos tempos de colonização, Paranavaí foi palco de muitas brigas de corretores de imóveis. “Não esqueço que em 1950, antes de me casar, eu morava no Hotel Real, na antiga Rua Espírito Santo, e ali mesmo o Cangerana assassinou um sujeito por causa de comissão de terras”, relata Machado. Os pioneiros também se recordam do episódio em que um homem matou na Avenida Paraná, no prédio do antigo Banespa, três pessoas que o enganaram em uma negociação.

Ephraim Machado: "As pessoas partilhavam apenas os mesmos interesses econômicos" (Foto: Toshikazu Takahashi)

Ephraim Machado: “As pessoas partilhavam apenas os mesmos interesses econômicos” (Foto: Toshikazu Takahashi)

“Os maiores crimes dos tempos da colonização foram provocados por causa de comissão e não disputa de terras”, ressalta Ephraim Machado, embora admita que houve muitas situações em que o capitão Telmo Ribeiro, braço direito do ex-diretor da Penitenciária do Estado do Paraná, Achilles Pimpão, e amigo do interventor federal Manoel Ribas, teve de intervir em casos de grilagem de terras. Ribeiro foi proprietário de uma fazenda que se transformou no Jardim São Jorge.

No entanto, nada se sabe sobre as implicações legais das atuações de grileiros em Paranavaí, deixando subentendido que muita gente pode ter construído fortunas sem se submeter, em qualquer momento, aos rigores da lei. “Desconheço qualquer caso de alguém de Paranavaí que foi punido por causa disso. Ainda assim, sei que encrenca maior se deu na Gleba Sutucu, Areia Branca, dos Pismel e também na Gleba 23. Teve quem foi tirado da terra à força. Juridicamente, não tenho a mínima ideia de como tudo foi feito”, comenta Machado.

O fato de Paranavaí ser tão grande até o início dos anos 1950 facilitava a grilagem de terras. À época, a colônia tinha uma vasta área que ia até as fronteiras com os estados do Mato Grosso (área do atual Mato Grosso do Sul) e São Paulo. Quem iria fiscalizar tudo isso e com quais recursos, sendo que hoje, mesmo com tantos avanços, ainda existe grilagem no Brasil?”, questiona João Mariano.

Sátiro de Melo: "Mineiro era chamado de nortista e nortista aqui era considerado ladrão para os migrantes preconceituosos" (Foto: Toshikazu Takahashi)

Sátiro de Melo: “Mineiro era chamado de nortista e nortista aqui era considerado ladrão para os migrantes preconceituosos” (Foto: Toshikazu Takahashi)

Uma transformação social imposta pela pecuária

O pioneiro Ephraim Marques Machado explica que até os anos 1960 era comum um proprietário de terras contratar meeiros para se responsabilizarem pela produção agrícola. “O camarada ia até São Paulo e Minas e falava: ‘Olha, eu tenho 200 alqueires em Paranavaí e vou produzir 100 mil pés de café. Preciso de cinco famílias e dou a ‘meia’ para plantar. Então ele dividia tudo em partes iguais e cada um cuidava de um pedaço”, exemplifica. Com isso, o bom resultado financeiro foi garantido até o surgimento das geadas. A última que castigou a região foi a de 1975.

Nas décadas de 1960 e 1970, Machado viu centenas de meeiros de Paranavaí migrarem para as regiões de Toledo, Marechal Cândido Rondon, Umuarama e Naviraí, no Mato Grosso do Sul. Outros se mudaram para o Norte. Muitas propriedades foram transformadas em pasto depois de 1964 e 1965, quando a colonização caiu bastante. “É aquela: ‘onde entra o boi sai o homem’. O café já não tinha mais tanto valor e o pasto acabou com o que sobrou”, pondera Ephraim. Quem partiu para novas frentes de trabalho trocou a lavoura de café por algodão, amendoim e arroz.

Fazendas que tinham 300 alqueires e garantiam o sustento de pelo menos 15 famílias passaram a ser ocupadas por apenas uma. Em outros casos, nem isso. “A migração modificou a sociedade local. A própria cultura da cidade passou por uma transformação”, enfatiza Ephraim Machado.  A partir da década de 1970, Paranavaí, que até então atraiu tanta mão de obra para as lavouras, chamou muita atenção de empreendedores e pecuaristas de outras cidades e estados. Eram pessoas de alto poder aquisitivo que aqui se fixaram para ocupar posição de grande status econômico e social.

