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Deusdete, o peão que se tornou exemplo de superação
“Posso dizer que os políticos mais atrapalharam do que ajudaram no crescimento de Paranavaí. É uma cidade marcada por mais injustiça do que justiça”
Em 1952, aos 22 anos, o pioneiro Deusdete Ferreira de Cerqueira deixou Monte Alegre, na Bahia, e viajou de trem de Mundo Novo até a divisa com Minas Gerais, onde subiu em um caminhão pau de arara que parava em qualquer lugar onde alguém acenasse com a mão. Mais adiante, entrou em outro trem na divisa com São Paulo. “Em Ourinhos, peguei o ônibus e a mala errada. Desci com a bagagem de um companheiro. Quando cheguei em Paranavaí, entreguei a mala dele. Perdi tudo”, conta Deusdete às gargalhadas, acrescentando que as malas azuis de madeira foram feitas pelo próprio irmão.
Depois de nove dias de viagem, o pioneiro chegou a Paranavaí em 9 de julho de 1952. A ideia de sair da Bahia surgiu quando Cerqueira ficou sabendo que um irmão do seu cunhado estava morando em Paranavaí. “Viemos em cinco, incluindo meu irmão e outro parente. Parei na Pensão São João, em frente ao Posto Minas, onde fiquei uma semana. Lá estava hospedado um rapaz que era gerente da fazenda onde meu irmão e cunhado trabalhavam”, relata.
O homem que ficaria conhecido como Toninho do Cartório administrava uma fazenda em Itaúna do Sul, onde Deusdete começou a trabalhar como peão. Meses mais tarde, a inexperiência o deixou com as mãos tão feridas que teve de assumir o posto de cozinheiro nas incursões pela mata virgem da região. Depois de preparar a boia, tinha de levá-la para os peões.
O trabalho era tão difícil que poucos resistiam. “Até quem tinha uma vida ruim na cidade natal preferia voltar assim que recebia um dinheirinho, inclusive meu irmão. Eu quis vencer e sempre fui da opinião de ficar”, afirma. Um dia, Deusdete Ferreira percorreu três quilômetros de mata fechada para levar o café da tarde aos peões. Durante o trajeto, se deparou com uma peroba enorme caída no meio de um estreito carreador. Receoso, olhou para um lado e para o outro.
Ao longe, viu uma onça e ficou tão desesperado que gritou, jogou tudo no chão e saiu correndo. Quando chegou ao galpão, teve de aguentar as broncas do fiscal e dos peões. “E olha que onça não pegava ninguém cara a cara. Ela se escondia e atacava de surpresa”, comenta Deusdete rindo e lembrando que como peão trabalhou na abertura de muitas estradas de três a cinco quilômetros de extensão nas fazendas. Naquele tempo as ferramentas mais usadas eram o machado e o traçador.
Cerqueira também derrubou muitas árvores de cedro e canjerana usadas na construção de residências, tulhas e casinhas para manter a sustentação dos pés de café. O salário baixo não o esmorecia. Em pouco tempo foi promovido a subempreiteiro, responsável pela contratação e fiscalização do trabalho de 10 a 20 peões. “Buscava gente nas pensões de Paranavaí e levava pro mato. Fazia o trabalho de peão e ganhava um pouco mais pra cuidar do serviço da turma e cozinhar. O trabalho se estendia por até 12 horas”, enfatiza.
Nos tempos da colonização de Paranavaí, eram poucos os que se arriscavam a trabalhar como subempreiteiro, já que havia peões brutos. Entre os mais valentes, a moda da época era o bigode com as pontas mirando os olhos. Armados e bravos, não gostavam de lidar com os teimosos, nome dado aos empreiteiros sem experiência profissional, como era o caso de Cerqueira.
Uma vez, trabalhando na Fazenda 5R, o patrão atrasou o pagamento e Deusdete teve de vender o próprio encerado para pagar os peões. “O cara poderia até te matar se você não pagasse. Então era preciso se virar”, explica o pioneiro que também complementava a renda comercializando leite, leite condensado e fumo.
A situação só melhorou quando Cerqueira recebeu uma proposta do proprietário da Pensão Jacobina, onde vivia há um bom tempo. Sem condições de assumir a derrubada de 200 alqueires de mata em uma propriedade em Mirador, que pertencia ao diretor da Mercedes-Benz, o homem ofereceu a Deusdete a oportunidade de coordenar metade do trabalho, desde que ele recebesse uma parte dos lucros.
Deu tudo certo e plantaram 200 mil pés de café. A força de vontade de Cerqueira era tão grande que quando faltava comida ele saía de Mirador a pé para fazer compras em Paranavaí. A vantagem era que o proprietário do armazém mandava entregar tudo de caminhão. “Tinha gente que derrubava o mato e deixava margens de quiçaça de pelo menos 10 alqueires, o que era um problema na hora do plantio de café. Nesses casos os fazendeiros geralmente dispensavam ou davam preferência para outras pessoas”, pontua.
Quando o trabalho na mata durava meses, era normal o empreiteiro montar um barracão para vender alimentos aos peões, principalmente arroz, feijão, jabá e peixe. Deusdete percebeu que a maioria tinha o costume de comprar pinga, beber e abandonar a garrafa. Então ele as recolhia e levava para a cidade. “Eu percorria dois quilômetros a pé para trocar por garrafas cheias. Daí à noite, como eu sabia que os peões não tinham mais pinga pra beber durante o jogo de baralho, eu aparecia com as garrafas e vendia os copinhos de pinga”, garante.
