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As lembranças de José Francisco de Oliveira

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“Tinha uma pensão onde as discussões sempre acabavam em morte”

Seu Zé: “A situação era feia até em Piracema. No distrito, tinha uma pensão onde as discussões sempre acabavam em morte” (Fotos: David Arioch)

O paulista José Francisco de Oliveira se mudou para Paranavaí em 1944, nos tempos da Fazenda Brasileira. À época, deixou Avaré, no interior de São Paulo, para trabalhar na abertura de estradas, embora tenha ouvido falar do Distrito de Montoya em 1932, quando Getúlio Vargas já havia desapropriado a região. “Eu era ‘molecão de tudo’ e contaram pra gente muito do que aconteceu aqui. Pra você ver como a história ia longe”, diz Oliveira que apesar de sofrer com a deficiência auditiva ainda se recorda com precisão de muitos fatos dos anos 1940.

“Seu Zé”, de 95 anos, como é mais conhecido, é um desses pioneiros que não fizeram fortuna e com o passar das décadas foram relegados ao anonimato, mesmo tendo contribuído para o desenvolvimento da região. O aposentado fala do passado sem ocultar um misto sentimento de alegria, tristeza e saudade. Hoje em dia, com o corpo e a voz cansada, sai pouco de casa, combalido por problemas de saúde.

Ainda assim, não se abstém de sorrir e gargalhar quando se recorda da mocidade e da família grande que hoje se resume a três pessoas. Por força do hábito, e da empolgação pela visita, não consegue se comunicar sem gesticular e faz o possível para detalhar com preciosismo cada um dos momentos que considera os mais históricos dos 68 anos vividos em Paranavaí.

Em 1944, ao chegar à Fazenda Brasileira, José Francisco de Oliveira desembarcou na pensão de Durvalino Moreira. Logo o pioneiro se tornou um dos responsáveis pela abertura da estrada que ligaria Paranavaí a Nova Esperança. ”Aqui era só capoeira e quiçaça. Quando chegamos à Capelinha [Nova Esperança], não tinha água e tivemos de abrir um poço com 90 metros de profundidade. Daí não quiseram fazer a cidade num ponto mais arriba e seguiram pra baixo”, conta. Além de ser encarregado de alguns peões, Seu Zé desmatava e carpia. Tinha de percorrer muitos quilômetros para fazer bueiros e pontes com lascas de coqueiro.

“Mas acontecia de não pagarem a gente por má vontade mesmo”

Por volta de 1945, Oliveira ajudou a ampliar uma estrada até Peabiru, na região de Campo Mourão. No mesmo ano, o chefe dos peões, José Augusto Machado, o encarregou de criar novas vias na Barra do Surucuá. “Abri até a fazenda do falecido Estevão. Em 1946, fui até Assaí [no Norte Pioneiro Paranaense] buscar minha mãe e meus irmãos”, relata. Na mesma década, viajou a Salamanca, a 32 quilômetros de Guaíra, no Oeste Paranaense, para trabalhar em novas áreas de desmatamento e construção de residências.

O pioneiro que nunca ficou mais de seis meses longe de Paranavaí também atuou na criação da estrada até Mirador. Seu Zé trabalhou muito, mas nem sempre recebeu pelo serviço. “Certa vez, o responsável pelas obras morreu numa terça-feira, daí falaram pra gente que o irmão dele poderia acertar a situação. Por azar, o outro morreu na sexta-feira e não recebemos de ninguém. Mas acontecia de não pagarem a gente por má vontade mesmo”, conta, acrescentando que o chefe dos peões na região de Paranavaí era amigo do interventor federal Manoel Ribas.

Nos anos 1940, era comum o assassinato de ladrões de madeira. Muitos eram mortos às margens do Rio Paraná. “A situação era feia até em Piracema. No distrito, tinha uma pensão onde as discussões sempre acabavam em morte. A vítima era enterrada logo atrás do estabelecimento”, lembra Oliveira. Outro fato que é mencionado com clareza pelo Seu Zé diz respeito a um pioneiro que se envolveu com uma mulher casada e foi assassinado pelo marido traído. No dia do julgamento do homem, um grupo de policiais fazia a escolta em frente ao fórum quando apareceu um rapaz atirando contra o suspeito. “Naquele tempo, você matava na frente da polícia e de testemunhas e ainda escapava da condenação”, comenta.

O pioneiro que encomendou a morte do homem traído era irmão do amante. Conhecido em toda a região como um violento grileiro de terras, o contratante ordenou o assassinato de outras dezenas de pessoas, entre fazendeiros e colonos. Ao longo dos anos, o homem que mais tarde recebeu até homenagens em Paranavaí fez tantas inimizades que certo dia pagaram para que o piloto responsável por levá-lo de avião até Londrina, no Norte Central Paranaense, saltasse de paraquedas, deixando o grileiro diante da morte. “Só sei que o sujeito morreu”, ressalta Seu Zé.