Saiba Mais

Nos anos 1950, já viviam em Paranavaí, além de migrantes de todas as regiões do Brasil, portugueses, italianos, alemães, poloneses, russos, ucranianos, tchecos, iugoslavos, húngaros, espanhóis, neerlandeses, japoneses, franceses, suíços, sírios e libaneses, além de outros povos.

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No tempo dos engraxates

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O preço médio para engraxar um par de sapatos era um cruzeiro

Antonio de Menezes: “Não se trabalhava pela produtividade ou dinheiro, mas pelo aprendizado” (Foto: Vincenzo Pastore)

Já havia muitas crianças em Paranavaí, no Noroeste Paranaense, no começo dos anos 1950. Para estimulá-las a ocuparem o tempo livre quando não estavam na escola, os pais autorizavam que os filhos exercessem alguma atividade remunerada. “Não se trabalhava pela produtividade ou dinheiro, mas pelo aprendizado”, comenta o artista plástico Antonio de Menezes Barbosa que em 1949, aos cinco anos, aprendeu a diferenciar diversos tipos de cultura, pouco tempo depois de ganhar uma enxada do pai Augusto de Mendonça Barbosa.

À época, os mais jovens que residiam na área urbana de Paranavaí descobriram na engraxataria uma atividade regular. Dezenas de garotos percorriam as vias mais movimentadas da cidade, como a Avenida Paraná e ruas Minas Gerais, Marechal Cândido Rondon, Manoel Ribas e Getúlio Vargas, sem se intimidar com o “areião”, para ganhar uns “trocados” engraxando calçados. As principais referências eram as áreas do antigo Terminal Rodoviário Urbano, Prefeitura, Bar Gruta da Onça e Hotel Elite.

Artista plástico era engraxate em Paranavaí em 1951 (Foto: David Arioch)

O preço médio para engraxar um par de sapatos era um cruzeiro, dinheiro que normalmente era usado pelas crianças para comprar sorvete de groselha. “A gente comprava em uma sorveteria de uma família de origem japonesa, próxima ao Bar Gruta da Onça. Era um sorvete muito delicioso”, afirma sorrindo Barbosa que se tornou engraxate aos sete anos, em 1951. Na Rua Marechal Cândido Rondon, entre o Banco do Brasil e a Ótica Pupila, havia uma famosa engraxataria, muito bem frequentada. Lá, dois garotos conhecidos como Chiquita e Ligueira trabalhavam para um homem a quem pagavam comissão.

“Era tudo muito tranquilo. Não havia preocupação em saber quanto cada um ganhava. O pessoal tratava bem e lembro que uma vez juntei 100 cruzeiros”, relata. Recentemente o artista plástico reencontrou um cliente de quem na infância engraxou muitos sapatos pretos de pelica na Rua Minas Gerais. O movimento sempre aumentava nos finais de semana, quando colonos e peões que trabalhavam na derrubada de árvores retornavam à cidade. Com base em uma estimativa, pode-se dizer que cada criança engraxava pelo menos cinco pares de sapatos por dia.

Réplica rústica da caixa usada por Antonio de Menezes (Foto: David Arioch)

Muita gente desembarcava na primeira parada de ônibus de Paranavaí, o Ponto Azul, onde eram assediados pelos engraxates mirins. As crianças os cercavam e gritavam: “Vai graxa, aí? Vai engraxa?” “Dava pra trabalhar o dia todo. Comprava graxa da marca nugget na Casa São Paulo. Tinha latinha de dois tamanhos. A gente passava com escova de dente ou de engraxar”, relata Antonio de Menezes. Para dar um brilho nos calçados, a garotada não dispensava o paninho de flanela. E claro, nem os clientes que faziam questão de cobrar quando o serviço não era completo.

Barbosa tinha a própria caixa de engraxate, o que era um privilégio para poucos, pois podia trabalhar sozinho e onde quisesse, sem precisar cumprir horário ou prestar contas do serviço. Porém, a função não era bem encarada por todos os moradores de Paranavaí. “A figura do engraxate já era de uma pessoa marginalizada, de alguém que não era de confiança”, desabafa Antonio de Menezes que conquistou um bom número de clientes fiéis, mas no início da adolescência desistiu da atividade para trabalhar na área comercial. O auge dos engraxates em Paranavaí se estendeu até a década de 1960.