Após as noitadas de bebida e jogatina, os peões se amontoavam em um barracão e dormiam sobre camas de palhas de milho e sacos que antes serviram para o armazenamento de carne seca. Quando esfriava, faziam fogueira, mas tinham o cuidado de isolá-la para evitar incêndio. Aos domingos, Deusdete lucrava de outra forma. Enquanto os demais relaxavam ou jogavam, ele ia até uma mina, onde lavava as roupas dos peões sobre uma pedra. Só entregava à noite. “Como fazia frio, ninguém reclamava e pagava certinho”, assegura.
Em 1958, Cerqueira deixou o trabalho na mata e usou as economias para comprar o Bar Continental, um dos pontos preferidos da população mais humilde de Paranavaí. O estabelecimento antes pertencia a uma família italiana que veio do Rio de Janeiro. No local o movimento era constante. Além do espaço amplo e das dez mesas de sinuca, a freguesia era atraída por cerveja, whisky, gim, Fogo Paulista, Cinzano, conhaque de alcatrão São João da Barra, cachaça Jurubeba, pinga Tatuzinho, refrigerantes Garoto, cigarros e charutos. “Eu vendia dois tipos de cerveja. Só que tinha uma que ninguém queria, então quando todo mundo ficava bêbado eu tirava o rótulo da cerveja boa e colocava na outra. Aí bebiam do mesmo jeito”, confidencia gargalhando.
Anos depois, Deusdete viveu uma situação constrangedora. Um dia houve briga e troca de tiros em um bar ao lado do Bar Continental e o chamaram na delegacia para se explicar sobre o acontecido. “Falei que não foi no meu bar e ainda provei. Não deram a mínima para o que falei porque a confusão tinha acontecido em um local frequentado pelos ricos e poderosos de Paranavaí. Queriam me culpar, já que eu não era ninguém na cidade”, reclama.
Com a experiência de quem se tornou comerciante na Bahia quando era criança, Deusdete ganhou dinheiro o suficiente para comprar uma casa na Rua Pernambuco e investir em pequenas propriedades rurais. “Adquiri uma chácara de um português atrás do 8º Batalhão da Polícia Militar. Depois vendi e comprei cinco alqueires do pioneiro Severino Colombelli perto da Fafipa [Faculdade Estadual de Educação, Ciências e Letras de Paranavaí]”, assinala.
Cerqueira viu uma boa oportunidade quando o governo começou a pagar para que os produtores rurais cortassem seus pés de café. Numa época em que as terras eram desvalorizadas, Deusdete comprou propriedades cheias de café, derrubou os cafezais e, seguindo a determinação governamental, plantou outra cultura por dois anos. “Quando ficava pronta, eu vendia pro vizinho. Fui indo, comprando e vendendo, até que consegui adquirir uma área de mais de 35 alqueires. Vendi também e comprei outra na Água da Cobra, perto do finado Luiz Lorenzetti”, cita.
Mais tarde, com a ajuda de Raul Piccinin, comprou uma fazenda de café de pouco mais de 100 alqueires em Santa Isabel do Ivaí. O imóvel pertencia a um senhor árabe de Londrina, conhecido como “Seu Nagibe”. Em 1965, Deusdete vendeu o Bar Continental, adquirido com o dinheiro que ganhou trabalhando na fazenda em Mirador. “Não cheguei e comprei. Continuei trabalhando até quitar o valor total. Falava-se em reserva de domínio. Depois vendi a minha metade do bar para um sócio”, revela e informa que o bar abria às 8h e fechava por volta da 1h.
Mais tarde, investiu em uma fábrica de malas de duratex na Rua Santa Catarina, no cruzamento com a Rua Souza Naves. Além de 10 funcionários, tinha também um caminhão. Deusdete vendia tantas malas que precisava viajar de avião com frequência para São Paulo, onde buscava matéria-prima na indústria de Paulo Maluf.
Em melhores condições financeiras, o pioneiro adquiriu a Fazenda Nova Marília, com 120 mil pés de café, de um fazendeiro árabe chamado Ney Jorge. Aproveitou que os bancos estavam oferecendo financiamento com juros baixos e investiu.
Deusdete e Raquel se casaram após um mês de namoro
Em 1960, depois de oito anos em Paranavaí, Deusdete Ferreira de Cerqueira foi para a Bahia rever a família. Desembarcou de avião em Feira de Santana e subiu em um caminhão pau de arara com destino a Angico, onde na infância já costumava participar da feira, vendendo galinha, fumo de corda, rapadura, leitoa e banana. “Vi uma mocinha e gostei muito dela. Fiquei na casa do primo João Soares e ela parava lá porque tinha comércio também. Então deu certo da gente namorar. Antes falei com a família dela. A mãe aceitou, até porque o pai da Raquel era afilhado do meu avô e nossas famílias moravam perto. Mas exigiu que eu ficasse lá. Eu disse que não porque estava recomeçando a vida no Paraná”, narra.
