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Comentário na entrevista “A trajetória de um homem do campo”

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Entrevista fala sobre a história do ex-colono e ex-boia-fria José Alexandre de Freitas (Imagem: Reprodução)

Entrevista fala sobre a história do ex-colono e ex-boia-fria José Alexandre de Freitas (Imagem: Reprodução)

Muito legal ver até que ponto o seu trabalho pode ser valorizado. Pra mim, esse tipo de comentário (publicado na minha entrevista “A trajetória de um homem do campo”) é mais recompensador do que qualquer dinheiro que eu ganhe desempenhando a minha função profissional.

“David, sua reportagem me foi muito útil. Agradeço a Deus todos os dias, por existir gente como você. Estou desenvolvendo uma monografia de mestrado, com o tema central “O homem rural (do campo)”, e seu artigo veio muito em conta. Parabéns! Continue ajudando acadêmicos como eu e outros desse nosso Brasil tão diversificado, principalmente em relação ao trabalhador rural. Abraços, Conceição.”

Written by David Arioch

January 17th, 2016 at 5:24 pm

O cotidiano do boia-fria

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Tio Zé: “Sou de outro tempo. A gente prefere sentir a cana nas mãos” (Foto: Daniella Rosário)

Falta pouco para as 6h, e no horizonte já é possível avistar os boias-frias descendo do ônibus em uma propriedade rural próxima a Paranacity, no Noroeste do Paraná. Há homens e mulheres das mais diversas faixas etárias.

Primeiro eles participam de uma aula de ginástica laboral, um momento do dia que inspira confraternização. Depois se dividem em turmas e caminham em direção ao eito do canavial. Os melhores no manejo do facão seguem na frente. Os outros vão atrás. Essa metodologia de trabalho foi criada para que os mais experientes abram caminho para os demais.

O tempo não dá trégua e os boias-frias trabalham em ritmo acelerado, tanto que por volta das 9h o chão já está forrado. “Ninguém pode perder tempo porque o tanto que a gente recebe no fim do mês depende da quantidade de cana cortada por dia”, explica o experiente cortador de cana Geraldo Soares dos Santos enquanto enxuga o suor da testa com a manga da camiseta. Geraldo ganha cerca de R$ 980 por mês. É apontado pelos outros boias-frias como um sujeito bom de facão.

Santos, assim como os demais colegas, não abre mão dos óculos de proteção durante o trabalho. O equipamento evita irritação nos olhos e também protege contra a fuligem. “É a única parte do rosto que não fica escura”, brinca o cortador de cana José Luiz do Prado que herdou o ofício dos avós e dos pais. No canavial, os homens estão sempre vestidos com calça e camiseta de manga longa.

Muitas mulheres cortam tanta cana quanto os homens (Foto: Daniella Rosário)

As mulheres também, mas usam saia por cima da calça. Muitas cortam tanta cana quanto os homens. Contudo, o que mais chama atenção no campo é a vaidade. A ala feminina faz questão de trabalhar com unhas e até rostos pintados. Batons e brincos são considerados essenciais. Questionadas se o sol não destoa a beleza, uma delas é enfática. “O chapéu ajuda a segurar a maquiagem. É nosso porto seguro”, declara a jovem Maria Fernanda Silvestre com um largo sorriso que destaca um suave batom rosáceo.

O trabalho é pesado, doloroso, mas pra quem já se acostumou com a atividade o tempo passa mais rápido com as cantorias e as piadas. As brincadeiras são constantes e quase sempre inofensivas. Às 10h, o motorista do ônibus aciona a buzina indicando que é a hora da boia. Todos, independente da localização, abrem suas bolsas e mochilas. Alguns parecem até ter ensaiado o movimento, tamanha é a sincronia.

