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Tom Worby, morto aos 15 anos em uma ação contra caçadas
Hoje completa 25 anos que Tom Worby, de Milton Keynes, foi morto aos 15 anos, quando se juntou a um grupo de 40 sabotadores de caçadas em Low Farm, perto de Gravesley, no Condado de Cambridge, na Inglaterra. Aquela foi a primeira e a última vez de Tom em um ato contra caçadas. O que começou como uma ação aparentemente normal terminou em uma tragédia.
No dia 3 de abril de 1993, Tom e a namorada se juntaram a um grupo de pessoas que não concordavam com a crueldade da caça à raposa. Por isso, foram até a Low Farm, onde um grupo se preparava para a matança de raposas. No local, quando os caçadores viram os sabotadores, gritaram algumas palavras ameaçadoras e desapareceram floresta adentro.
Depois os caçadores retornaram em maior número e começaram a discutir com os sabotadores. Logo um policial chegou, conversou com os caçadores e caminhou até os sabotadores. Disse que eles eram invasores e que deveriam partir. Então eles justificaram que não havia nenhuma invasão, já que eles estavam apenas sentados diante do sol e da estrada, sem infringir nenhuma lei.
O policial reconheceu que não havia nada a ser feito, e explicou aos caçadores que não estava disposto a colocar mais recursos na operação. Os caçadores novamente se afastaram dos sabotadores. Ninguém sabia o que eles estavam planejando. Mais tarde, um dos líderes justificaria que eles decidiram interromper a caçada e pediu que um dos caçadores, Anthony Ball, guardasse suas coisas.
Segundo informações do artigo “How Tom Worby, a hunt sab, was killed” publicado pela Netcu Watch em 2008, o senhor Ball era conhecido como um homem bastante imprevisível, e que ficava agressivo com muita facilidade. Semanas antes, com o apoio de outros caçadores, ele desceu de um cavalo e atacou a pé um grupo de sabotadores.
Um dos jovens envolvidos na ação foi deixado inconsciente após ser atingido na cabeça por uma caçadora que era a proprietária da Low Farm. O senhor Ball também foi apontado como o autor de uma série de tentativas de atropelamentos contra sabotadores de caçadas. “Contamos 27 incidentes para os quais temos vídeos e provas fotográficas do senhor Ball usando violência contra sabotadores”, garantiu um dos sabotadores no artigo da Netcu.
No dia 3 de abril de 1993, enquanto o senhor Ball colocava os cães na van e os cavalos no trailer de reboque, os outros caçadores bebiam e conversavam. Então Ball entrou na van com o filho Christopher Ball, o principal terrierman da caçada, e seguiram em direção à estrada.
Os sabotadores ficarem atentos diante da cena. A menos de 500 metros da van, aventaram duas possibilidades – os caçadores estavam realmente desistindo ou apenas mudando de lugar para recomeçar a caçada. No caminho de volta à estrada, os sabotadores se dividiram. Havia uma massa principal de sabotadores mais atrás, um grupo menor e outros dois sabotadores em pontos estratégicos.
Quando a van alcançou o primeiro grupo principal de sabotadores, eles continuaram na estrada porque acharam uma boa ideia atrasar os caçadores, caso a intenção deles fosse retomar a caçada. Inclusive alguns sabotadores sentaram-se na estrada, na tentativa de bloquear a passagem do veículo.
No entanto, a van do senhor Ball fez o seu próprio caminho entre os sabotadores – em um ritmo lento e constante. As pessoas sentadas levantaram-se no último segundo, porque Anthony Ball não deu qualquer indicativo de que pararia. Não houve nenhum tipo de violência ou ameaça por parte dos sabotadores. O objetivo era um só – atrasar a van.
Depois de algum tempo, a van passou pelo grupo de sabotadores e acelerou bem rápido, aproximando-se de outro grupo de sabotadores. A estrada estreitava-se naquele ponto, com uma vala íngreme à direita, uma pequena cerca de 30 centímetros de altura e uma densa sebe à esquerda. No volante, o senhor Ball acelerou mais e mais, e seguiu diretamente para o segundo grupo de sabotadores que nem sequer tentou atrasá-los, segundo informações da Netcu.