Após um mês de namoro, o vínculo de confiança entre os dois era tão forte que decidiram se casar na Bahia com a bênção das duas famílias. Deusdete tinha 30 anos e Raquel Reis, a primeira de uma família de 14 irmãos a sair da Bahia, tinha 18. “Vim pra um lugar completamente diferente, mas não foi muito difícil. Senti muita saudade da família. Fui me adaptando, construindo a vida, fazendo amizades. Gosto de Paranavaí. Lá eu morei 18 anos e aqui 55 anos, então aqui é a minha cidade. Meus filhos nasceram aqui e pretendo ficar aqui por toda a vida”, diz Raquel Reis de Cerqueira.
Deusdete declara que não seria quem é hoje se não fosse a companhia de Raquel. Segundo o pioneiro, a esposa só merece elogios. “O casamento me ajudou demais. Minha mulher me acompanhou desde o começo. Sofreu muito quando tínhamos filhos pequenos e íamos de um lugar para o outro na tentativa de melhorar de vida”, analisa.
“Única coisa que me deu prejuízo foi a política”
Ao receber o convite dos amigos para ser candidato a prefeito de Paranavaí em 2000, Deudete Ferreira de Cerqueira aceitou porque tinha o sonho de ver Paranavaí retomar o caminho do desenvolvimento que rendeu tanta popularidade ao município até o final da década de 1960. “Única coisa que me deu prejuízo foi a política. Você não vence uma eleição se não gastar. Banquei tudo do meu bolso. Gastei demais. É claro que ganhando R$ 4 mil por mês eu nunca iria recuperar isso”, admite.
Porém, o que desanimou mais Deusdete não foram os gastos com a campanha, mas sim o que veio depois. Sem grandes apoiadores, sentiu o peso da influência dos grupos políticos mais representativos de Paranavaí. Um deles interviu para que o município não recebesse recursos dos governos estadual e federal. “Paranavaí tinha R$ 3,5 milhões para receber. E só consegui fazer esse dinheiro chegar depois de muito tempo. Eu não tinha apoio. Dei R$ 1 milhão para a Santa Casa de Paranavaí e sobrou R$ 2,5 milhões. Foi o único recurso que recebi na minha gestão”, desabafa, acrescentando que a cidade tem uma história política marcada pela malandragem de grupos que agem como mafiosos.
A preocupação maior não era o futuro da cidade, mas sim atrapalhar o trabalho do poder público municipal. “Meu apoio era a minha família e o povo que acreditava em mim. Muita gente me defendeu, mas minha família sofreu muito por causa da exposição”, afirma Deusdete e revela que os opositores só não conseguiram prejudicar sua imagem porque ele não devia nada a ninguém. De 2001 a 2004, o então prefeito teve de trabalhar no limite, contando principalmente com recursos municipais.
“Não fiz tudo que gostaria porque não havia muito dinheiro, mas pelo menos deixei para a população algumas escolas novas, reformei praças, ruas, avenidas, investi um pouco em saúde e nos pequenos empresários. Tenho orgulho de ter ajudado na criação de uma cooperativa de costura para mais de 600 donas de casa. O resultado foi bom, mas quando saí acabaram com a cooperativa”, lamenta.
Cerqueira relata que deu continuidade a vários projetos do prefeito anterior. No entanto, desabafa que desde que Paranavaí surgiu a cidade é castigada pela inveja entre prefeitos. É rara a preocupação de não sacrificar o progresso em benefício próprio. “Por que Paranavaí não cresceu tanto quanto os outros municípios? Tínhamos tudo nas mãos, mas aqueles que têm o poder sempre fizeram o possível para que a cidade ficasse para trás. Sabe por quê? Porque eles se beneficiam disso”, enfatiza.
Mesmo quando era prefeito, Deusdete Cerqueira teve de enfrentar o preconceito. Ouvia ofensas até nos corredores da prefeitura. “Sofri muito por causa da minha cor e por ter pouco estudo. Nunca deixei de passar por essa situação. Só que enfrentei tudo de cabeça erguida, ignorando quem me agredia. Não me arrependi de ser prefeito, mas o resultado não foi o esperado. Posso dizer que os políticos mais atrapalharam do que ajudaram no crescimento de Paranavaí. É uma cidade marcada por mais injustiça do que justiça”, avalia.
Saiba Mais
Deusdete Ferreira de Cerqueira nasceu no dia 13 de março de 1930.
Frases do pioneiro e ex-prefeito Deusdete Ferreira de Cerqueira
“Tudo que tenho eu devo a Paranavaí.”
“Prefeitura foi feita para ser tocada como uma empresa, um comércio. Não pode ser administrada com base na politicagem.”
“Peguei a prefeitura com uma dívida de R$ 2,7 milhões. Paguei tudo e não deixei nenhuma dívida quando saí.”
A saga de um mineiro em Paranavaí
Sátiro Dias de Melo, do Vale do Jequitinhonha para o Noroeste do Paraná
Foi com um facão e um machado de quatro libras que o mineiro aposentado Sátiro Dias de Melo, de 91 anos, conquistou boa fama no Vale do Jequitinhonha nos anos 1930. Mais tarde, colocou o talento à prova no Paraná e Mato Grosso do Sul, onde outra vez surpreendeu pela habilidade na derrubada de mata.
“Tinha essa popularidade porque era bom no traquejo. Com 15 anos, poucos cortavam comigo, tinham dificuldade de acompanhar o ritmo”, conta Sátiro. O facão usado em Minas Gerais e Bahia nos anos 1930 e 1940 também veio ao Paraná na década seguinte. Dentro de uma mala, o instrumento viajou de trem e de ônibus até chegar a Paranavaí em 1952.
