David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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Bravo

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Arte: Dana Ellyn

— A gente se divertia todos os dias.
— Quem?
— Eu e o Bravo. Quando queria brincar, ele sempre esfregava o focinho macio no meu joelho.
— É, não o conheci, mas imagino como você deve estar se sentindo.
— Ele era muito inteligente. Reconhecia sons, identificava todo mundo que chegava. Adorava música. Eu colocava Mogwai pra ele ouvir antes de dormir todos os dias. Se acostumou e já não dormia sem ouvir “Take Me Somewhere Nice” pelo menos uma vez a cada noite.
— Ele chegou a machucar alguém?
— Não, nunca.
— É, então foi um animalzinho muito bom.
— Crescemos juntos praticamente, mas ele ficou grande bem rápido.
— Entendo.
— Ele adorava quebra-cabeças. Tinha um de 15 peças, segurava cada peça pela alcinha branca e encaixava certinho nas lacunas. Tinham formas de frutas, sua comida preferida.
— Sério isso?
— Sim…
— Nunca vi bicho nenhum fazer algo assim.
— Aprendemos muito com ele.
— Um dia minha mãe colocou muita água na panela de pressão, uma vizinha a chamou e elas começaram a conversar. Esqueceu completamente da panela. O Bravo foi até ela e avisou do jeito dele que tinha algo de errado. Fez um bom barulho. Minha mãe o acompanhou e quando chegou até a cozinha a água estava transbordando sobre o fogão. Havia água quente pra todo lado.
— Outra vez ele sentiu um cheiro estranho. O gás estava vazando. É, se não fosse por ele nem sei se estaríamos aqui hoje.
— Ele morreu com que idade?
— 17 anos. Passei parte da minha infância e toda a minha adolescência com ele.
— Que amizade legal.
— Às vezes eu encostava a cabeça na barriga dele e cochilávamos assim. Ninguém se incomodava. Nem eu nem ele.
— Acordava antes de mim. Por volta das 6h, vinha me chamar para ir para a escola. Era melhor do que eu em identificar as horas. Muito melhor — disse rindo.
— Você teve um amigão.
— O melhor.
— Seus olhos eram bem expressivos, como olhos humanos. Eu achava que ele era o único, mas a verdade é que ele era como um representante de todos. Sei que ele veio para nos ensinar que devemos ver ele em todos os outros. Não se trata de ser especial, se trata de entender que se vemos algo de especial em um, somos capazes de ver nos outros também.
— Realmente, cachorros são incríveis.
— São sim. Mas Bravo não era cachorro. Era um porco que livramos da morte em um matadouro.