Tão logo os sabotadores perceberam que o homem não reduziria a velocidade, eles pularam para o lado esquerdo na vala à direita. Apenas Tom Worby não conseguiu fazer isso, por causa da distância. Ele só teve tempo de dar um passo para o lado, em direção única, onde poderia pisar entre a sebe e a van. Porém, basicamente não restou nenhum espaço porque a van era muito larga.
Tom Worby foi pego pelo retrovisor esquerdo e arrastado com o veículo por uns 50 metros. Ele gritava muito e batia contra a porta da van, até que perdeu o controle e escorregou. Tom recuou, mas caiu para a frente sob a roda traseira esquerda. Era possível ver o veículo levantar um pouco quando passou por cima de sua cabeça.
A van de caça dirigida por Anthony Ball não parou. Ganhou ainda mais velocidade e passou por dois sabotadores na estrada, que ficaram tão chocados com o que aconteceu que não conseguiram se mover. A van voltou diretamente para os canis, onde muitos policiais chegaram rapidamente para proteger o senhor Ball.
Os sabotadores correram até Tom Worby e tentaram socorrê-lo. Suas orelhas e nariz sangravam, mas o garoto ainda estava consciente. Eles gritaram desesperadamente por ajuda. Alguns caçadores riram e celebraram como se aquilo fosse uma vitória para eles. Inclusive ameaçaram os sabotadores que expressaram a urgência de se conseguir uma ambulância. Eventualmente um policial foi avisado e solicitou ajuda. Tom morreu nos braços da namorada e ninguém foi responsabilizado pelo que aconteceu.
Saiba Mais
Grupos anti-caçadas normalmente são grupos pacíficos que usam de táticas como buzinas, apitos e dispositivos eletrônicos para confundir cães de caça. Também criam falsas trilhas e usam de recursos que chamam a atenção dos animais que serão caçados, para que eles possam se antecipar diante da ação dos caçadores.
Referência
A chacina das galinhas
“Se for troca de tiros, a gente derruba ele e quem mais vier”, garantiu José em tom sisudo
Em 1956, o pioneiro José Alves de Souza vivia em um rancho nas imediações da Avenida Tancredo Neves, em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, quando chegou em casa e encontrou as suas 15 galinhas mortas. Compradas em menos de uma semana, foram violentamente estraçalhadas e partes das vísceras estavam no chão de terra, misturadas às penas.
“Que diabos aconteceu aqui? Quem fez isso com as minhas galinhas?”, se perguntou José levando as mãos à cabeça. Na semana seguinte comprou mais 15 galinhas e outras vez foram mortas brutalmente. O objetivo de José era criar e vender animais. No entanto, ele não sabia que os cães de caça de Paranavaí tinham o hábito de invadir propriedades para comer as galinhas.
“Na época tinha muitos caçadores na cidade e isso significava muitos cães de caça. Eles eram violentos demais, invadiram uma fazenda e mataram todos os carneiros”, enfatiza. Irritado, José conversou com o irmão e decidiram comprar armas de fogo. Naquele tempo cada caçador tinha de 15 a 30 animais. Um homem conhecido como Nego possuía 26 cães de caça. “Alguns tinham mais de 30. Aquele mundo velho de cachorro acabando com tudo. Não dava pra criar nada”, desabafa.
Um dia o irmão do pioneiro chegou em casa com uma garrucha e duas espingardas. Juntos, treinaram tiro ao alvo no quintal, chegando a acertar caixinhas de fósforo à longa distância. “Quando aparecia cachorro a gente metia bala, até que começaram a sumir. Daí um valentão da cidade, que além de caçador estava concorrendo às eleições de 1956, mandou um dos seus capangas em casa pra dar um recado”, narra.
Numa manhã ouviram alguém batendo palmas e berrando em frente ao rancho. Era um homem forte, de má fama e expressão carrancuda que observava José. “Não mata o cachorro do patrão porque ele é bravo. Ele derrota vocês”, alertou enquanto alisava o gatilho de uma pistola presa à cintura. Sem hesitar, o anfitrião respondeu que seria mais fácil ele e o irmão vencer o invasor. “Se for troca de tiros a gente derruba ele e quem mais vier”, garantiu em tom sisudo. O visitante ficou espantado com a reação de José, de 24 anos, que teve o discurso endossado pelo irmão mais novo.