Nostálgico, enquanto acaricia o cabo e a lâmina do facão, o pioneiro diz que deixou marcas de corte até nas beiras dos rios Paraná e Paranapanema. “Ajudei a abrir cidades e estradas. Fui muito longe, trabalhei até do lado de lá, quando o Mato Grosso do Sul ainda era Mato Grosso. Ele ‘tá’ acabadinho, tem mais de 70 anos, mas até hoje funciona, é só dar uma afiada”, destaca sorrindo.
Uma carta de Paranavaí
Sátiro teve a primeira notícia de Paranavaí por meio de um ex-namorado da filha que lhe escreveu uma carta elogiando a cidade e contando sobre as oportunidades de trabalho. “Logo pensei: que nome! É quase o mesmo do estado. Deixei a nossa propriedade rural na Bahia e trouxe a minha mulher e dez filhos pra cá”, lembra. O trajeto foi percorrido de trem e de ônibus. Só de Maringá a Paranavaí a viagem durou um dia.
Logo que chegaram, conseguiram abrigo na Pensão da Dona Amélia, onde mais tarde foi construído o antigo Posto Moringão, na Rua Souza Naves. Chovia tanto que a primeira atitude de Melo foi levar todo mundo para se lavar. “Ficamos descalços porque tinha lama pra todo lado. A Dona Amélia viu que a família era grande e falou que pra ajudar faria um sortido pra gente em vez de cobrar o preço de costume por cada refeição”, relata.
Naquele dia, por azar, enquanto se prepararam para o jantar, um ladrão lhes furtou as malas e correu pelos fundos, invadindo quintais e saltando muros. O homem foi alcançado a algumas dezenas de metros do Terminal Rodoviário. “Só consegui recuperar graças a ajuda de um morador que se tornou meu amigo”, lembra o aposentado.
A vida na Fazenda Domingos de Almeira
Em 1952, quando começou a trabalhar na Fazenda Domingos de Almeira, o pioneiro acompanhou o caso de dois colonos que venderam uma vaca da propriedade para um açougueiro local. “Eles achavam que o Almeira nunca iria descobrir. Inventaram uma desculpa de que o animal tinha escapado, mas ele não acreditou”, relata. Para despistar o fazendeiro, a dupla pediu que enviassem uma caminhonete para buscar a vaca próxima a um riacho. Sátiro ouviu um diálogo suspeito e relatou ao administrador da propriedade. Foram até o córrego investigar o desaparecimento do animal e encontraram um bezerro abandonado.
À época, Paranavaí só tinha três açougues. No terceiro, identificaram a vaca pelo couro salgado nos fundos do estabelecimento. “O Edson, que era o gerente da fazenda, voltou para a colônia com a polícia. Foi um terremoto por dois dias. Só não prenderam os colonos porque eram casados e tinham filhos pequenos. Sem direito a nada, foram despejados em São João do Caiuá”, revela. Algum tempo depois, Melo começou a cuidar do gado da fazenda, inclusive entregava o leite ordenhado na cozinha da casa principal. A família ficou muito satisfeita porque tiveram a chance de morar em uma casa fora da colônia.
O preconceito contra os migrantes do Norte
Sátiro ainda se recorda do preconceito que sofreu quando morava perto de outras dezenas de colonos na Fazenda Domingos de Almeira. “Um dia, uma mulher disse para uma comadre cuidar muito bem das galinhas porque chegaram nortistas na colônia. Falou que baiano era tudo ladrão. Me deu vontade de ir embora daqui”, admite. Naquele tempo, muitos dos que deixavam os estados ao Norte para vir ao Paraná eram chamados de “nortistas”, até quem partia da região Sudeste.
O pioneiro atribui o preconceito às experiências negativas que os moradores tiveram com migrantes mal intencionados. Cita como exemplo ladrões e grileiros que buscavam “vida fácil” em vez de trabalharem. “Os bons que sofreram com isso. Lembro que era muito difícil uma pessoa que vinha do Norte conseguir comprar fiado. Vi muitos passarem fome enquanto esperavam o pagamento”, assegura.
A geada negra e o frio
Embora a geada que mais tenha marcado Paranavaí seja a de 1975, as duas anteriores nunca foram esquecidas por Sátiro. “A primeira foi a geada negra em 1953 e a segunda em 1955. Vi muita gente pagando para cortarem café, abandonando mesmo, e começando a fazer invernada. Eu ficava com muito dó. A imagem dos cafezais escuros, queimados e mortos me marcou para sempre. Tudo que era verde ficou preto”, frisa.
O desgosto do mineiro foi grande, mas ainda assim preferiu ficar, ao contrário de muitos outros migrantes. Teve de lidar com o desemprego e assistir ao fim dos pomares. “Nem laranjeira e abacateiro sobreviveram ao frio. Vi até o gado morrer com a geada. Para piorar, nem tínhamos roupas de frio. A gente andava quase nu, com aquelas roupas lisas, cavadinhas. Sofremos demais por isso”, revela. Paranavaí tinha fama de cidade chuvosa e nublada, tanto que era comum ver muitas pessoas nas ruas carregando enxada para desatolar veículos. “Só tinha estrada de chão, então todo dia eu resgatava alguém”, exemplifica Sátiro Melo que testemunhou brigas e assassinatos por causa de terras.