Para alguns bóias-frias, o almoço é um momento solitário (Foto: Daniella Rosário)

Na marmita, o básico de sempre. O almoço é bem tranquilo, tanto que em alguns pontos se ouve o atrativo som de uma brisa repentina. Dependendo da localidade, alguns almoçam sozinhos, sentados sobre o cantil. Já outros, em duplas ou grupos. A solidariedade também chama atenção no canavial. Parte dos boias-frias sempre leva mais comida, no caso de algum colega continuar com fome. É uma atitude que corrobora o companheirismo no campo.

Terminado o almoço, o cantil vira travesseiro na hora da sesta. Mas nem todos cochilam. Alguns optam por fazer uma roda para conversar com os amigos e colegas de trabalho. “Prefiro ficar acordado porque senão depois fico indisposto”, justifica Geraldo Soares. Passado um curto período de descanso, a buzina toca de novo. Alguns cortadores logo desaparecem em meio ao canavial enquanto outros começam a amolar os facões.

José Pedro de Oliveira, conhecido como Tio Zé, é um dos que afiam a lâmina da ferramenta. O homem atua como boia-fria há mais de 45 anos. Hoje, com 64, admite que o vigor não é mais o mesmo. “A mente sempre resiste, mas o corpo não obedece, né?”, comenta em tom de resignação.

Enquanto observa e manipula o facão com as mãos cobertas de fuligem, Tio Zé rapidamente relembra fatos da juventude, momentos da época em que trabalhava nas lavouras de café. “Eu era muito forte, não tinha pra ninguém. Agora consigo apenas cortar o suficiente pra não perder o serviço”, revela o boia-fria de mãos completamente calejadas. Os cortadores mais jovens costumam usar luvas, algo que Tio Zé descarta. “Sou de outro tempo. A gente prefere sentir a cana nas mãos”, justifica com um sorriso tímido e um olhar disperso.

O serviço é pesado, doloroso, até pra quem apenas vê (Foto: Daniella Rosário)

Mesmo acostumados a elevadas temperaturas, no início da tarde o Sol afeta os boias-frias com muita intensidade. Para aguentarem a jornada de trabalho, recorrem a um isotônico conhecido como “sorinho”. O produto que tem consistência de suco artificial ajuda a evitar câimbras e desidratação.

O intervalo pra tomar o repositor energético é rápido. Mesmo sob o calor escaldante, seguem na lida. Para quem não está acostumado a se expor tanto aos raios solares, o calor chega às raias do insuportável. No meio da tarde, é comum sentir a pele queimando, mesmo usando camiseta de manga longa.

O corte de cana prossegue até as 16h30, quando os boias-frias ouvem novamente a buzina do caminhão e deixam o eito. Ao fundo, atrás da grande massa de trabalhadores, o canavial parece menor após mais um dia de trabalho. Todos recolhem seus pertences e rumam em direção ao ônibus. É hora de ir pra casa e passar o pouco que restou do dia com a família.

O trabalho no canavial vai até as 16h30 (Foto: Daniella Rosário)

Muitos dos boias-frias não demonstram tristeza pelo trabalho no campo, inclusive afirmam que, apesar da atividade braçal ser muito desgastante, é possível ganhar mais do que muitos que trabalham na área urbana.

“Quem trabalha em uma loja no centro da cidade não é capaz de deixar o emprego que tem pra trabalhar no campo, mesmo que o salário seja melhor. Isso acontece porque hoje em dia as pessoas têm tanta preguiça quanto vergonha do serviço rural. Se preocupam demais com a aparência”, desabafa o cortador de cana Jonas Cabral.

Ter como horizonte os limites que vão do cabo do facão até o toco da cana-de-açúcar não impede os boias-frias de almejarem um futuro melhor, se não para si, pelo menos às próximas gerações. “Todo mundo aqui tem filhos na escola. Nosso trabalho é digno, mas ninguém deseja ver sua criança tendo que pegar no pesado. Queremos que eles estudem e tenham uma vida melhor”, finaliza a cortadora de cana Paula Roberta dos Campos.