“A gente era peão, sem conhecimento de nada. Não pensava nem em Deus, mas acreditava que ninguém deve abaixar a cabeça pra ninguém. Também sabia que já existia muita maldade no mundo”, relata. Dias depois receberam a visita inesperada do homem que ameaçou matá-los. O sujeito os cumprimentou e perguntou se jogavam carteado. “Catamos um baralho velho e começamos a brincar. Ficamos amigos e depois até a família dele passou a frequentar a nossa casa”, revela.
Calado, o homem que rejeitou a sociedade
Diante do sol nascente fez uma oração à natureza, se preparando para cobrar pelo sangue derramado
Calado não é um personagem comum ou conhecido da população de Paranavaí e do Noroeste do Paraná. Na realidade, ouso dizer até que é anônimo. A primeira vez que ouvi falar sobre ele foi no Cemitério Municipal de Alto Paraná, em uma conversa entre meus familiares e outras pessoas já falecidas que chegaram a esta região nas décadas de 1930 e 1940. À época, eu tinha entre 11 e 12 anos e fiquei fascinado, embasbacado com o relato sobre aquela figura quimérica que logo invadiria meus sonhos. Acordado, eu divagava e escrevia, baseando-me no que foi ou poderia ser tal sujeito de características singulares.
A história diz que Calado ou Saru, chamado Maurício, chegou ao Noroeste do Paraná no final do século 19, após ser acusado de se aliar aos maragatos em Paranaguá, durante a Revolução Federalista em 1894. Há quem diga que ele era parente de Gumercindo Saraiva, um dos comandantes das tropas rebeldes que lutavam pela deposição do presidente do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos. Mesmo com a morte de Ildefonso Pereira Correia, o barão do Serro Azul, em 6 de agosto de 1894, injustamente executado como traidor da pátria, os chimangos (republicanos) intensificaram a perseguição aos que teriam contribuído com os maragatos, independente da consistência das provas.
Com 19 anos, na tarde de 13 de setembro, Maurício estava em casa ajudando o seu pai a recolher as tábuas de um velho rancho que tinham desmontado pela manhã. Antes que pudesse terminar o trabalho, quatro homens invadiram a chácara da família procurando pelo rapaz. Assim que Maurício se apresentou, dois soldados o seguraram pelos braços, o acusando de conspiração contra a república. Vasculharam o quarto do jovem e encontraram uma pequena caixa de madeira dentro de um armário. No interior, havia um lenço vermelho, que caracterizava a vestimenta dos maragatos, e o rascunho de uma carta que supostamente foi entregue em julho de 1894 a Gumercindo Saraiva, líder do movimento.
Nela, o autor dava detalhes sobre a localização de uma fazenda que poderia servir de abrigo para os insurgentes sob comando do almirante Custódio de Mello. As informações selaram o destino de Maurício que tentou explicar que a caixa não pertencia a ele. Desesperados, seus pais choraram e imploraram para que o filho não fosse levado. De nada adiantou. O rapaz foi transportado até uma casa velha e abandonada a quilômetros de distância, onde o obrigaram a entrar em um porão extremamente sujo.
O lugar era úmido, escuro e havia um odor nauseante de ferrugem. Sem enxergar nada, Maurício quase escorregou em uma poça. Quando um dos soldados acendeu a lamparina, o rapaz viu que havia bastante sangue sob seus pés; uma parte ressequida e outra ainda fresca, indicando que não fazia muito tempo que alguém entrou ou saiu gravemente ferido daquele lugar. O oficial que comandava a operação, identificado apenas como Justo, disse com voz plácida e pausada para Maurício assumir a autoria da carta, justificando que assim eles não precisariam machucá-lo.
O rapaz rejeitou a oferta. Por cerca de um minuto, o oficial observou seus olhos sem transmitir qualquer tipo de emoção. Caminhou até uma cadeira recostada num canto bem iluminado e sentou-se diante de uma mesinha onde havia um cachimbo com um tubo de bambu e um fornilho de barro. Lá mesmo, o sujeito começou a fumar ópio, alheio ao que aconteceria nos próximos minutos.
Enquanto isso, Maurício, mantido nas pontas dos pés com os braços suspensos por uma corda, levava socos e chutes de dois chimangos, mas não o suficiente para feri-lo gravemente. Ainda assim, sentindo severas dores em várias partes arroxeadas do corpo, ele lacrimejava em silêncio e ocasionalmente gritava que era inocente. Quando Justo parou de fumar, e acenou com uma das mãos cobertas pela fuligem de uma lamparina pendurada a centímetros de distância, os soldados se afastaram e saíram do porão.