Quem ficasse uma semana longe do próprio imóvel corria o risco de perdê-lo. Sempre havia alguém circulando por Paranavaí, procurando propriedades sem moradores. “Conheci muitos que viviam disso. A pessoa perdia todo o trabalho limpando a fazendinha. Invadiam o local e quando o proprietário voltava não podia nem se queixar. Caso contrário, tinha que estar disposto a matar ou morrer”, pondera.
A amizade com Frutuoso Joaquim de SallesO mineiro Sátiro Dias de Melo foi amigo do controverso pioneiro pernambucano Frutuoso Joaquim de Salles, considerado o primeiro cidadão local, que chegou a Paranavaí em 1929, nos tempos do Distrito de Montoya. “Ele morava num lugar escondido na baixada do Jardim São Jorge. Gostava muito de conversar sobre laços, até porque foi vaqueiro. Ficava muito feliz quando reparavam no seu trabalho”, confidencia.
Já se fizessem perguntas sobre violência e crimes no período da Fazenda Velha Brasileira, Frutuoso desconfiava, mudava o semblante e encerrava a conversa. “Com quase todo mundo, ele era bem fechado, não facilitava o diálogo, mas comigo era diferente. Eu ia lá pra prosear, batia na porta, ele saía, olhava e quando via que era eu a abria na hora. Gostava de conversar com aquele velho pernambucano do bigodão’”, brinca. Sátiro foi parceiro de trabalho de Salles. Apesar do gênio difícil, o pernambucano foi considerado por Melo um homem muito trabalhador e confiável.
“O frutuoso não deixava de fazer nada que lhe pediam. Só que muita gente tinha medo dele, as ‘histórias corriam’. Ele morreu nos anos 1980, mas pra mim foi um bom amigo”, salienta. Em Paranavaí, é raro encontrar alguém que tenha conversado abertamente com Frutuoso Salles sobre o que aconteceu em Montoya e na Velha Brasileira entre os anos 1920 e 1940, quando muitos foram assassinados no povoado. Um dos poucos que tiveram essa chance foi Sátiro Dias.
“Ele era capanga do capitão Telmo Ribeiro e um dia me segredou que matou muita gente em Paranavaí. As vítimas eram enterradas debaixo dos pés de café, tanto que anos depois, quando vieram as geadas e muita gente preferiu acabar com os cafezais, acharam bastante ossada humana”, explica o mineiro. Antes de morrer, o pernambucano falou que os restos humanos encontrados não chegaram nem perto do total de mortos na “Brasileira”. “Uma vez, achamos ossada perto do prédio da antiga Telepar. Acredito que ainda tem muitos restos de gente por aí”, alega o pioneiro.
As aventuras com João do Mato
Não foram poucas as vezes que Sátiro Dias de Melo saiu para caçar com o amigo e caçador João do Mato. Como o fornecimento de carne bovina em Paranavaí nem sempre atendia a demanda, a dupla chegava a ficar de 20 a 30 dias na selva caçando cateto, veado, capivara e outros animais. “No mato, nunca faltava carne. O que passava pela espingarda, a gente atirava. Infelizmente, não tinha aquela consciência de preservação dos bichos”, confessa.
Por muitas noites, Sátiro e João do Mato foram intimidados por onças que passavam perto dos carreadores. Quando a ameaça era iminente, atiravam contra o animal. Os maiores perigos das incursões em território selvagem, a dupla vivenciou na região do Povoado de Cristo Rei e no Morro do Diabo, no Pontal do Paranapanema. Nessas áreas, a biodiversidade animal era tão grande que somente caçadores experientes se aventuravam pela região.
O folclórico cavalo Boneco
O cavalo Boneco foi um personagem popular em Paranavaí no final dos anos 1960 e princípio de 1970. Muito bem educado, o animal adestrado pelo pioneiro Sátiro Dias de Melo gostava de descansar atrás das moitas, mas sempre que ouvia o chamado do proprietário, respondia na hora. “Eu podia deixar ele solto que mesmo assim não fugia nem aprontava nada. Também não deixava ninguém colocar a mão nele, além de mim”, pontua.
Quando circulava pelas ruas da cidade, boneco chamava a atenção pela altivez, beleza e impecável sela feita por Sátiro. Muitos, principalmente mulheres, pediam para tirar fotos com Boneco, a quem precisava convencer durante uma “conversa”. “Era um bicho que nunca tinha apanhado”, acrescenta. Um dia o cavalo deixou que uma pessoa o roubasse. O mineiro passou horas o procurando, chamando o pelo nome, mas não adiantou.
Boneco estava em Tamboara, preso a uma mangueira. Quando quis partir, simplesmente quebrou a cerca e arrastou o arame farpado. Dias depois, Melo ouviu um relinchado ao longe e identificou o cavalo em disparada. “Chegou e ficou junto de mim todo machucado pelo arame. Estava com o peito bem ferido. Dei banho e cuidei dele até ficar bom de novo, então o vendi para um gaúcho. Nunca mais quis saber de ter cavalo”, assume.
A oficina
Famosa também era a oficina do pioneiro que atraía até viajantes de Minas Gerais e Mato Grosso, segundo o artista plástico Luis Carlos Prates. “Ele é um artista. A fama dele ia longe. Pessoas de muitos estados vinham a Paranavaí para contratar os serviços de ferreiro e curtidor do ‘Seu Sátiro’”, testemunha Prates. O mineiro era conhecido na região como o melhor manipulador de alumínio. Fazia desde instrumentos mais simples até peças para maquinários pesados.
