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A parábola de Janko
Janko viajava de vila à vila, cidade à cidade. Mesmo sem residência fixa, não carregava malas nem sacos. Afirmava que não tinha história, que o presente era o que deveria ser considerado. Dormia ao relento do alheado relento, nos alcantis ou no topo das árvores, onde poderia sentir a flama da comunidade. Chegava sempre silente. Em poucos minutos, mudava uma vida.
O olhar da chegada não era o mesmo da partida – não de Janko, dos outros. Quem usava animais, se alimentava deles ou ignorava suas necessidades abjurava tal hábito tão logo partisse. “O que aquele pobre diabo fez com você?” “O que ele disse?”, perguntavam aqueles para quem Janko era apenas intrujão.
“Sou vida ao mesmo tempo que sou morte. Me diga você enquanto estamos diante um d’outro.” Janko não falava alto nem vozeava. Trazia uma expressão desabafada da realidade; uma honestidade tão inaudita que não lhe era esforço algum exteriorizar lascas de vidas pregressas, ulteriores ou amealhadas pela derrida da vida. Vidas que poderiam ter sido suas ou não.
Olho, cheiro e dor de boi, de vaca, de galinha, de porco, de cabra e de peixe, sim é o que a gente vê e sente nele. “Unanimidade? Não. “Rábula, chicaneiro, pilantra”, glosavam. Janko não reagia – aquiescia – precisava de minutos. Mudou a cidade. Fecharam açougues, matadouros, curtumes, selarias e criadouros.
A cidade faliu? “Não, emergiu”, alguém berrou. Um antigo morador recém-chegado replicou: “Esse sujeito quebrou a cidade. O que vamos fazer com esses animais?” Cuide deles que a rarefação não toca mais esse chão, advertiu Janko. “Como? Não se cria o que não traz retorno”, “Seria a vida um escambo, um negócio?” “A terra é rica, vocês têm autossuficiência”, “Mas precisamos lucrar”, “Por que e para quê?”, questionou antes de partir.
Sem conseguir convencer ninguém a explorar os animais livres, o velho morador, o único a quem Janko não mostrou os olhos fadados, deitou uma cabra e a degolou com as quatro patas amarradas. Quando retornou para recolher o sangue do animal, levou um susto: “O que é isso? Cadê a cabra?” “A cabra sou eu, você, todos nós”, respondeu Janko com os membros amarrados antes de fenecer.
“Em certas comunidades étnicas é uma tradição ter carne de cabras ainda bebês durante o feriado de Páscoa”

“Muitas vezes, ficamos no portão ouvindo os nossos cabritos chorando enquanto eles eram levados embora” (Foto: Vermont Public Radio)
“Aumentamos o rebanho de cabras e começamos a vender leite de cabra. O infeliz subproduto disso é: ‘O que fazer com todas as crianças?’
“Em certas comunidades étnicas é uma tradição ter carne de cabras ainda bebês [cabritos] durante o feriado de Páscoa. Aqueles de descendência portuguesa e grega que conheciam nossa fazenda nos procuravam nesse período. Nós pesávamos os pequenos de 11 a 15 quilos e os clientes pagavam. Eles então eram recolhidos e jogados na parte de trás do porta-malas ou na carroceria de uma caminhonete como se fossem pedaços de bagagem. Esses bebês olhavam nos meus olhos com confiança, admiração e medo. Jim e eu sabíamos o destino deles. Trabalhando com laticínios a vida toda, Jim tentava endurecer as minhas emoções. […] Muitas vezes, ficamos no portão ouvindo os nossos cabritos chorando enquanto eles eram levados embora. Foi em um daqueles momentos terríveis que Jim e eu nos olhamos de esguelha e decidimos começar a nossa jornada a favor da vida.”
Depoimento de Cheri Ezell-Vandersluis, do Maple Farm Sanctuary, nos Estados Unidos.
Referência
“Tentei não pensar sobre o fato de que ela era uma cabra engraçada e brincalhona que me fazia rir o tempo todo”
Um dia, quando chegou ao trabalho, Susana Romatz, funcionária de uma fazenda de “cabras felizes” percebeu que uma das cabras de quem ela mais gostava tinha sido morta porque estava com um abscesso e uma mastite. Alegaram que o abscesso era possivelmente contagioso e que ela não estava produzindo uma boa quantidade de leite. “Tentei não pensar sobre o fato de que ela era uma cabra engraçada e brincalhona que me fazia rir o tempo todo.”
Sobre “O Conto da Cabra” de Yosef Agnon
Ao perceber que a cabra sempre desaparece por período inexato, o homem conversa com o filho, crente de que o gosto do leite tem relação com as viagens da cabra. O jovem então decide segui-la. O percurso que parece durar horas, mas pode significar até dois dias, termina em uma caverna, uma passagem para um paraíso inimaginável chamado Terra de Israel.
Extasiado, e ciente de que a véspera do sabat anteciparia a escuridão, ele se vê incapaz de retornar para casa. Preocupado, prende um bilhete na orelha da cabra e pede que ela a entregue a seu pai. Quando vê o animal chegando sozinho, o homem entra em desespero e pragueja a cabra, a quem responsabiliza pelo sumiço do filho. Movido por surto momentâneo, a entrega a um açougueiro. Depois de assassinada, o bilhete cai da orelha da cabra.