A boa mão para a engraxataria fez Barbosa ser chamado para um serviço na casa de um homem conhecido como “Seu Euquério”, ex-gerente da Boa Táxi Aéreo. “Um dia, ele me pagou só para encerar o piso da casa dele com cera canário e dar um brilho no assoalho”, conta rindo.

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Demarcação da Brasileira foi feita a pé

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Primeiras vias de Paranavaí foram demarcadas em 1942

Aos poucos, a colônia ganhou contornos de cidade (Acervo: Fundação Cultural)

Quem vê hoje as ruas, avenidas e estradas de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, nem imagina que toda a área foi demarcada a pé, sem auxílio de qualquer meio de transporte. Tudo começou no início dos anos 1940, quando a colônia ainda era conhecida como Fazenda Brasileira.

Em 1942, Ulisses Faria Bandeira, funcionário da Inspetoria de Terras do Governo do Paraná, dirigida por Francisco de Almeida Faria, foi transferido de Londrina à Fazenda Brasileira para demarcar a primeira via da colônia, a Avenida Paraná. O trabalho de Bandeira teve relação direta com a chegada de migrantes.

Aparentemente, a demarcação simbolizava o interesse do Governo do Paraná em investir no desenvolvimento do povoado, o que atrairia a atenção dos migrantes que por aqui passavam. A estratégia deu certo e em setembro de 1943 muitas pessoas chegaram ao povoado.

Naquele tempo, atrair quem buscava melhores condições de vida era uma tarefa complicada, pois o acesso a Paranavaí era tão precário que nenhum caminhoneiro de Londrina [cidade por onde passavam os muitos migrantes que vieram para cá] aceitava realizar um frete até a Brasileira por menos de 1,5 mil cruzeiros, preço muito elevado se comparado a outros destinos.

Ainda assim, muitos insistiam na viagem, pagavam o que fosse para chegar ao povoado do qual se ouvia falar muito bem em Londrina. Mas como a propaganda sempre supera a realidade, a verdade é que a Brasileira era bem desorganizada, se resumia a um amontoado de pessoas de diferentes etnias dispersas por todos os lados. “Quando cheguei aqui só a Gleba 1-A tinha sido demarcada, um trabalho do engenheiro Alberto Gineste”, lembrou o pioneiro Ulisses Faria Bandeira.

Hugo Doubek: “Toda a demarcação foi feita sem condução” (Acervo: Fundação Cultural)

Em 1942, já não havia mais casas disponíveis. As que restaram da época do Distrito de Montoya [nome de Paranavaí até 1930] foram desmanchadas e realocadas em outras áreas. Por muitas vezes, os colonos pensaram em ir para o mato derrubar árvores para aproveitar a madeira. Porém, ninguém na colônia tinha equipamento e veículo necessário para o serviço. “A madeira ainda era trazida de Marialva [no Norte Central Paranaense], então sugeri a construção de uma serraria”, relatou Bandeira.

“Só achei os primeiros colonos a vinte quilômetros”

Aos poucos, a Fazenda Brasileira ganhou contornos de cidade, graças ao empenho do inspetor Ulisses Faria e do administrador da colônia, Hugo Doubek, que fizeram o trabalho de demarcação territorial a pé, tendo como referência a localização de todos os moradores do povoado. “Recebi a ordem para achar toda aquela gente, obedecendo certa metragem que margeava córregos e rios. Foi tudo feito sem condução, e só achei os primeiros colonos a vinte quilômetros da Inspetoria de Terras”, destacou Doubek.

Em 1944, a Gleba 1-A, ocupada principalmente por paulistas, mineiros, cearenses e pernambucanos, já somava 30 quilômetros de estrada que a ligavam a Paranavaí. Em uma antiga entrevista ao jornalista Saul Bogoni, Bandeira revelou que havia inúmeras colônias em Paranavaí porque muitos pioneiros chegaram antes de 1940, o que foi percebido somente durante o trabalho de campo.

A Gleba 2 foi a única área da Brasileira não demarcada por Doubek e Bandeira. Quem se encarregou do trabalho em janeiro de 1944 foram os engenheiros Artur Oliva e Lota Chimoca que percorreram área superior a 15 mil alqueires, onde ainda havia muita vegetação primitiva. “A Gleba 2 tinha como ponto de partida a estrada que vai para o Porto São José”, salientou Ulisses Faria que naquele ano tomou a iniciativa de investir no abastecimento de água. Bandeira conseguiu uma bomba com motor a gás para fazer a captação. A ideia beneficiou mais de cem famílias.