José Francisco de Oliveira presenciou a chegada de 300 bois trazidos a Paranavaí através do Porto São José, onde a travessia já era feita de balsa. À época, grande parte da carne bovina da localidade vinha do Mato Grosso ou São Paulo. O episódio se tornou inesquecível porque o fazendeiro que encomendou a boiada fez um acordo de pagar pelos animais ao final do percurso. Porém, em vez de entregar o dinheiro, o comprador disparou vários tiros contra o vendedor e em seguida desovou o cadáver nas águas do Rio Paraná. “Era uma família rica. A viúva pagou investigadores para procurar pelo marido, mas nunca mais viu nem o corpo do homem”, revela.

“Do nada, os bichinhos começaram a fazer ‘tiu, tiu, tiu’, ‘prim, prim, prim’, ‘tiziu, tiziu, tiziu’”

87 anos de amor aos animais

O pioneiro José Francisco de Oliveira, o Seu Zé, sobrevive com um salário mínimo por mês e, mesmo sem condições de ter uma vida mais digna, se preocupa em cuidar dos animais que circulam pela sua pequena residência. Gasta cerca de sete pacotes de quirela por mês alimentando centenas de pássaros. “Tem dia aqui que chego a contar 200 rolinhas de uma vez. Fica tudo preto. Eu não mato um passarinho de jeito nenhum, nem que eu morra de fome. Não aceito que um bicho morra para que eu possa me alimentar. Teria vergonha de matar um animal pra comer”, conta.

O pioneiro começou valorizar a liberdade dos animais em 1925, aos oito anos, quando morava em uma roça nas imediações do Rio Capivari, no interior de São Paulo. “Eu estava andando por aquelas bandas carregando quatro gaiolas cheias de passarinhos, daí, do nada, os bichinhos começaram a fazer ‘tiu, tiu, tiu’, ‘prim, prim, prim’, ‘tiziu, tiziu, tiziu’ e eu parei, fiquei olhando e escutando. Carreguei eles mais um pouco e quando cheguei em casa, abri cada uma das gaiolas e soltei todos. Nunca mais prendi nenhum passarinho. Se eu tivesse dinheiro, comprava tudo pra soltar”,  garante Seu Zé.

Impressões sobre o entrevistado

Seu Zé se emociona o tempo todo no decorrer da entrevista. Demonstra gratidão por ser lembrado pelos muitos anos dedicados à abertura de centenas de quilômetros de estradas. Faz brincadeiras durante a conversa, age com uma inquietude jovial e lamenta pela deficiência auditiva, não por tê-la, mas, segundo o pioneiro, pelo fato dos outros terem que lhe repetir a mesma pergunta tantas vezes.

José Francisco de Oliveira tem um estilo de vida simples, sem apego material, passa horas do dia em introspecção, envolvido em uma forma bastante pessoal de espiritualidade. Admite que diariamente divaga até um passado que lhe conforta a existência. Seu Zé confidencia sentir muita falta da mulher e da filha que faleceram, mas não tem arrependimentos nem medo de morrer.

Frases de Seu Zé

“Nessa claridade, já tô olhando os 96 anos.”

“Sei que ninguém é melhor que ninguém porque no fundo somos todos uma mesma pessoa.”

Curiosidade

José Francisco de Oliveira nasceu em 7 de agosto de 1917.

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“Meu objetivo era fazer com que as famílias se fixassem aqui”

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Otávio Marques de Siqueira veio a Paranavaí por recomendação do major Fernando Flores

Antigo Hospital do Estado foi fundado por Siqueira (Foto: Reprodução)

O médico gaúcho Otávio Marques de Siqueira, responsável pela construção do Hospital Professor João Cândido Ferreira, onde é hoje a Praça da Xícara, se mudou para Paranavaí em 1949, a pedido do major Fernando Flores. Além de se responsabilizar pela saúde da população, Siqueira foi incumbido de convencer os migrantes a fixarem residência em Paranavaí e não em Alto Paraná.

Otávio Marques de Siqueira veio a Paranavaí pela primeira vez no tempo da Fazenda Brasileira, em 1941, após participar da inauguração da primeira balsa do Porto São José, um recurso que intensificaria as relações entre Paraná e Mato Grosso. Em entrevista à Prefeitura de Paranavaí décadas atrás, Siqueira relatou que naquele ano quando chegou à Brasileira se deparou com um imenso vazio. “Não havia nada por aqui, só quiçaça e capoeira”, afirmou o pioneiro gaúcho que chegou ao povoado por meio da única estrada que existia à época, reaberta pelo Capitão Telmo Ribeiro em 1939.