Curiosidade

Os boias-frias que cortam menos cana-de-açúcar são chamados de “borracheiros”. Já os bons de facão são conhecidos como “facãozeiros”.

Contribuição

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A trajetória de um homem do campo

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José Freitas fala sobre a experiência de fazer parte da primeira geração de boias-frias

Freitas: "Boia-fria até hoje é um sujeito sem patrão" (Foto: Daniella Rosário)

Freitas: “Boia-fria até hoje é um sujeito sem patrão” (Foto: Daniella Rosário)

O aposentado José Alexandre Freitas, 72, morador do Jardim Morumbi, em Paranavaí, é da primeira geração de boias-frias do Noroeste do Paraná. Hoje em dia não trabalha mais, mas carrega marcas que nem o tempo é capaz de apagar, como as mãos calejadas, de pele grossa, e o rosto enegrecido e manchado pela frequente exposição ao sol.

Da época em que atuava como trabalhador volante, Freitas herdou também um chapéu de palha que ele ajeita cuidadosamente várias vezes, mesmo sabendo que a entrevista não é para a TV. O aposentado é amistoso e sorridente, porém quando se recorda dos problemas de quando trabalhava no campo, o sorriso se mistura a um olhar mortiço, uma consequência natural que evidencia a relação de amor e ódio do boia-fria com o campo.

Na entrevista abaixo, compilada em tópicos, José Alexandre Freitas, o colono que virou boia-fria, sintetiza opiniões e experiências ao falar sobre colonato, êxodo rural, trabalho infantil, aposentadoria, mecanização e outros assuntos.

O pequeno produtor rural

Nas décadas de 1960, 1970, quem tinha um sítio teve que vender pra fazendeiro. O pequeno produtor não tinha chance nenhuma de disputar o mercado. Acontecia muitas injustiças que eu mesmo vi de perto. Isso melhorou só depois por causa das cooperativas.

O colono

“A colheita era unida, bonita de ver e de lembrar” (Foto: Reprodução)

Quando comecei a trabalhar de colono, tudo isso aqui era café. A gente recebia mesada do patrão. A colheita era unida, bonita de ver e de lembrar. Depois acabou e tive que virar boia-fria. Em 1964, 1965 e 1966, a gente recebia uma diária mixuruca, não chegava a ganhar nem um salário por mês. A coisa foi mudando na década de 1980.

O fim do colonato

Os colonos desapareceram. Vim em 1982 pra cidade porque os patrões não queriam mais ninguém na roça. Eu fui um dos últimos colonos a vir pra cá. Vim meio que obrigado, não queria muito, ainda gostava da roça. Cheguei nessa mesma rua [Avenida Domingos Sanches], onde a gente tá conversando agora. Hoje, penso diferente, se fosse pra eu trabalhar de novo na roça preferia morar aqui e ir de ônibus do que morar na fazenda.

Êxodo rural

Naquele tempo, a jornada era de 12 horas, então trabalhar na roça era terrível. Quem tinha a chance de vir pra cidade não pensava duas vezes. Imagine, você começar a trabalhar às 6h da manhã e parar só às 6h da tarde. Hoje em dia é diferente, ninguém trabalha na roça mais do que oito horas. Era cruel, o pessoal sofria muito.

A vida de boia-fria

A verdade é que boia-fria até hoje é um sujeito sem patrão. O mais próximo que ele tem de um chefe é o gato. No meu tempo, ninguém podia adoecer. Se ficasse um mês parado, passava fome. Lembro que a gente recebia 40, 50 centavos por pé de café, mas quando o patrão queria que o sujeito fosse embora por vontade própria, ele pagava 20 centavos. Mas nem todos eram assim. Tive patrão bom também que quando o boia-fria não conseguia ganhar o suficiente, ele pagava mais pela diária.

