Archive for the ‘Avô’ tag
Seu Santo contra a matança de animais
No final dos anos 1940, meu avô conheceu uma fazenda de café em Paranavaí onde era proibida a matança de animais. Havia dezenas de casebres, e quem quisesse trabalhar e viver ali era obrigado a aceitar o fato de que não era permitido se alimentar de animais. Qualquer morte de animal era punida com expulsão. O dono da fazenda era conhecido como “Seu Santo”.
Ele andava mancando porque em 1944 levou uma mordida de onça na perna direita, perdendo parte de massa muscular e de massa óssea. No dia do acontecido, a onça saltou sobre uma árvore assim que ouviu o barulho de um Ford movido a gasogênio. Logo dois jovens desceram armados e se posicionaram para abatê-la.
Ciente de que ela seria morta, Seu Santo apenas gritou com os filhos: “Deixa ela. Tá no direito dela. Foi a gente que invadiu isso aqui.” O deitaram na carroceria do caminhão e partiram rumo ao Hospital do Estado. Esse lugarejo existiu por mais de 30 anos, até ser abandonado em decorrência das últimas grandes geadas. Hoje resta apenas quiçaça e uma história que parece recôndita sob a terra fragilizada.
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As histórias do vovô
Meu avô, pai de minha mãe, faleceu no final de fevereiro. Desde criança, nunca o chamei de vô, mas sim de vovô. Ele foi o último dos meus avós a partir. Já não tenho mais nenhum. Não escrevi a respeito no dia do falecimento, isto porque acho que na data em que uma pessoa próxima morre os sentimentos e as lembranças de quem fica não estão na mais perfeita sinergia.
Normalmente estão em estado de transição da irrealidade para a realidade, e o que se pode escrever nesse estado pode não representar exatamente o que se quer. E comigo sempre foi assim. Gosto de escrever sobre alguém quando estou no meu estado sereno de avaliação das coisas.
Antes do vovô falecer, antes mesmo de imaginarmos que isso aconteceria, a nossa convivência se tornou diária por quase dois anos. Gravei horas e mais horas de bate-papo com ele. Sentávamos em “cadeiras de área”, como ele dizia, ao lado das pimenteiras e de outros alimentos orgânicos que ele cultivava. Abelhas o visitavam todos os dias no mesmo horário, e ele nunca se incomodava. Muito pelo contrário, comemorava.
Decidi registrar tudo que ele narrava porque isso é importante, porque os idosos são os livros da cultura oral. A matéria do vovô poderia desaparecer, mas não a essência do que ele tinha a oferecer. Ele não era um ser humano perfeito, assim como também não sou, mas foi com ele que aprendi a amar histórias e contá-las.
Ele era uma biblioteca ambulante, um memorialista. Desde a minha infância, devo ter passado milhares de dias sentado ao seu lado ouvindo histórias de um passado remoto, que quase ninguém conhece porque não foi registrado nos livros. Quero dizer, pelo menos até eu decidir conservar suas palavras.
Hoje, digo que o vovô foi o maior contador de histórias que conheci na minha vida, e quando o vi dentro de um caixão, com o corpo gelado e a tez rija, eu já sabia que ele não estava mais lá, mas sim dentro de todos aqueles que resguardaram suas histórias.
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O menino Valdir
Zombava ao ver uma barreira invisível me impedindo de ultrapassar a soleira da padaria
Eu tinha cinco anos quando meu avô João chegou em casa falando do menino Valdir. Tranquilo e compenetrado, continuei no sofá assistindo desenho animado. Ele sentou ao meu lado e disse que Valdir era tão dedicado que gostava dele como se fosse seu próprio neto.
Naturalmente comecei a sorrir, mostrando os dentes com bisonhice e observando a expressão serena em seu rosto esfíngico e ainda pouco crispado. De repente, questionei: “Quem é menino Valdir?” – crente de que se tratava de nome e sobrenome. Ele coçou o queixo liso, recém-barbeado, hesitou e falou que era um menino muito esperto e da minha idade. Segundo vovô, Valdir gostava de ajudá-lo em qualquer circunstância.