“Você já ouviu falar no ‘braço de folie?’ É uma técnica muito interessante que um mercenário, um apátrida francês, descobriu na Ásia para conseguir respostas honestas de pessoas que não gostam muito de falar a verdade. É bem eficaz, tanto que até hoje nunca deixei de alcançar meu objetivo. Ah! E é exatamente pela boa aplicação dela que me chamam de Justo”, declarou com voz grave e sorriso tétrico.
Desinteressado em fazer mistério, o oficial caminhou até outro canto do porão, retirou algumas flores amarelas de um saco e começou a macerá-las vagarosamente com um pilão, combinando com outros dois ou três ingredientes desconhecidos. “Meu rapaz, veja que dádiva de flor! Se chama ranunculus e pode ser tão bela aos olhos quanto deletéria ao corpo. Há de concordar comigo em breve”, comentou.
Justo avaliou a viscosidade da pasta, caminhou até Maurício, deu alguns tapinhas em suas costas e esfregou nas axilas do rapaz a mistura que tinha a consistência de um unguento. Em segundos, sentiu a pele esquentando. Um minuto depois, todos os pelos da área afetada caíram e suas axilas queimaram como se alguém as tocasse com um ferrete. “Enquanto sentia a pele em carne viva e se balançava, na tentativa de resfriar as queimaduras, ele continuava afirmando que era inocente. Disse à minha avó que a princípio o cheiro da mistura ajudava a amenizar a dor insuportável”, conta Arminda Gervasi, sobrinha-neta de Maurício.
Justo também esfregou um pouco do “braço de folie” nas costas do rapaz que não suportou as dores e acabou desmaiando. A sensação era terrível, dando a impressão de que seus músculos dorsais foram dilacerados. Horas mais tarde, Maurício estava deitado em uma cama dentro de um barracão de estocagem de erva-mate. Acordou e não entendeu o que aconteceu. No seu corpo não havia sinais de queimadura, apenas da violência física cometida pelos dois soldados. Quando ouviu o som da buzina de um navio, percebeu que estavam nas imediações do porto.
O seu algoz continuava ao seu lado, observando sua reação. Supostamente o rapaz seria levado em um navio da Marinha para ser julgado no Rio de Janeiro. Porém, o oficial da escolta mudou de ideia ao ter certeza que Maurício não mentiu. “A verdade é que não vamos levá-lo a lugar nenhum. A ordem que recebi é para matá-lo e abandonar o seu cadáver num buraco qualquer. Só que minha experiência me convenceu de que você é inocente. Como não posso admitir falhas, deixarei você viver sob duas condições: suma deste lugar e nunca mais procure seus pais. Se eu souber que não acatou minha ordem, voltarei e matarei toda a sua família. Agora vá! Desapareça da minha frente!”, ordenou o homem.
Confuso, assustado e tremendo, o rapaz saiu porta afora e correu mancando por mais de dois quilômetros até encontrar uma floresta onde se escondeu entre os arbustos. Sujo, faminto e ofegante, Maurício observou ao longe seus pais cabisbaixos na entrada de casa. Contrariando o oficial da escolta, caminhou furtivamente até eles e relatou tudo que aconteceu desde que foi levado de casa.
“Não posso ficar. Fiz um acordo com aquele homem e ele prometeu que viria atrás de mim e de toda nossa família se eu não cumprisse sua ordem. Vim só pra me despedir e avisar que entrarei em contato em no máximo um ano”, prometeu. Abraçados com o filho, os pais choraram novamente e pediram que ele passasse pelo menos mais uma noite em casa antes de partir. Temendo o pior, Maurício recusou. Aceitou só os curativos, a mala preparada pela mãe e um saco com alimentos, principalmente pães e frutas. Também se despediu da irmã Sophia que à época tinha dez anos.