Naquele tempo, a jornada de trabalho durava 12 horas (Foto: Reprodução)

Gato X fiscal

O gato e o fiscal agem da mesma maneira. Eles pegam uma área de empreita, contratam os trabalhadores e pagam um pouco menos do que o oferecido pelo dono da propriedade pra ter lucro. O ganho por dia equivale a duas diárias de um boia-fria. Trabalhei como fiscal e gato por alguns anos. Às vezes, tinha que dividir a turma. Era impossível dar conta de 100 peões ao mesmo tempo.

Trabalho infantil

Até a década de 1990, tinha muitas crianças trabalhando nas roças da região, já hoje é difícil de encontrar. Acho errado o menor não poder trabalhar, porque antigamente, quando a criança começava cedo na lida, ela aprendia a respeitar mais os pais e também a vida. Hoje, qualquer adolescente diz que não vai trabalhar porque está protegido pela lei, inclusive tem quem use isso pra desafiar a família. Na minha época, um rapaz de 18 anos já era independente, tinha a
própria vida.

Segurança x ajuda

Acidente de trabalho acontecia, mas ninguém era responsável. Hoje também não mudou muita coisa. A verdade é que sem registro não existe segurança. No tempo em que mais trabalhei, década de 1950, 1960 e 1970, quem mais sofria acidente era a criança. Caía e machucava o pé, quebrava braço, então quem tinha que se virar era a família. Quando alguém se feria, a gente se reunia e ajudava. Comprava comida, fazia vaquinha pra arrecadar dinheiro. O ruim é que empregado que se machucava no serviço era mandado embora.

Relação com os colegas de trabalho

Quando trabalhei como gato, nunca fui maldoso com ninguém, eu respeitava todos os boias-frias, até porque fui um deles, né? Tinha paciência, falava com educação. Por isso que os patrões gostavam de mim. Eu odiava estupidez.

Chuva na roça

Essa era a pior parte. Não tinha esse negócio de que porque está chovendo não ia trabalhar. A gente ganhava por dia, então não tinha como ficar em casa esperando a chuva passar.

Sindicato dos trabalhadores

Naquele tempo, o sindicato não era vigorado como hoje. Agora o trabalhador rural tem garantias e direitos. O sindicato garante salário-desemprego, 13º salário e ainda ajuda a receber os atrasados. Fazem um trabalho muito bom.

Entretenimento

A gente ocupava o tempo livre jogando futebol, até o patrão jogava, e de centroavante. Era o nosso grande lazer, além de outro que eu não posso falar (risos).

Aposentadoria

Trabalhei a vida toda na roça e nunca tive direito a nada. A única sorte que tive foi me aposentar com 60 anos. Hoje, pra se aposentar com essa idade, é muito difícil. Quase nenhum patrão quer ajudar o empregado que trabalhou na roça. Até dá pra entender, ninguém quer ser responsável se der alguma coisa errada. Conheço muita gente que trabalhou no campo e tenta se aposentar, mas não consegue. Na minha família tem gente nessa situação.

Experiência no corte de cana-de-açúcar

Há 21 anos, tive uma experiência no corte de cana, mas não consegui cortar 70 metros. Fui três dias, fizeram a minha ficha, mas daí não foi aprovada porque não cortei 70 metros. Disseram que não podiam me dar nenhuma garantia.

Mecanização

Sobre as máquinas, acho que a dificuldade maior é que ninguém sabe o que o governo vai fazer com esse povo todo. O serviço braçal ainda vai acabar, disso eu tenho certeza porque já conheci máquina que substitui o homem até em terreno irregular. Lá no interior de São Paulo mesmo, boia-fria é conhecido como cata-bituca, porque pra ele só ficam os restos deixados pela máquina.

O futuro dos boias-frias

A única saída ainda é a reforma agrária. O governo deve desapropriar e comprar essas fazendas onde ninguém planta nada e cortar em lotes. Se fizer direito, vai dar certo. Sei disso porque tenho um genro que mora numa fazenda no interior de São Paulo e lá ele conseguiu oito alqueires e hoje vive de forma mais digna.