Fiquei intrigado e imaginei quem seria esse garoto. “Eu conheço o menino Valdir?”, perguntei à minha mãe na cozinha enquanto ela amaciava a longa massa de pão girando um rolo à manivela. Respondeu que não, voltei para a sala e continuei encucado. “Menino Valdir, menino Valdir, menino Valdir, menino Valdir, menino Valdir…”, pensei antes de dormir, como uma dessas crianças que contam carneirinhos, observando o forro amadeirado e envernizado do quarto.
De madrugada, vovô invadiu meus sonhos passeando de mãos dadas com Valdir. Sorridentes, os dois caminhavam até a Panificadora Pão de Açúcar, onde ele presenteava seu neto postiço com os doces mais caros e mais bonitos da vitrine. “Como você é bonzinho, Valdir. Seus pais devem ter muito orgulho de você. Saiba que és a melhor criança do mundo”, comentava.
Valdir, que só balançava a cabeça em concordância, gargalhava e apontava o dedo para mim. Zombava ao ver uma barreira invisível me impedindo de ultrapassar a soleira da padaria. Fui obrigado a assisti-los do lado de fora, ouvindo o ronco do meu estômago. Sentia que havia um cabouco dentro de mim, uma fome tão avassaladora que deixava meu corpo minúsculo tiritante.
Escorado no batente, minha visão enturvecia conforme eu reconhecia a olência edulcorada de alguns doces que em meu mundo diminuto e inaudito eram os mais deliciosos do mundo. Performático, Valdir mastigava com ledice. Repartiu um pãozinho em dois pedaços, apontou o recheio cremoso e frutado em minha direção, lambeu os beiços e simulou que me daria um pedaço.
Levantou do banquinho, veio em minha direção e, faltando dois passos para chegar até a soleira, esticou o braço e recuou. Macarrônico, retornou fazendo o clássico moonwalk, de Michael Jackson, acompanhado de uma fosquinha. Sentou, fechou os olhos rapidamente, suspirou e abocanhou o pão que em poucos segundos desapareceu dentro de sua boca de rapa-tachos. “Por que, vovô? Por que, Valdir? Por que tão fazendo isso?”, retumbavam inúmeros fraseados ribombados que singravam intrincados dentro da minha mente.
Langoroso e atento a tudo que acontecia no interior da padaria, nem me dei conta de que eu estava completamente nu, com exceção dos pés envolvidos por um par de chinelinhos do Zé Colmeia. Só percebi o supra-realismo da situação quando ouvi gritos ensandecidos de uma multidão que me observava do outro lado da Avenida Distrito Federal. Tentei tapar minhas partes íntimas com as mãos, mas não adiantou. Pelado, corri ruborizado até o cruzamento com a Rua Getúlio Vargas, indo em direção ao Jardim São Cristóvão.
Ao meu redor, os motoristas reduziam a velocidade, colocavam suas cabeças titânicas como melancias janela à fora e gritavam com embocadura de hipopótamo: “Pelado, sem vô e faminto, isso que é um azar do quinto!” As vozes continuavam ecoando por todos os lados. Eu corria e não chegava a lugar algum, como se estivesse sobre uma esteira. De repente, o dia virou noite e o céu azul como um oceano prepóstero desvaneceu.
No firmamento, eu via somente escuridão, um vazio abissal. “Cadê a lua e as estrelas?”, refleti, até que centenas de olhos de coió surgiram entre as fendas que se abriram na abóbada celeste. Eram pretos, castanhos, azuis, verdes, cinzas, fulvos, rosáceos, enfim, de todas as cores possíveis e impossíveis. Eles me vigiavam e me acompanhavam com a destreza indefectível de um mecanismo automatizado, e com precisão de lentes telescópicas.
Para todos os olhos havia apenas uma boca. Não! Uma bocarra tétrica que parecia prestes a engolir meu mundo e me deixar vagando pelo sempiterno da inexistência terrena. “O que você quer? Fala logo, baixote!”, projetou o vozeirão macambuzio com um hálito vigoroso e vicejante como das hortas caseiras de hortelã. A cada palavra, ela me lançava uma aragem que esvoaçava meus cabelos com ferocidade e arrancava as folhas dos galhos de uma sibipiruna que me protegia, evitando que eu fosse arrastado.