Enquanto caminhava a passos rápidos, o jovem manteve o olhar em direção aos pais. A mãe, Maria, uma costureira baixinha e de mãos aveludadas, estava com o rosto rubro e os olhos túrgidos de tanto lacrimejar. O pai, Nestor, um magro sapateiro de estatura mediana que se dedicava tanto ao trabalho que trazia no rosto duas pequenas manchas indeléveis de graxa, acenava com uma das mãos enquanto usava a outra para acariciar o ombro da esposa, na tentativa de confortá-la. Prestes a desaparecer através do nevoeiro, Maurício ouviu o eco da voz de sua mãe gritando que o amava, lembrança que o acompanharia por toda a vida.
Assim que deixou Paranaguá, o rapaz encontrou um grupo de tropeiros e os acompanhou até chegar a Sorocaba, em São Paulo. De lá, partiu a pé e sozinho para Tatuí e Avaré, também no interior paulista. “Trabalhava só pra sobreviver. Seu objetivo era ficar longe e ao mesmo tempo sentir-se perto dos pais. Não parava em lugar algum porque seu sonho era voltar ao Paraná, de uma forma que não comprometesse sua família”, enfatiza Arminda, neta de Sophia.
Maurício chegou no início de 1896 à Fazenda da Prata, da Família Alcântara, onde mais tarde surgiria a cidade de Jacarezinho, no Norte Pioneiro do Paraná. Lá, se ofereceu para trabalhar na derrubada de mata. Na incursão pela floresta, ficou impressionado com as belezas da flora e da fauna. Era a primeira vez que sentia-se bem desde que saiu de casa.
Sempre que perguntavam seu nome e origem, ele mentia, preocupado com a possibilidade de ser perseguido pelos republicanos. Evitava falar do passado e não gostava de conversar mais do que o necessário. Às vezes, dormindo na colônia da fazenda ou em algum acampamento perto da mata, onde passava meses trabalhando, acordava sobressaltado, suando frio e soluçando. “Nunca mais foi o mesmo. Tinha fortes dores de cabeça e de estômago, delírios ocasionais e um medo constante de morrer, agravado por uma ansiedade sem fim. Sonhava com a família todos os dias, só que decidiu nunca mais procurar ninguém por receio de represália”, revela a sobrinha-neta.
Avesso à violência, quando presenciava brigas entre peões, Maurício virava as costas e se afastava com o corpo trêmulo. O som de cada soco ou chute trazia nefastas recordações das sessões de tortura em Paranaguá. A agonia e o estado de desespero só eram amenizados com a leitura de um livro que o acompanhava desde os 15 anos – “Papéis Avulsos”, de Machado de Assis, que ganhou dos pais no Natal de 1890.
“Antes de falecer em decorrência de um câncer de tireoide, minha avó ainda falava com os olhos cheios de lágrimas das muitas vezes que seu irmão sentou perto da cabeceira para ler uma das histórias desse livro antes dela dormir”, confidencia Arminda emocionada. Maurício tinha predileção pelos contos “A Teoria do Medalhão”, A Sereníssima República”, “O Alienista” e “O Espelho”, decorando-os integralmente antes de completar 16 anos.
Respeitado pelo patrão, e tratado com desprezo e indiferença por gatos (fiscais) e colegas de trabalho – homens brutos do sertão, o rapaz teve a paz abalada numa noite amena de outono. Cochilando com as costas escoradas numa árvore, deu um grito alarmado quando um sujeito embriagado o segurou pelo colarinho da camisa, o questionando sobre o paradeiro de uma quantia em dinheiro guardada embaixo de um toco. “Por favor, me deixe em paz. Eu não sei de nada. Me solta! Me solta!”, pediu Maurício, de acordo com Arminda Gervasi.
Ignorando a negativa, o homem desferiu um soco no rosto e outro no estômago do rapaz que de tão espaventado teve uma repentina crise de diarreia. Entre goles de cachaça e muita gritaria, os peões já bêbados apontavam os dedos para Maurício e gargalhavam, numa zombaria sem limites. Sem dizer palavra, ele se levantou, caminhou até a barraca onde guardava seus pertences, juntou as próprias roupas em um saco e desapareceu mata adentro, sob o olhar displicente do fiscal que entornava uma garrafa de aguardente. Aquelas pessoas nunca mais o veriam.
Sem se importar com o que poderia lhe acontecer, o jovem se distanciou cada vez mais da sociedade e da civilização, entregando a própria vida aos acasos do desconhecido. “Ele já não queria mais viver junto de outras pessoas. O que aconteceu naquela noite foi o estopim”, garante a sobrinha-neta.