Curiosidade

Um registro de propriedade da Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco) prova que Paranavaí já era habitada em 1910, à época a região era chamada de “Pirapó”.

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Charretes se destacavam na década de 1950

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Meio de transporte era muito usado pela população de Paranavaí

Charretes circulavam principalmente pelas regiões do Ponto Azul e Zona do Baixo Meretrício (Acervo: Fundação Cultural de Paranavaí)

Nos anos 1950, o meio de transporte mais usado pela população de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, era a charrete. O serviço que tinha um custo baixo ficava disponível o dia todo em três pontos da cidade. Pioneiro lembra que os charreteiros tomavam conta de todas as ruas numa época em que os automóveis eram acessíveis a poucos.

As charretes surgiram em Paranavaí na década de 1940, mas se popularizaram em 1950, quando houve um bom crescimento populacional registrado a partir de 1948. Com o aumento do número de moradores, surgiu a necessidade de um serviço de meio de transporte que facilitasse a vida em comunidade. “Foi aí que alguns migrantes tiveram a ideia de trabalhar como charreteiros. Quase ninguém tinha carro, e como tudo ainda era longe, já que nem todo mundo tinha condições de morar na região central, o jeito era pagar pelo serviço de charrete”, relatou o pioneiro cearense João Mariano, acrescentando que o preço de uma “corrida” era acessível.

Por volta de 1955, havia em Paranavaí mais de 80 charreteiros que se dividiam em três localidades: Ponto Azul, Avenida Paraná e Zona do Baixo Meretrício, quase em frente à Boate da Cigana [onde se situam os prédios Catuay e Guarapari]. Muitos dos pioneiros que atuavam no ramo eram ex-peões que trabalharam na abertura de estradas e derrubada de mata.

Aqueles que não deram certo como comerciantes e produtores rurais também usavam cavalos e bois para outra finalidade. “O serviço de peão era pesado e sofrido, então acontecia do sujeito guardar um dinheirinho, comprar um cavalinho, uma carroça velha, mandar reformar e transformar em charrete”, explicou Mariano. Outros compravam madeiras, procuravam materiais que podiam ser aproveitados e a construíam por conta própria.

Os charreteiros eram contratados principalmente para levar passageiros ao Ponto Azul e ao Aeroporto Edu Chaves [atual Colégio Estadual de Paranavaí (CEP)], além de transportar pessoas até a Zona do Baixo Meretrício. “Uma charrete chegava a fazer até dezenas de viagens num dia. Tinha época que tinha muito serviço, mas de vez em quando diminuía um pouco por causa de alguma crise agrícola”, relatou o pioneiro, acrescentando que o modelo da carroça variava conforme a situação financeira do carroceiro.

Enquanto algumas ofereciam o mínimo de conforto, como um assento estofado, muitas eram mais simples, com bancos de madeira. “Numa corrida curta quase ninguém se importava com isso, mas se o trajeto fosse um pouco mais longo ficava desconfortável. Tinha peão que chegava a descer da carroça com o corpo duro”, brincou João Mariano que nunca se esqueceu das muitas oportunidades em que viu as ruas da cidade tomadas por dezenas de charretes.

Segundo o pioneiro, estranho era o som de um motor em meio a tantos animais trotando, galopando e relinchando. “Quando fazia muito calor, e no fim da tarde os charreteiros voltavam pro ponto, às vezes traziam um vento que levantava a poeira das ruas de chão batido. O céu avermelhava enquanto o solo arenoso as donas de casa castigava, sujando toda a roupa do varal, mas fazer o que se era mais um dia de trabalho normal?”, poetizou João Mariano.

As ruas de cascas de peroba

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As primeiras vias de Paranavaí foram pavimentadas com restos de madeira

Zé Ebiner pavimentou a Avenida Paraná e a Rua Getúlio Vargas com cascas de peroba (Foto: Reprodução)

Na década de 1940, quando as vias de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, eram compostas por faixas de areia, os pioneiros usaram cascas de peroba como alternativa de pavimentação para o tráfego de veículos.