“Ai do homem que rouba de si mesmo a sua própria fortuna, e ai do homem que reivindica o bem com o mal”, gritou o velho arrependido, batendo as mãos na própria cabeça. O luto durou dias. O homem se debruçou choroso sobre o animal e se recusou a ser consolado. Na história, o leite é também uma metáfora dos caminhos e dos descaminhos do homem.
Sobre a obra “סיפורו של העז” ou “O Conto da Cabra”, de Shmuel Yosef Agnon.
A cabra da mangueira
Era como se sua essência se esforçasse para se lançar para fora de um abismo movediço e ruidoso
Eu tinha oito anos. Henrique e Thiaguinho vieram me chamar num sábado para ir até a casa deles brincar com um animal “diferente”. Avisei minha mãe e acompanhei eles até o quarteirão de baixo. Chegando lá, vi uma cabra tão branquinha e portentosa que só o fato dela existir parecia o suficiente para transmitir a mais querençosa das serenidades.
Ela se mantinha silenciosa amarrada a um pé de manga no quintal, e desde que a vi pela primeira vez notei seu olhar amiudado e melancólico. Em algumas partes do seu corpo havia uma porção de cicatrizes; talvez tivesse se machucado nas tentativas de fuga. Enquanto tirava minhas próprias conclusões, ela se cansou de ficar em pé e sentou sobre uma porção de folhas secas, ignorando as mangas apodrecidas que lambuzavam seus pelos.
Sua cabeça se movia lentamente de um lado para o outro. Ao mesmo tempo, sete ou oito pessoas gritavam, riam e conversavam. Cães e gatos atravessavam o outro lado do quintal, numa brincadeira consentida sem hora para terminar. Com receio de ser repreendido, fiquei num canto assistindo a cabra a quem dei o nome de Belinha – sem contar a ninguém.
O pai de Henrique não tirava os olhos dela. Entre um gole e outro de cerveja, ele se aproximava da cabra que indiferente a tudo não reagia às leves palmadas que recebia, acompanhadas de um sorriso e uma frase clichê: “É hoooojeeee!” Não entendi o que ele quis dizer e fiquei calado. Quando tossi, Belinha notou que eu estava sentado no chão, escorado contra o cercadinho da varanda.
Em seu olhar havia uma opacidade que se misturava a um brilho fortuito. Era como se sua essência se esforçasse para se lançar para fora de um abismo movediço e ruidoso. Cerca de 15 minutos após a minha chegada, ela fechou os olhos, mirou o chão e assim ficou. Me levantei e caminhei em direção a ela, até que o pai de Henrique apareceu de repente e sugeriu que eu me afastasse da cabra: “Vá brincar pra lá, David! Não é pra chegar perto da cabra!”
Assustado, voltei amuado para o meu canto. Belinha abriu novamente os olhos. Mesmo com as patas sujas e o lombo ligeiramente turvo, no meu ideário ela ainda era o ser mais impoluto do lugar. Eu não conseguia associar sua imagem à sujeira. Seu semblante e tudo que emanava dele reforçava minha opinião.
Mais alguns minutos se passaram e uma brisa repentina balançou as folhas da mangueira. Belinha se levantou, elevou a cabeça em direção ao céu e sentiu o bafejo da natureza acariciando sua barba longa e fina. Tive a impressão de vê-la sorrindo enquanto seus pelos se avolumavam na sua simplicidade contemplativa.
Assim que a aragem partiu, a luz aos poucos se extinguiu. O sol já não brilhava sobre nossas cabeças. Era um início de tarde travestido de fim. Preocupado, corri até em casa para ajudar minha mãe a tirar as roupas do varal, crente de que logo mais a chuva chegaria, derrubando e arrastando tudo com patifaria.
De volta à casa de Henrique, minhas pernas tremularam quando olhei em direção à mangueira. Belinha foi degolada e abaixo dela havia dois baldes cheios de sangue que respingaram sobre o solo, tingindo de vermelho as folhas e mangas no chão. Tentei encostar a mão na sua cabeça, ou pelo menos nos fios de sua barba, mas eu era pequeno e só pude acariciar suas patas.
Me arrepiei e chorei ao ver seus olhos retangulares e melífluos ainda úmidos. Sabia que ela também tinha chorado, porque sua barba gotejou transparência sobre a minha testa. Encolerizado, caminhei até uma roda de homens e perguntei porque eles mataram a cabra. “Pra comer, ora! Por que mais seria?”, responderam em uníssono, fazendo troça da minha exasperação.
À noite, antes de dormir, me ajoelhei diante da cama, orei e pedi a Deus que colocasse Belinha em um bom lugar, que não a deixasse vagar pelos umbrais por ter morrido de forma trágica e antes da hora. No dia seguinte, vieram em casa oferecer a carne da cabra, mas minha mãe recusou educadamente. Apesar de enraivecido, eu não disse nada. Depois fiquei sabendo que todos que comeram a carne de Belinha passaram muito mal.
Além disso, quatro homens que participaram do abate da cabra faleceram na mesma semana em um acidente, transportando gado do Mato Grosso do Sul para o Paraná. Supersticioso, o pai de Henrique e Thiaguinho nunca mais matou nenhum animal. E eu, ao longo de um mês, prossegui com a mesma oração: “Deus, coloque os amigos do pai de Henrique em um bom lugar. Mas em primeiro lugar a Belinha que morreu antes.”
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