David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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Senhor Boiada

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Foto: iStock

Um caminhão que levava o gado para o matadouro tombou na estrada. Nenhum dos animais se feriu gravemente. As pessoas se aglomeravam em torno dos bois tentando capturá-los e levá-los para casa. Um senhor desceu do carro armado e gritou:

— Pra lá! Ninguém vai tocar nesses bichos. Vim aqui para colocar ordem na situação.
Quando viram o revólver rutilando com a incidência do sol, todos se afastaram. Havia um grande espaço entre o interventor e os demais. Logo atrás dele estavam os animais – silenciosos.
— Vocês acham que podem chegar aqui e levar a boiada? Vocês são ladrões? Não têm vergonha na cara?
Ninguém respondeu, até que um velho retrucou:
— Caiu na rua não tem dono. Essa é a lei não escrita.
— Entendi. Então se o senhor cair na rua depois de um acidente a gente pode fazer o que quiser?
— Não, estou falando deles.
— Eles quem?
— Esses bichos aí, comida.
— Se o senhor não percebeu, eles estão bem vivos, e acredito que até mais do que o senhor.
O velho se calou.
— É o seguinte, o meu parceiro está chegando com outro caminhão. Vamos colocar esses animais na carroceria e seguir viagem. Se alguém chegar perto, não me responsabilizo pelo que vai acontecer. Não quero machucar ninguém, mas se for preciso, não vou hesitar.
Assim que o caminhão chegou, os animais foram realocados – um a um.
— E a gente, como fica agora?
— Vocês querem carne?
— Sim – gritaram em uníssono.
— Cortem um pedaço da perna de vocês e comam. Empresto a faca.
Mesmo notando tanta gente furiosa, o homem gargalhou e mostrou o revólver mais uma vez.
— Quem fizer graça vai acabar deitado, daí o churrasco está garantido. Problema resolvido. Que tal?
Só esgares. Nenhuma palavra.
O caminhão eclipsou no horizonte e uma F-1000 encostou.
— Cadê a boiada?
— Quem quer saber?
— Sou o dono da carga.
— Ora, seu funcionário acabou de levar a bicharada.
— Que funcionário? Não mandei ninguém aqui.
— Então danou-se.
 
Na carroceria do caminhão, um peão enxergou uma frase recém-escrita à faca: “Não importa a espécie, quem sente dor, não merece desamor, porque sem empatia a vida não serena, grita ao vento o que a ignorância condena.” – 21 de setembro de 1984.




 

Tertuliano e a boiada

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Pintura: Roz

Em 1951, meu avô conheceu um rapaz em uma fazenda na Água do Cedro. Seu nome era Tertuliano e ele tinha chegado há pouco tempo do interior de São Paulo para atuar como motorista de caminhão. Seu trabalho era buscar mantimentos para três casas de secos e molhados situadas no centro de Paranavaí. Tertuliano era “meio aéreo”, como diziam, e sempre que tinha algum tempo livre, era visto sentado na cabine do caminhão, apoiado sobre o painel escrevendo em um caderninho.

Um dia, fizeram uma proposta para que ele transportasse uma boiada até um matadouro na saída para Nova Aliança do Ivaí. A missão de Tertuliano era buscar os animais na Fazenda Alto Remanso em Alto Paraná. Precisando de dinheiro, não pensou duas vezes. Quando chegou ao local de manhã, os animais já estavam prontos para partir. Um homem gritou: “Tá no jeito!”

Tertuliano desceu a rampa parda e resistente de madeira e assistiu a boiada a subindo lentamente. Hesitação. Resistência. Um dos animais empacou no limiar da rampa. Quatro peões reuniram forças para que o boi, que tinha apelido de Teimoso, aceitasse o seu malquisto destino. Antes de desaparecer dentro da carroceria, o animal observou Tertuliano. Ele desviava o olhar, mas o boi persistia com seus olhos escuros.

— Você leva esses que depois a gente acerta — disse o administrador da fazenda.
— Sim, senhor.
— Quer que alguém te acompanhe?
— Não. Já tá tudo certo do lado de lá.
— Então tá bom. Pode ir.

Tertuliano subiu na cabine. Antes deu outra olhadela nos bichos. Silêncio desconfortável. O incomodava saber que os animais não reagiam mais. Sem barulho. Não odiavam os seres humanos, nem Deus, se houvesse um para eles.

— Que diacho de vida é essa? Sabe que vai morrer e vai aceitando assim?

Durante o percurso, parou o caminhão na estrada. Circulou pela carroceria e ouviu a respiração ruidosa de um deles.

— Será que tá com medo? — questionou.

Quis subir na carroceria para ver melhor a boiada. Feito. Lá em cima, nenhum deles movia os cascos, mas somente os olhos em sua direção.

— Por que num chora, num grita, num berra, num odeia? — questionou assistindo a boiada.
— Será que sabem mesmo pra onde vão? Será?
— Talvez sim, talvez não.
— Tô é ficando louco, falando com boi. Melhor seguir viagem.

Demora. Estrada estreita de terra. Animais silvestres atravessando carreadores e se escondendo na mata. Na saída para Nova Aliança do Ivaí, Tertuliano parou o caminhão e observou a pouco mais de 300 metros um barracão onde funcionava o matadouro. Não gostou do que viu. Hora da despedida. Ou não.

Desistiu da entrega. Seguiu viagem. Parou em um sítio em Graciosa, onde comprou ração e pediu água. Dirigiu até o Porto São José. Chegou depois de quatro dias. Em outro sítio, a boiada desceu a rampa sem medo. Deram alguns passos pasto adentro e deitaram sobre a braquiária. Verde, verde, verde. Sol morno. Sem medo.

— Olhe aí, pai! Parece criança.
— E não são? — indagou o velho acendendo um palheiro.

Não perguntou a origem da boiada. Talvez não quisesse saber, ou não tivesse relevância.

— O senhor pode cuidar deles pra mim?
— Deixe, onde come cinco, come até vinte, acho — respondeu sorrindo.
— Tá certo.

Teimoso, que não era mais teimoso, mugiu brevemente pela primeira vez quando o rapaz virou as costas. Avisou ao pai que era preciso resolver a situação.

— Dá-se um jeito — garantiu o velho.

Na semana seguinte, Tertuliano decidiu retornar a Alto Paraná para resolver a situação na Fazenda Alto Remanso. Perto de Guairaçá, encontrou galhos na estrada e desceu para movê-los. Emboscada. Sete tiros de carabina. Três homens. No banco do caminhão havia um pequeno saco de estopa, dinheiro que seria entregue como forma de compensação.

Agonizando e deixado para morrer, resfolegou. Um novilho atravessou a cerca e se aproximou. Lambeu seus olhos. O rapaz sorriu e sucumbiu. Sua história real não seria contada. Ganhou fama de ladrão de gado quando o que menos queria era roubar vidas. Até os anos 1980, ainda havia uma cruz onde Tertuliano morreu. Trazia a frase: “Se vive para não ver, não há o que querer.”

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