O marceneiro José Ebiner é o pioneiro da pavimentação em Paranavaí. Na época em que a colônia era chamada de Fazenda Brasileira, teve a ideia de cobrir as vias, que se resumiam a faixas de solo arenoso batido, com cascas de peroba. “A Velha Brasileira era puro areião. Então o Zé Ebiner inventou o calçamento. Isso não começou com os nossos prefeitos não. Foi com a gente usando cascas de madeira”, afirmou o pioneiro paulista José Ferreira de Araújo, conhecido como Palhacinho, em entrevista à Prefeitura de Paranavaí décadas atrás.

O marceneiro tomou a iniciativa de cobrir o solo arenoso da Avenida Paraná e da Rua Getúlio Vargas com os muitos restos de madeira que sobravam na serraria. “O Zé Ebiner foi um dos primeiros pioneiros. Quando cheguei aqui a primeira coisa que fiz foi comprar madeira dele”, relatou Palhacinho. O pioneiro paraibano Cincinato Cassiano Silva faz coro às palavras de José Ferreira. “A primeira serraria privada de Paranavaí foi do Ebiner”, comentou.

Pioneiros lembram que a comunidade se uniu para transportar as cascas de peroba e esparramá-las pelas vias da Brasileira. “Era só jogar nas ruas que já dava um pavimento bom pra passar um pé-de-bode”, declarou José Ferreira. Os restos de madeira proporcionavam mais firmeza as vias e também beneficiavam os pedestres.

Em dias de Sol, os transeuntes podiam caminhar sobre as cascas para evitar sujar os calçados. Já quando chovia, o pavimento improvisado permitia que escapassem da lama. “A ideia do Ebiner ajudou muito a gente”, enfatizou Araújo, acrescentando que é impossível falar de madeira nos tempos da colonização sem citar o marceneiro.

O pioneiro paulista Valdomiro Carvalho prestou muitos serviços a José Ebiner. Carregou um grande número de toras de árvores que serviram para a construção de residências, casas comerciais e pavimentação. “Eu puxava tudo com um carretão de bois. Ia lá pra mata bruta derrubar figueiras, perobas, paus d’alho e palmitos. Quase todos os tipos de madeira”, complementou Carvalho.

Ebiner ajudou a construir o estádio e o Grupo Escolar

De acordo com o pioneiro paulista Natal Francisco, Ebiner contribuiu na criação do primeiro estádio de Paranavaí, onde é atualmente a Praça dos Pioneiros. “Ele me ajudou muito. Cobrou pouco pela mão-de-obra e pela madeira”, destacou. O marceneiro também teve participação importante na viabilização do primeiro hospital local.

“O Zé Ebiner deu madeira para construir o Hospital do Estado e também o Grupo Escolar [primeira escola de Paranavaí, onde se situa hoje o Colégio Estadual Marins Alves de Camargo]”, revelou o pioneiro gaúcho Otávio Marques de Siqueira. Parte da madeira aproveitada pelo marceneiro, que também forneceu matéria-prima para a construção da primeira igreja, pertenceu a Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco) nos tempos em que Paranavaí era conhecida como Distrito de Montoya.

O pioneiro José Ferreira desabafou que nos anos 1940 a vida na colônia era muito difícil. O povoado era praticamente ignorado pelo Governo do Paraná. “A gente teve que fazer muitos sacrifícios como esse da pavimentação. Vivíamos no completo abandono, autoridades estaduais nunca vinham pra cá confortar o povo. Éramos obrigados a decidir tudo. O que valia era a palavra de cada um que vivia aqui”, reclamou.

Só a partir de 1946, a Colônia Paranavaí ganhou outras serrarias. Um homem conhecido como “Seu Pombalino” abriu uma na Avenida Distrito Federal, próxima ao Posto São José. Era pequena, mas também ajudou bastante. “Depois veio a marcenaria do Otto”, ressaltou Cincinato Cassiano.

O gado dormia no centro de Paranavaí

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Bois e vacas passavam a noite nas ruas mais movimentadas da cidade

Nos anos 1940 e 1950, os animais eram criados soltos (Acervo: Fundação Cultural de Paranavaí)

Entre os anos de 1940 e 1950, era muito comum encontrar mais animais do que pessoas circulando à noite por Paranavaí, no Noroeste Paranaense. O gado tomava conta das ruas de maior tráfego, onde aproveitava para descansar e dormir até o dia amanhecer.