Siqueira conheceu em Londrina o diretor da 4ª Inspetoria de Terras do Estado, Francisco de Almeida Faria, que lhe mostrou um mapa retangular de Paranavaí. “Ele olhou com o jeitão dele e falou: ‘Isto está muito monótono’, então traçou duas diagonais no mapa e saiu duas avenidas, uma era a Paraná”, enfatizou o médico que teve os primeiros contatos com o cotidiano da colônia em 1945, mas se mudou para Paranavaí em 1949, a convite do major Fernando Flores que em Londrina lhe falou sobre a necessidade de se construir um hospital em Paranavaí.

“Antes de vir pra cá, eu exercia o cargo de diretor da Santa Casa de Londrina”, destacou Siqueira que coordenou a construção do extinto Hospital Professor João Cândido Ferreira, o Hospital do Estado, em área onde está atualmente a Praça Dr. Sinval Reis, conhecida como Praça da Xícara. Após a inauguração, o pioneiro assumiu o cargo de diretor do hospital. “O Dr. Siqueira era um médico muito bom”, comentou o pioneiro gaúcho Severino Colombelli, acrescentando que Otávio Marques salvou muitas vidas.

Siqueira não veio a Paranavaí apenas para atuar como médico. “Meu objetivo era fazer com que as famílias se fixassem aqui e não em Alto Paraná”, revelou. Pioneiros lembram que esse tipo de missão era muito comum, pois todos aqueles que vinham ao povoado para assumir alguma liderança também tinham o papel de atrair novos moradores. A publicidade mais apregoada em Paranavaí era a de que cada propriedade valeria até cem vezes mais no futuro. Porém, muitos diziam que isso não passava de utopia.

A colônia era um local tranquilo em 1949, quando os principais pontos comerciais pertenciam a Carlos Faber, Severino Colombelli, Luiz Ambrósio e José Francisco, irmão de Natal Francisco, segundo o médico que nunca se esqueceu da vez em que pioneiros pegaram uma jaguatirica nas imediações do antigo Cine Ouro Branco.

Em 1950, o desenvolvimento local chamou a atenção do governador Moisés Lupion que enviou a Paranavaí um funcionário encarregado de vender imóveis. “Deu liberdade para que ele fizesse o que bem entendesse, desde que atraísse pessoas com muito dinheiro”, pontuou Siqueira. Logo surgiu uma onda de assassinatos motivados pela posse de terras. De acordo com o médico, as propriedades eram tomadas na marra. “Eu não me preocupei, nem me meti nisso”, declarou.

Saiba Mais

Otávio Marques de Siqueira nasceu em 18 de julho de 1914 em Santa Maria, no Rio Grande do Sul.

Balsas em extinção

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A balsa já foi um importante meio de ligação entre a região Sul e o Centro-Oeste 

A balsa, solitária, ainda percorre as águas do Rio Paraná (Foto: Reprodução)

A balsa, solitária, ainda percorre as águas do Rio Paraná (Foto: Reprodução)

No extremo Noroeste do Paraná, na divisa com o Mato Grosso do Sul, balsas que atravessam o Rio Paraná já tiveram fluxo diário de centenas de veículos. Nos últimos dez anos, isso mudou em função das pontes interestaduais. Hoje é comum ver no horizonte o solitário balseiro transportando apenas um automóvel, tendo como companhia o sol escaldante – referência do início e fim da jornada de trabalho.

Em meados de 1960, o grande número de pessoas que precisavam ir para o Mato Grosso do Sul ou vir ao Paraná estimulou a construção de dezenas de balsas. Um emblemático exemplo é a de Porto Caiuá/Felício, localizada a 33 km de Querência do Norte, inaugurada em 1963.  “Foi uma necessidade da época. O fluxo até Naviraí, no Mato Grosso do Sul, era muito grande”, conta o empresário Veigui Bérgamo.

Os ribeirinhos foram os primeiros a se engajar na atividade. Viajavam até Guaíra, no Oeste do Paraná, onde recebiam, por parte da Marinha, qualificação profissional. Todas as despesas eram custeadas pelos donos de balsas. “Sempre demos oportunidade para gente daqui, nunca alguém de fora. É desse jeito há mais de 40 anos”, destaca o empresário.