Tive dificuldade em manter os olhos abertos – esbraseavam por causa da violência lancinante da ventania que sibilava e chiava, me motivando a abraçar o tronco da árvore com minhas mãos miúdas que afundavam em seu dorso, enchendo as unhas de vestígios moscados de coscorão. Num impulso, gritei que só queria voltar para casa. “Por favor! Nunca mais vou seguir o vovô e o Valdir!”, prometi com olhos marejados.
As lágrimas escorriam pelo meu rosto rubicundo, desciam pelo corpo e afrouxavam o elástico do par de chinelinhos tornado escorregadio como pele de sapo. Cabisbaixo, silenciei e quase desmaiei, com a visão ligeiramente embaçada. Só despertei com a chuva morna e torrencial tocando meus cabelos e ombros com a graciosidade de um cafuné e um abraço. Era colorida e tinha cheiro e sabor de sodinha.
Observei novamente o céu e vi centenas de olhos encharcados. O choro se transformou na chuva que aquecia meu corpo, afastando a friagem. Depois, todas as fendas findaram no céu e a água prosseguiu sua jornada solitária, se intensificando e formando uma pequena corrente caudalosa que me arrastou até a Rua Pernambuco. Quando abri o portãozinho de casa, um forame sem fundo surgiu logo abaixo dos meus pés. Não consegui me afastar – era tarde demais. Enquanto eu caía, tudo ao meu redor se desfazia. Subitamente tive um espasmo hipnico e acordei. Três anos depois, o mesmo pesadelo retornou, só que pela última vez.
Naquela madrugada, sentado na cama, me recordei de todos os episódios que vovô viveu com Valdir, tantas experiências e histórias partilhadas. Então tomei uma decisão. Caminhei até a varanda, onde vovô repousava em uma cadeira – ouvindo rádio e vendo a frugal movimentação de passantes na rua, e pedi que me levasse para conhecer o menino Valdir. Ele me observou atentamente em silêncio, sorriu e revelou: “Valdir nunca existiu, a não ser dentro da minha e da sua mente, onde a criatividade floresce sem um pedaço de semente.”
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A velhinha mais colorida de Paranavaí
Gostava tanto de gente, encontros e desencontros da vida infrequente, que por anos morou em um hotel
Minha avó, Dona Clara, mãe de minha mãe, foi a pessoa mais colorida que conheci. Ela e meu avô já tinham se separado quando nasci. Então cada um começou a viver à sua maneira, de forma independente. Dos tempos de pequenez, ecoam na minha mente lembranças da época em que ela chegava em casa sorridente, ajeitando os cabelos lisos, curtos e claros como milho no verão. Sempre trazia algo na mão, chocolate, doce de abóbora, de banana, ou de feijão. Com uma voz bonançosa, não se irritava com facilidade. Me parecia alheia ao mundo e principalmente à modernidade.
Em casa, falava de sua rotina com um lampejo nos olhos dourados e um regalo recalcitrante que faria o mais autoconfiante sentir-se pouco significante. Relatava suas aventuras ao reencontrar ocasionalmente conhecidos e velhos amigos nas suas andanças que ultrapassavam mais de 10 quilômetros diários. Gostava tanto de gente, encontros e desencontros da vida infrequente, que por anos morou em um hotel no centro de Paranavaí. “Oi, vovóó!”, dizia sempre acenando com a mão esquerda. “Ooooi, Deeeivi!”, respondia ela na satisfação sonora de um riso seminal. Quando criança, achei que minha vó tinha nascido vó. Não tinha a mínima ideia de que um dia ela tivesse sido diferente. Afinal, o mundo reconhecido por mim no meu universo diminuto era aquele que conheci a partir do dia em que nasci.
No sofá, vovó me colocava em seu colo e cantava. Eu segurava suas bochechas rosadas, sutilmente flácidas e macias com as minhas mãos minúsculas e dizia sempre que acabava: “Vamos de novo, vovó!” Ela ria e eu sentia suas contrações abdominais chegando até as solas dos meus pés que vibravam e formigavam a ponto de causarem cócegas. Eu gargalhava junto, até avermelhar, eriçando os pés e tocando o queixo com os joelhos.