No dia 27 de março de 1896, Maurício entrou na floresta para não mais retornar. Sem medo do próprio fim, começou uma jornada despretensiosa de descobertas e autoconhecimento. Durante o dia, atravessava quilômetros de mata fechada e quando anoitecia se abrigava sobre as árvores. Com o tempo, aprendeu a escalar as mais altas e robustas, que lhe permitiam uma visão privilegiada das cercanias.
Apesar das dificuldades, seu organismo então fragilizado aprendeu a se adaptar a uma alimentação baseada em frutos e vegetais. Algumas vezes, após ingerir algo completamente desconhecido, passou tão mal que pensou que fosse morrer. “Ele era muito mais forte do que imaginava. Em poucos dias, já se sentia saudável. Talvez fosse um sinal, um chamado da natureza, de que nasceu para aquela vida. Acho que outras pessoas não sobreviveriam”, avalia Arminda.
Com o tempo, o rapaz abandonou roupas e pertences, menos um relógio de bolso que prendeu no braço – presente dos pais. Sem rumo, atravessou centenas de quilômetros de mata nativa. Só interrompeu o percurso por volta de 1898, quando encontrou uma onça-pintada caída, quase morta, com o sangue escorrendo sobre pedras musgadas às margens de um riacho.
Ainda acordada, observou Maurício a arrastando alguns metros mata adentro. Ele a deitou sobre a relva e estancou com folhas e raízes um grande ferimento na barriga do animal. Cuidou da onça por dez dias e, apesar de parecer assustada e confusa, ela não o encarou como ameaça, sequer mostrou os dentes ou apontou as garras.
Para Maurício, já não era algo surpreendente. A floresta tornou-se um lar e, de algum modo, seus velhos habitantes o aceitavam. Nem mesmo os índios de etnias caingangue e caiuá que encontrou pelo caminho o tratavam como invasor. Muito pelo contrário. Até o convidavam a participar de algumas celebrações, e foi numa dessas ocasiões que o batizaram como Saru, palavra tupi-guarani que significa Calado em português.
Meses depois, o rapaz reencontrou a onça de quem salvou a vida. Empoleirada numa árvore, ela saltou quando o viu. Se aproximou, observando os olhos de Saru, e deixou que ele deslizasse rapidamente as mãos pelo seu dorso. Cabeludo, barbudo, de estatura mediana e magro, o jovem ostracista de pele oliva aprendeu a ser mais silencioso do que os mais leves e menores animais que atravessavam a mata nativa. Vivendo sozinho, só interagia com quem se aproximava dele, o que talvez justifique porque sobreviveu tanto tempo na floresta. “Ele chegou a ser picado por cobras. A sua salvação foi o tratamento dos índios caiuá”, informa Arminda.
Em 1898, Calado já vivia em uma área onde surgiria a cidade de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Numa manhã, cansado de viajar sem rumo e de dormir ao relento, começou a construir uma casa no topo de uma gameleira. Dias depois, levou um susto numa madrugada quando notou que havia um animal pressionando as patas contra a lateral da casinha. Cuidadoso, se aproximou e viu que era a onça que o visitou em outra ocasião.
Segundo relato de Arminda, Saru saltou da árvore e seguiu o animal até uma área dominada por cedros, ipês e aroeiras, onde árvores menores ofereciam muitos frutos desconhecidos. A onça a quem Calado deu o nome de Sophia, em homenagem à irmã, conviveu com ele por mais de 15 anos. Por volta de 1914, um pequeno grupo de invasores que chegou à região, provavelmente vindo do estado de São Paulo, para avaliar a qualidade do solo, matou Sophia e Toriba, um de seus filhos, a tiros. Os dois brincavam às margens de um riacho.
Assim que ouviu um estampido, Calado atravessou até o local do ataque e observou os quatro homens armados se aproximando de seus amigos mortos. Um deles sorriu, cutucou a onça com a bota e comemorou: “Nunca imaginei que seria tão fácil matar um bicho selvagem no seu próprio habitat.” Saru guardou para si a fúria que o dominou naquele momento e esperou anoitecer.