Na década de 1960, a balsa já garantia o intercâmbio entre o Sul e o Centro-Oeste (Foto: Reprodução)

Na década de 1960, a balsa já garantia o intercâmbio entre o Sul e o Centro-Oeste (Foto: Reprodução)

No princípio, investia-se muito no transporte fluvial, e tudo era proporcional aos lucros, tanto que durante décadas os donos de balsas foram responsáveis pela manutenção das principais vias de acesso aos portos. “Se a estrada estivesse ruim, a pessoa desistiria, então mantê-la em bom estado era o único meio de garantirmos a freguesia”, revela Bérgamo.

Há 10 anos, havia duas balsas em funcionamento no Porto Caiuá/Felício, tempo em que pelo menos 200 veículos por dia usavam o transporte fluvial. “Quando tinha uma no Mato Grosso do Sul, a outra estava deste lado, aqui no Paraná”, lembra Bérgamo, se referindo a um período em que os funcionários da balsa se revezavam ao longo de 24 horas. O serviço nunca parava, em respeito à demanda.

Hoje em dia, o trabalho começa às 6h e termina às 22h. “Quem chega aqui de madrugada encontra a balsa desativada”, conta o marinheiro de convés Robson Mendes Barbosa. A justificativa é que muitos motoristas preferem usar a Ponte Ayrton Senna, em Guaíra, e as cinco pontes do complexo de Porto Camargo.

Grande fluxo de veículos no final da década de 1990 (Foto: Reprodução)

Grande fluxo de veículos no final da década de 1990 (Foto: Reprodução)

“É difícil acreditar que já passou tanta gente por aqui. Como balseiro, conheci viajantes de Paranavaí, Umuarama, Maringá, Campo Mourão, Londrina, Cascavel, Curitiba, Presidente Prudente, Araçatuba, São Paulo, Campo Grande, Cuiabá e muitas outras cidades”, reitera o contra-mestre Cirço Sedano Silva.

Na atualidade, o transporte fluvial normalmente é usado apenas por pessoas da região noroeste. Entretanto, o contra-mestre percebe uma pequena mudança durante os feriados. “No mais, é normal atravessar apenas um veículo. Ainda estamos aqui por causa da fé. Restam poucas balsas na ativa. Acho que é o fim da profissão”, avalia.

Entre os poucos que ainda preferem a balsa, a justificativa é uma só – a praticidade do serviço. De acordo com Veigui Bérgamo, há proprietários de terras na região que se não fosse pelo transporte fluvial teriam de dirigir por mais de 200 quilômetros. “Com a balsa, percorremos 2,5 quilômetros em 15 minutos e o problema está resolvido”, finaliza.

Empresário ainda tem esperanças

As despesas com o transporte fluvial, que não são poucas, segundo o empresário Veigui Bérgamo, deveriam ser subsidiadas com a rentabilidade obtida nas travessias da balsa. “Na prática, isso não acontece. Se não fosse pelas minhas outras atividades econômicas, teria parado faz tempo. Gastamos aproximadamente dois mil litros de óleo diesel por mês. Além disso, temos despesas com funcionários e manutenção”, destaca.

Entretanto, Bérgamo diz ter esperança de que no futuro a situação melhore e o transporte fluvial não precise ser desativado. Faz um apelo para que o governo do Paraná contribua, se responsabilizando pela manutenção de uma rodovia. “A Jorge Baggio é a única estrada paranaense que liga Querência do Norte ao porto. Se for bem cuidada, acredito que poderemos atrair mais viajantes”, pondera.

Origem ribeirinha é trunfo na profissão de balseiro

Na infância, Cirço Sedano Silva brincava sobre um bote, fazendo de conta que era piloto de balsa. A criatividade era estimulada pelas experiências relatadas por três tios balseiros. Aos 19 anos, conseguiu o primeiro emprego com transporte fluvial, um cargo de cobrador na balsa do Porto Caiuá/Felício.

“A gente se divertia muito. Havia pelo menos quinze pessoas trabalhando em cada balsa”, relembra o contra-mestre sorrindo. Com o passar do tempo, o número de empregados caiu para 12 e depois para nove. “Hoje, são cinco, mas nos dividimos em três turnos. Agora é normal trabalhar sozinho”, afirma.

O fato de Cirço ser um ribeirinho é um trunfo na profissão de contra-mestre. Ninguém conhece melhor o Rio Paraná do que alguém criado diante de sua imensidão. “Sei onde estão todos os bancos de areia. Sendo assim, tenho o compromisso de desviar deles. Já o marinheiro de convés tem que ficar esperto e controlar o peso da balsa, distribuindo bem os veículos”, revela. Sedano sente falta de quanto trabalhava à noite. Antes de completar a travessia, via do outro lado um sem número de faróis piscando – um sinal de que o aguardavam.

Saiba Mais

Em caso de acidente, o contra-mestre entra em contato com o rebocador que chega ao local em 15 minutos.

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