A cada intervalo, eu olhava seu rosto níveo e escarmentado com ternura, sem reconhecer rugas, sinais e queimaduras causadas por tanto tempo de exposição ao sol na época em que trabalhava nas roças de café de Paranavaí e Alto Paraná. Suas mãos tinham traços desconhecidos por mim, linhas paralelas que se cruzavam antes do fim. Estava sempre perfumada. Quando eu a abraçava, seu bálsamo me acompanhava. “Que cheiro é esse, David? Onde você tava?”, questionavam meus amigos assim que saíamos às ruas para jogar bola. “É cheiro de vó”, replicava.
Seus pés conheciam Paranavaí de norte a sul. Caminhante que era, chamava a atenção ao longe com alguma longa saia ou vestido colorido. Independente de frio ou calor, o que não podia faltar era o fulgor de uma boa cor. O seu apego à natureza, as flores, trazia no corpo com destreza. Quantas formas de estampas iriantes, combinando com os brincos rutilantes – o mais airoso dos penduricalhos de orelha, a faixa sarapintada na cabeça e uma bolsa grande com rajadas de centelha.
Era vaidosa, sem dúvida, mas de uma vaidade moderada e singela que ocasionalmente a motivava a mudar a cor dos cabelos. “É importante colorir pelo menos até vibrar diante da luz do sol”, dizia ela com um sorriso galhardo enquanto massageava o couro cabeludo com a ponta do dedo sulcado. “Lá vem a Dona Clara…parece que nunca cansa”, uma frase que se repetia dezenas de vezes por tantas ruas da cidade. Aposentada, sempre carregava sua bolsa onde armazenava o que comprava, o que vendia e o que doava. Quando eu a encontrava e oferecia carona, ela gentilmente recusava. Justificava que há uma fase na vida em que passa a ser importante sentir as pedrinhas do asfalto tocando a sola do sapato, ouvir os animais reclamando nos portões, as idas e vindas das pessoas dos rincões.
Não queria perder nada de um dia a dia rasteiro que a motivava. Estar a pé na rua bastava. Com tantas expressões impolutas e dissolutas de gente conhecida e desconhecida, ela se jubilava. “O mundo aqui fora é engraçado porque é feito de caretas”, brincava. A mixórdia de perfumes, a zaragata do tudo e do nada, quanta coisa frugal a cativava. Ainda a ouço abrindo o portão de casa, o som de sua rasteirinha conduzida por passos bailaricos de quem raleia o chão extraindo som cadenciado do piso. Suas inúmeras pulseiras nos braços brandiam com suavidade. “Chegou minha vó, a senhora dos ventos e da liberdade”, concluía. Pela sua natureza, perfil esotérico e exotérico, muitos achavam que a Dona Clara era cigana, uma autêntica romani importada da Romênia. Despreocupada, ela ria, se divertia, crente de que todos tinham o direito de acreditar em coisa qualquer, desde que aquilo não prejudicasse uma pessoa sequer.
Na cozinha, se aproximava da mesa, abria a bolsa e tirava de dentro algo que trouxe para a minha mãe, para mim e meus irmãos. Os olhos intumesciam na esperança de ver saltar alguma guloseima. E sempre acertava. Perdi as contas de quantas vezes ela levou e meu irmão Douglas numa mercearia sem fachada na Rua Piauí. Era um paraíso recluso para crianças. Íamos lá à noite, uma vez por mês, depois do horário comercial. Seu Luiz, homenzarrão de quase dois metros, abria a porta de acesso dos funcionários e percorríamos todos os corredores numa felicidade tangente e columbina. Havia doces artesanais que já não existem mais, embalados com desvelo num papel cinéreo, o mesmo que usavam para armazenar pão. Se sorríamos, ela sorria. Nos despedíamos do Seu Luiz, trazendo nas mãos e nos bolsos taliscas moderadas embora adocicadas de alegria. Assim que a porta se fechava, desvanecia o feixe de luz que tocava a soleira da mercearia.