“Trabalhei muito com fundição. Foram mais de dez anos. Criava cadeado de qualquer tipo e tamanho”, garante enquanto mostra o local de trabalho no fundo da residência onde reside desde a década de 1960. Aos 91 anos, ainda passa algumas horas do dia produzindo ou consertando alguma peça. A fama de Melo foi longe, tanto que em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul até hoje tem muita gente que se recorda de suas habilidades.
Há alguns anos, Sátiro retornou à terra natal, Jequitinhonha, Minas Gerais, onde nasceu em 12 de janeiro de 1921. Ficou chocado com o que viu depois de mais de 60 anos. “Ajoelhei à beira do Rio Jequitinhonha e chorei. Não era mais o mesmo, virou um córrego”, lamenta.
Curiosidade
Sátiro Dias de Melo se aposentou pela Prefeitura de Paranavaí em 1985, na gestão do prefeito Benedito Pinto Dias. Trabalhou durante muitos anos como “faz-tudo”.
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Terror sobre a ponte do Rio Itapicuru
Antonio de Menezes relata experiência como sobrevivente de uma tragédia ferroviária em 1951
No ano em que se mudou para Paranavaí, no Noroeste do Paraná, com a família, o aposentado e artista plástico Antonio de Menezes Barbosa teve uma das experiências mais marcantes de sua vida. Com apenas seis anos, participou de um acidente ferroviário sobre a ponte do Rio Itapicuru, na Bahia.
Em março de 1951, Barbosa fez parte de um grupo de 12 pessoas, entre familiares e amigos, que aguardaram uma semana para ingressar em um trem na Estação Ferroviária de Laranjeiras, a 19 quilômetros de Aracaju, em Sergipe. “Me recordo que o trem vinha de Aracaju e chegou às 6h. Naquele dia, estávamos eu, minha mãe, meu pai, irmãos, um tio e dois amigos, o ‘Seu Quelemente’ e a mulher dele, Maria, inclusive os dois já faleceram”, relata Menezes.
Enquanto o veículo ferroviário seguia o trajeto normal, o curioso Antonio se aproximou da janela para observar a paisagem. “Eu estava do lado direito e via os outros vagões conforme a curva ‘puxava’ para a direita. Paramos na estação de uma cidade que não me recordo qual e algumas pessoas desceram e outras subiram”, conta. Quando se aproximavam de uma ponte sobre o Rio Itapicuru, já na Bahia, os passageiros ouviram o trem apitando em velocidade moderada. De repente, o “plá plá plá” emitido pelas rodas sobre as emendas dos trilhos foi ofuscado por um grande estouro semelhante ao som de uma bomba.
“Era o barulho dos primeiros vagões caindo sobre os outros. Tenho até hoje isso registrado na memória. Aqueles que não caíram foram para um lado e para o outro”, afirma Antonio de Menezes. O acidente foi provocado pelo desmoronamento da ponte, após o trem percorrer poucos metros. Alguns passageiros disseram que com frequência aquele trecho da ferrovia recebia trens de carga, principalmente de cimento, o que pode ter comprometido a estrutura da ponte. Durante o tumulto do acidente, a família se dispersou. O vagão onde estava o pequeno Antonio ficou preso a outro vagão próximo a um pilar recostado ao aterro.
A movimentação dentro do trem aumentava de acordo com o desespero dos passageiros. Sem saber onde estavam os familiares, Barbosa não conseguia esquecer a cena de um homem caindo de um vagão sobre uma enorme placa sinalizadora de metal. “Ele caiu de uma maneira que a cabeça foi cortada como se fosse um melão, um corte tão limpo que nem vi sangue”, destaca.
Antonio de Menezes também viu inúmeras pessoas prensadas entre os vagões. Não falavam, apenas mexiam com dificuldades os braços e as pernas, instantes antes de morrerem. A cerca de oito metros do Rio Itapicuru, a ferrovia ladeada por um brejo ecoava os gritos de dor das vítimas. Barbosa se lembra de uma mulher com um braço quebrado e o outro agarrado a um morro, gemendo e clamando por ajuda.
Por sorte, a criança contou com a solidariedade de uma senhora que estava no mesmo vagão. A mulher o tratou muito bem, dialogando e o ajudando a se distrair da tragédia. Algum tempo depois, encontraram a família de Antonio. O pai, Augusto de Mendonça Barbosa, teve a iniciativa de retirar todas as malas e baús dos vagões menos danificados antes da chegada do atendimento emergencial. Pela atitude, o pai foi capa de um jornal de Sergipe.
De todos os familiares, apenas um dos irmãos de Antonio se feriu. José machucou o braço no momento do impacto. Apresar da gravidade do acidente, a maior parte dos passageiros sobreviveu. Muitos eram migrantes de mudança para São Paulo e Paraná. O plano da família de Barbosa, assim como de muitas outras, era estar em São Paulo na semana seguinte, porém tiveram de aguardar sete dias até a chegada de um trem com o mesmo destino. Nos dias chuvosos que se seguiram, os passageiros envolvidos na tragédia contaram com a hospitalidade dos moradores de um povoado.