Na década de 1940, a população de Paranavaí começou a perceber um comportamento incomum. Com a chegada da noite, os bovinos abandonavam as propriedades e iam até o centro da cidade. Lá, deitavam e dormiam sem se preocupar com a presença de transeuntes. O que facilitava a movimentação do gado era o fato de serem criados soltos. “Não tinha mangueira, nem nada pra cercar naquele tempo”, contou o pioneiro José Ferreira de Araújo, conhecido como Palhacinho, em entrevista à Prefeitura de Paranavaí décadas atrás.

Como ainda não havia iluminação nas ruas, os moradores só saíam à noite com lanterna farolete ou lampião para não trombarem com os animais. “Pra piorar, tinha um fumaceiro danado que começava na Inspetoria de Terras e ia até onde é hoje a Praça dos Pioneiros. Isso acontecia porque havia muitos cipós na cidade e o pessoal colocava fogo em tudo”, lembrou Palhacinho que durante a colonização encontrou muitos bois, vacas e cavalos deitados nas ruas. A Avenida Paraná, a via mais importante de Paranavaí na época, era a preferida dos animais.

Paranavaí no tempo em que o gado dormia na região central (Acervo: Fundação Cultural de Paranavaí)

Com o tempo, o gado se espalhou pela cidade. Quando o Cine Theatro Paramounth foi inaugurado em 1948, os animais já tinham o hábito de dormir na Rua Marechal Cândido Rondon, nas imediações da Banca do Wiegando. “Ficava cheio de vacas deitadas. Já estavam acostumadas. O gado fazia as sujeiras e a gente estava sempre sujeito a pisar em cima”, relatou Araújo, acrescentando que os animais ficavam no centro até o dia amanhecer.

Houve casos também em que o gado invadiu propriedades. Ninguém tinha o costume de murar ou cercar as casas. Os animais eram tranquilos, mas surpreendiam ao serem vistos no interior de cozinhas e salas das residências dos pioneiros. As invasões aconteciam quando estavam com fome.

Paranavaí começou a crescer em 1946

Paranavaí começou a se desenvolver a partir de 1946, graças a chegada de muitos migrantes que ouviam falar muito bem a respeito do povoado. Com o crescimento populacional, o comércio também se expandiu. “Construímos uma capela e fizemos as primeiras festinhas. Em 1947, o Ulisses Faria Bandeira [agrimensor e ex-prefeito de Paranavaí] fez a primeira pavimentação de uma rua, lá em frente a Praça dos Pioneiros”, contou Palhacinho, pioneiro que buscava cascalho e areia no Porto Mirador.

Naquele ano, chegou tanta gente em Paranavaí que “parecia a corrida do ouro”, segundo o pioneiro mineiro José Antonio Gonçalves. Para acomodar os migrantes e imigrantes foi construído um grande albergue perto da Praça da Xícara. “Todo mundo era acolhido lá”, enfatizou.

Ainda em 1947, o Governo do Paraná parou de conceder terrenos para a construção de moradias na região central. O objetivo era fomentar o comércio, destinando lotes na área somente a quem tivesse intenção de abrir um negócio. “Ainda tinha muitas estradinhas e ranchos esparramados por Paranavaí. A ideia era organizar isso tudo. Não esqueço que o Ulisses foi o responsável por cortar as ruas”, declarou.

O Tabuinha Alto e o Tabuinha Baixo

Um fato que hoje chama atenção, mas era muito comum no final dos anos 1940, era o costume dos migrantes de encostarem tábuas nas residências. “O povo que chegava em Paranavaí fazia isso e dormia embaixo das tabuinhas pro lado de fora da casa. Foi assim, no alvoroço, que o povo começou a construir para um lado e para o outro”, revelou Araújo.

Quando todas as casas de Paranavaí eram construídas com tábuas, dois rapazes ganharam destaque. Eram os responsáveis pelo transporte de quase toda a madeira usada na construção das residências. “Conhecidos como Tabuinha Alto e Tabuinha Baixo, eles quem cortavam a madeira e faziam as tabuinhas. Também desmontavam de um lugar para levar pra outro”, salientou Palhacinho.

Tabuinha Alto e Tabuinha Baixo fizeram sucesso quando havia poucos veículos em Paranavaí. Quase todo mundo comprava madeira da dupla. “Graças a eles, logo tivemos um monte de casinhas em Paranavaí”, comentou.

Frase da pioneira Ana Maria Estrada

“A casa era rodeada de mato e as vacas dormiam na porta do armazém.”