Vovó não ignorava o aniversário de ninguém, jamais deixou de presentear alguém. Sabia a data de aniversário de todos os parentes e amigos. Não tinha apego material, tanto que esqueceu as muitas vezes que emprestou dinheiro e nunca recebeu. Narrava esses fatos da vida gargalhando e galhofando. Sequer franzia a testa ou arvorava as sobrancelhas. Mantinha o semblante quiescente, sentada com as pernas cruzadas, a postura perfilada e as mãos sobre o joelho direito em um banco de madeira na varanda de sua casa. “Quer suco? Também tem bolo de laranja, Deivi”, oferecia em tom melífluo nas visitas semanais que eu lhe fazia desde os primeiros anos de vida.
Independente, sempre preferiu morar sozinha. Ninguém conseguia convencê-la do contrário, mesmo após alguns episódios em que supostos amigos furtaram-lhe eletrodomésticos e a modesta aposentadoria. “Não tem problema. No mês que vem recebo e compro de novo”, replicou sem qualquer indício de exaltação. Se comprazia em viver rodeada de gente, principalmente excluídos sociais. Ainda criança, eu via minha vó como a rainha dos marginalizados.
Foi em sua casa que tive o primeiro contato com picaretas, vagamundos, usuários de drogas, viciados em jogatina, estelionatários, cafetões, mendigos, prostitutas, travestis e ex-detentos. Suas portas estavam abertas para todos os tipos. No entanto, quem não respeitasse suas regras não poderia retornar. Um dia, quando a visitei, me deparei com um homem de aproximadamente 30 anos sentado na varanda. Usava uma camisa branca tão surrada que só não expôs sua débil forma física por causa da sujeira e do sangue seco, além de uma calça social cinza esfarrapada.
Estava descalço e a sola do seu pé era tão espessa que parecia calçar alguma coisa. A barba se confundia com os cabelos desgrenhados, carpelados e grisalhos. “Oi, Deivi. Esse é o Gibé. Ele vai ficar aqui até arrumar um emprego ou um lugar pra ficar”, confidenciou depois de servir uma sopa de legumes ao indigente que só meneava a cabeça e sorria expondo alguns dentes vaporosos e amolecidos. O malfadado tinha apanhado na noite anterior quando dormia ao lado do pombal no Terminal Rodoviário Urbano.
A Dona Clara era um desses seres que Nietzsche definiria como espírito livre. Avessa à raiva e ao ódio, tinha mais o que fazer do que guardar rancor ou perder tempo com o que não enobrece a alma ou a vida. Aos 74 anos, adorava dançar. Não perdia um baile no Clube Idade Dourada e no Tênis Clube de Paranavaí, onde fazia amizade em poucos minutos de conversa. Girava pelos salões com um desprendimento transcendental, entregando-se à alegria sem ressalvas, porque a reconhecia na essência como fortuita e passageira.
Com minha vó e minha mãe, eu ia todos os anos ao Cemitério Municipal de Alto Paraná visitar os túmulos de minha bisavó e de meus dois tios-avôs. No dia 2 de novembro de 2008 estávamos perto do túmulo do tio João quando uma brisa solene massageou meu rosto. A Dona Clara se aproximou de mim e comentou: “Deivi, nunca deixe de vir aqui. Eles precisam da nossa lembrança, da nossa presença. Sempre que venho aqui sinto um afago, uma quietação no coração.”
Aquele dia ela chorou diante de cada túmulo, numa despedida não declarada. Em 20 de dezembro do mesmo ano minha avó faleceu em decorrência de um ataque cardíaco. Compareceu tanta gente ao velório que eu não conhecia nem 1/3 do total. Ainda assim reconheci prostitutas, ex-usuários de drogas e andarilhos, pessoas que minha avó ajudou. Quando saí da capela para ficar um pouco sozinho, observei os galhos de uma sibipiruna se movendo com placidez.
Por trás da copa, a lua começou a despontar. Um homem sorriu diante de mim e perguntou se eu o reconhecia. Respondi prontamente que não. Era o Gibé. Parecia bem saudável. Estava corado, bem vestido, com os olhos grandes como duas jabuticabas e tão perfumado que até quem passava na esquina sentia no ar um aroma oriental – amadeirado e apimentado. “Moro em Maringá. Tenho uma empresa de consultoria em commodities”, revelou.
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