“Coisa de quem nunca viu gelo”
Augusto de Mendonça vendeu tudo que possuía para se mudar para o Paraná. Interromperam a viagem quando chegaram a Rancharia, no interior paulista, onde passaram um mês. “Nunca tínhamos visto geada nem gelo, então quando esfriou numa madrugada, levantamos às 6h para subir em cima de um paiol coberto de sapé. Pegamos uma colher para recolher o gelo pra comer. Coisa de quem nunca viu”, comenta Antonio de Menezes às gargalhadas.
Já no Norte do Paraná, quando chegaram a Maringá estava chovendo, então o ônibus levou um dia para percorrer o trajeto até Paranavaí. O grupo de Mendonça desembarcou no primeiro terminal rodoviário da cidade, o Ponto Azul, em 9 de maio de 1951.
As balas de Corisco
Quando morava na Bahia, a mãe de Antonio de Menezes Barbosa costumava se esconder dos cangaceiros que circulavam pela região. “Meu pai tinha dois sítios em Coronel João Sá [no Nordeste Baiano]. Um já tinha sido invadido pelo Corisco, inclusive tinha marcas das balas do comparsa de Lampião”, ressalta.
A propriedade ficava próxima ao Rio Vaza-Barris e município de Geremoabo. Sempre que ouvia alguma notícia da chegada de Lampião e seu bando, a mãe e as amigas se escondiam no meio da caatinga, atrás das folhas de macambira.
Curiosidade
Antonio de Menezes Barbosa nasceu em 11 de setembro de 1944.
Benzedeira já foi presenteada com carro zero-quilômetro
Pela cura de graves enfermidades, mãe-de-santo ganhou três automóveis novos
A benzedeira baiana Clarice Pereira Eurinice é umbandista em Paranavaí há mais de 40 anos. Ao longo da carreira, a médium foi presenteada com três carros zero-quilômetro em retribuição pela cura de enfermidades.
A mãe-de-santo Clarice Pereira Eurinice adotou a umbanda como religião antes de sair da Bahia para vir ao Paraná. “Desde então eu olho o tarô, jogo os búzios, benzo e resolvo problemas espirituais e materiais. O nome do meu terreiro é Senhor O Bom Jesus de Nazaré e a minha guia é a Mãe Regina de Aruanda”, explica. O guia é o espírito que a ajuda a resolver os problemas daqueles que a procuram.
Para benzer, Clarice informa que não cobra. “Sempre benzo de graça. Cobro apenas quando querem que eu faça algum trabalho que exige despesas”, conta, acrescentando que por muito tempo sofreu pelo fato das pessoas verem a umbanda como uma prática maligna.
Idéias equivocadas já levaram pessoas com propósitos criminosos a procurarem a mãe-de-santo. “Queriam que eu fizesse trabalhos para assassinar inimigos, algo que vai contra os princípios da umbanda que é fazer o bem”, frisa. Por curar graves enfermidades, a mãe-de-santo já foi presenteada com três automóveis zero-quilômetro.
“Ganhei esses carros de pessoas que foram desenganadas pelos médicos, a enfermidade deles não era física, mas sim espiritual. Quando o problema é apenas físico, só a medicina pode resolver”, enfatiza Clarice.
A mãe-de-santo também se destaca pela habilidade em qualificar médiuns. A umbandista já formou 80. A maior parte dos discípulos exerce a atividade em outros estados e países, principalmente nos Estados Unidos.
Anualmente a benzedeira realiza doze festas que atraem aproximadamente 400 pessoas de Paranavaí e região. “Faço tudo no meu terreiro mesmo com a contribuição da comunidade. Dia 8 de dezembro sempre fazemos uma homenagem a Nossa Senhora da Conceição”, completa.
Clarice já atendeu pessoas de diversas regiões do Brasil
Clarice já atendeu pessoas de Londrina, Umuarama, Campo Mourão, Apucarana, Cianorte, Jandaia do Sul, Maringá, Nova Esperança, Alto Paraná e muitas outras cidades do Paraná. “Também já fiz trabalho para muitos de São Paulo, Cuiabá, Campo Grande, Dourados e até norte-americanos”, afirma a mãe-de-santo que obteve até reconhecimento do poder público. Há alguns anos, Clarice foi convidada a apresentar a umbanda em eventos do município.
Em dias de grande movimentação, a benzedeira atende até 20 pessoas. Caso o trabalho tenha relação com a luz branca, Clarice cobra cerca de R$ 10 por consulta, se necessário. “Se for de esquerda, não cobro menos de R$ 50. Nestes casos, sou procurada para desfazer trabalhos errados ou mandingas”, ressalta.
Toda última quinta-feira do mês, Clarice trabalha gratuitamente. “É o dia em que faço qualquer caridade, independente da dificuldade”, assinala. Nos outros dias, o preço do trabalho pode custar até R$ 3 mil. Segundo a benzedeira, para preparar um santo é exigido muito tempo e inúmeros médiuns, o que para ela justifica o valor. Para quem tem interesse em seguir a mediunidade, Clarice informa: “O primeiro passo é receber as ordens dos guias para preparar a vestimenta. Então depois de oito meses na corrente é feito o batismo e o juramento”, pontua.
Umbanda X Preconceito
A benzedeira Clarice Eurinice conta que aos 23 anos trabalhava em uma fazenda local quando foi mandada embora por ser umbandista. “Eu e minha família pegamos todos os nossos bens e fomos pra outra fazenda. Ao chegar lá também não nos aceitaram. Eu, meu marido e filhos ficamos sem ter pra onde ir”, relembra a benzedeira que mais tarde conseguiu abrigo em uma propriedade rural próxima ao Aeroporto Edu Chaves.