Quando os quatro montaram acampamento e se reuniram em torno de uma fogueira, ele assistiu um dos homens ir até uma mina buscar água. Assim que o sujeito retornou, Calado atirou castanhas em várias direções. Também imitou rugidos de onça e escalou a árvore mais próxima. Preocupados, recolheram suas armas e tentaram localizar a origem do barulho, se afastando do acampamento. Silencioso, Calado saltou perto da fogueira, abriu cada cantil e dentro despejou “sono de abaité”, um veneno de origem indígena baseado em batracotoxina, uma secreção extraída das costas de rãs e besouros.
Pela manhã, ao retornar ao acampamento, os quatro invasores tinham tomado a água do cantil e estavam mortos. Semanas depois, outros homens chegaram ao local procurando os desaparecidos. No entanto, concluíram que as mortes foram uma consequência natural da falta de atenção dos desbravadores que talvez tivessem comido frutos venenosos.
Ainda abalado com a morte de Sophia e Toriba, Saru enterrou os dois no ponto mais elevado da floresta, onde frequentemente os animais menores passavam o dia brincando. A cerimônia atraiu a atenção dos outros descendentes da onça-pintada. Ele também notou a presença de antas, pacas, quatis, veados, tatus, jaguatiricas, lobos-guará, gatos-do-mato, bugios e aves. Coincidentemente ou não, parecia uma reunião.
Embora tenha vivido mais alguns anos sem contato com seres humanos, Calado sabia que isso não duraria para sempre. Cerca de dez anos depois, ouviu barulhos cada vez mais frequentes de pessoas abrindo picadões. “Pra ele, o mais importante era que ninguém interferisse na vida selvagem, não matasse os animais. A floresta ainda era grande e ele reconhecia que era possível viver longe da civilização, mesmo com a chegada dos desbravadores”, assinala Arminda.
Desde a morte de Sophia e Toriba, Saru se colocou na posição de guardião da mata nativa de uma grande área onde surgiriam as cidades de Paranavaí e Alto Paraná. Os remanescentes dos índios caiuá nada poderiam fazer a respeito, já que a maioria vivia a mais de 100 quilômetros de distância, próximos do Rio Paraná e do Rio Paranapanema. Beirando os 50 anos, Calado pouco sofreu com a ação do tempo. Facilmente poderia ser confundido com um homem de pouco mais de 30 anos.
Corria pela floresta com extrema agilidade e se exercitava todos os dias sobre as árvores – tanto que ao longe era facilmente confundido com um animal. Vivia como alguém que nasceu e cresceu em território selvagem. Em contraponto, acreditava que quando uma vida era ceifada por motivo banal cabia a ele fazer justiça. E foi assim que Calado puniu entre as décadas de 1920 e 1950 muitos caçadores que invadiram a mata noroestina com a intenção de matar onças por diversão ou para extrair o couro que seria vendido a algum curtume. “Ele tinha o hábito de se abrigar dentro de tocos de árvores, de onde ele observava a movimentação dos invasores”, assegura a sobrinha-neta.
Quando uma jovem onça-pintada foi morta às margens de um córrego no início da década de 1930, onde surgiria o Jardim Ouro Branco, em Paranavaí, Calado extraiu-lhe as garras e as fixou em um tipo grosso de luva confeccionada à mão. Antes de usá-la, as deixou por uma noite embebidas no “sono de abaité”. De manhã, Saru se ajoelhou no chão, e diante do sol nascente fez uma oração à natureza, se preparando para cobrar pelo sangue derramado. De longe, reconhecia a intenção dos homens, se eram inimigos ou não.
Ele justificaria mais tarde que os caçadores traziam uma energia pesada e sufocante que ameaçava o equilíbrio da vida e a vitalidade soberana da floresta. “Meu tio-avô matou mais de 20 caçadores. Os corpos eram abandonados nos carreadores para que a família tivesse direito de enterrar o falecido. Ninguém nunca desconfiou que aquelas mortes pudessem ser causadas por um homem. Achavam que era coisa de onça mesmo”, narra Arminda Gervasi.
Guardião da floresta, Calado encarava como um ritual de justiça os matadores de onças sentirem a própria carne sendo penetrada pelas garras dos felinos que mataram. Entretanto, ao contrário do que imaginavam na época, as mortes eram causadas pelo “sono de abaité” e não pelos golpes, mais simbólicos do que fatais. Caçadores temidos em diversas regiões do Brasil sucumbiram diante das artimanhas de Saru.