Segundo Clarice, foi com a renda do novo trabalho que conseguiu guardar dinheiro para comprar o terreno onde atualmente está construída a residência da família e o terreiro. “No início, era pequenininho e de madeira”, relata. Antes de ingressar na umbanda, o marido de Clarice era alcoólatra, porém, por influência da benzedeira o homem mudou de vida. “Se tornou um pai-de-santo de muita fé”, assegura. Hoje em dia, a família toda de Clarice segue a umbanda. São 14 pessoas ligadas a religião.
Memórias de um Paranagoano
Dedé é um desses pioneiros esquecidos pela história oficial, mas que contribuiu para a construção de um patrimônio
O autônomo José Jovino da Silva, conhecido como Dedé, de origem alagoana, abandonou o Nordeste e se radicou em Paranavaí em 1957. Aqui desempenhou muitas atividades, inclusive a de pedreiro na construção do Terminal Rodoviária Urbano, criado há mais de cinco décadas.
Dedé mudou-se para Paranavaí com o mesmo sonho de todos os migrantes e imigrantes: a oportunidade de uma vida melhor. Infelizmente, o objetivo pelo qual tanto lutou não foi alcançado, ou melhor, não da forma idealizada.
Mesmo assim, José Jovino admite, com calma e parcimônia, que nunca teve saudades da sua terra natal. “Saí de Alagoas com quatro anos, e do nordeste na adolescência, então me considero paranaense. Além disso, aqui se vive de forma mais digna, mais humana”, declara o autônomo que viveu na prática as agruras da seca nordestina retratada na obra “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos.
O sabor e o aroma da farofa de mandioca com jabá, Dedé ainda preserva na memória, como um elemento cultural catártico que por um instante anula as experiências trazidas pela fome e miséria durante a infância. “Lembro também da sede que sentia depois de comer”, diz o autônomo franzindo a testa e desviando o olhar. Tímido, José Jovino ri com as mãos tapando parte do rosto.
A iguaria tipicamente nordestina foi o principal alimento de José e mais 12 familiares durante sete dias de viagem, quando saiu da Bahia rumo a São Paulo. “Isso foi em 1955. Tinha 30 pessoas no caminhão pau-de-arara. Uma parte da carroceria estava ocupada por coco baiano e a outra parte por fumo arapiraca dos grossos. Viemos em cima de tudo isso. Embaixo tinha só uma lona”, afirma.
Durante a viagem mais longa de sua vida, deixando para trás amigos e familiares, Dedé teve a primeira experiência com uma fatalidade. Quando o caminhão estava chegando a Aparecida do Norte, em São Paulo, um senhor que sofria de distúrbios psicológicos saltou do caminhão, naquele momento, trafegando em alta velocidade. “Ele morreu na hora. Nem deu tempo de levar até um hospital. É uma cena que nunca saiu da minha memória”, informa em tom reflexivo.
Como se revivesse o passado, os olhos de José Jovino cintilam ao relembrar o primeiro contato com a malha viária. “Só conheci o asfalto em 1955. Também me emocionei no dia 7 de setembro daquele ano, quando vimos um desfile na Avenida Paulista, em São Paulo. Fiquei surpreso com um movimento tão bonito. Como fomos criados no mato, até babei de emoção”, frisa Dedé sorrindo e corando as maçãs do rosto.
De São Paulo, José Jovino veio ao Paraná. À época, com apenas 17 anos. Já estava acostumado ao trabalho braçal desempenhado desde os 14. Quando chegou a Paranavaí, Dedé conseguiu um serviço de colono, se responsabilizando pela produção de sete mil pés de café.
“Não deu certo porque houve uma crise financeira muito feia. Mas ainda bem que iam começar a construir o Terminal Rodoviário Urbano e me deram trabalho. Fiquei lá até o fim da obra. Lembro que tinha mais de 40 pessoas trabalhando”, reitera.
O autônomo José Jovino da Silva, 70, com fala mansa, disperso em um passado de satisfações e desventuras, diz que não sabe precisar quantas atividades desempenhou. “Já fui de tudo um pouco, mas nada me tomou mais tempo que a lavoura”, conta Dedé estendendo os braços e mostrando as mãos calejadas pelo trabalho braçal.
“Me sinto como se não existisse”
Na atualidade, o maior objetivo do autônomo é conseguir todos os documentos necessários para se aposentar. Sem qualquer registro de identificação, Jovino sofre por estar com a saúde debilitada e, mesmo assim, ter de trabalhar para se sustentar.
“Perdi tudo há 40 anos. Nem me recordo mais como é ter uma carteira de identidade. Durante muito tempo tive pelo menos o registro de nascimento, mas a casa em que morava tinha fiação elétrica muito velha e pegou fogo. Fiquei sem nada. Agora estou correndo atrás de novos documentos”, lamenta lacrimejando.
O desconhecido pioneiro sonha com a aposentadoria, para então tornar-se barbeiro, atividade que segundo ele não exige tanto esforço físico. “Antes tenho de voltar a existir legalmente. Me sinto como se não existisse”, comenta.
Saiba Mais
José Jovino da Silva nasceu em 1940.