Em 1937, Sophia, irmã de Maurício, viajou à Fazenda Brasileira com o marido para comprar uma propriedade rural. Enquanto se distraía caminhando por um carreador, ela observou ao longe um homem nadando em uma lagoa de águas cristalinas. Curiosa, se afastou do marido que conversava com um corretor de imóveis e andou em direção ao desconhecido. “Quer que pegue suas roupas? Onde elas estão?”, questionou Sophia. Quando o homem que serpenteava entre os peixes virou o rosto em sua direção, ela caiu de joelhos no chão, com as mãos tapando o nariz e a boca. Sophia chorou como uma criança ao notar nos olhos expressivos daquele homem de 62 anos o olhar vívido do irmão que partiu com 19 anos.
Sem dúvida, Maurício tinha envelhecido, mas ainda parecia mais jovem que Sophia. Calado ou Saru, que abandonou a identidade de Maurício, não conseguiu articular palavra. Ficou imóvel, com as mãos trêmulas enquanto as lágrimas escorriam pelo seu rosto já molhado. Ao ver que não havia roupas por perto, Sophia correu até o carro do marido, abriu uma mala e pegou uma calça, uma camisa e um par de sapatos. Então sugeriu que Maurício os vestisse.
Apesar da falta de hábito, ele concordou com o pedido da irmã. Saru, que então mais do que nunca justificava o nome dado pelos índios, passou uma semana com Sophia. Somente no terceiro dia começou a conversar normalmente e contou-lhe tudo que viveu desde que deixou Paranaguá em 1894. Sophia, mais chorosa do que falante, ouviu tudo atentamente. Não cobrou notícias do irmão, pois sabia que ele tinha seus próprios motivos. Maurício foi tomado por uma confusão de sentimentos ao saber que seus pais adoeceram e faleceram em 1931 em decorrência de pneumonia.
Também foi Sophia quem informou que as falsas provas de que ele contribuiu com os maragatos foram plantadas por um antigo amigo chamado Arthur. Apaixonado pela jovem Teodora que sonhava em se casar com Maurício, o rapaz decidiu afastá-lo para sempre de sua amada, mesmo sabendo que Maurício não tinha intenção alguma de ser mais do que amigo da moça, muito menos desposá-la. “Essa informação não teve grande efeito sobre ele, que já não se importava tanto com o mundo civilizado. Somente as memórias familiares o arrebataram de forma surpreendente”, esclarece Arminda.
Sophia e o marido tentaram convencer Maurício a se mudar para Curitiba, onde ela vivia há mais de 20 anos. Ele declinou a oferta, a abraçou e argumentou que nada mais o interessava no mundo dos humanos. Antes de partir, Sophia levou as duas mãos ao rosto do irmão e recitou um trecho de “O Espelho”, de Machado de Assis, um dos contos preferidos de Maurício:
“Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro… Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; – e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja.”
Os dois sorriram, se despediram e Maurício correu em direção à floresta, onde, antes de desaparecer completamente, cumpriu um dos seus rituais mais sagrados – se livrou das roupas, o que significava se despir da civilização. Sophia e o marido não compraram nenhuma fazenda em Paranavaí, mas retornaram mais vezes procurando em vão o paradeiro de Maurício tornado Calado.
Entre as décadas de 1960 e 1980, alguns pioneiros e moradores de Paranavaí e Alto Paraná juraram tê-lo visto caminhando pelas estradas da Fazenda Ipiranga e Água do Cedro, além de áreas de mata do Jardim Ouro Branco e Jardim São Jorge. “Uma vez, voltando de viagem, parei no Cemitério de Alto Paraná pra dormir. Tenho certeza de que o vi atravessando tranquilamente por trás das árvores. Isso foi em 1976”, confidencia o pioneiro Júlio Galhardo.
O aposentado Amâncio Bonavero também afirma que viu Calado na área rural de Paranavaí em 1993, com base na descrição que lhe passaram nas décadas anteriores. Se o sujeito correndo pelo campo realmente era Saru, isso significa que ele estava vivo e saudável aos 118 anos. “Tem gente que acredita que o Calado ainda não morreu. Eu sou um desses. Acho que não o vemos mais porque hoje, mesmo de longe, ele ainda evita contato com pessoas. Quem sabe esse seja o motivo da sua longevidade”, deduz Bonavero sorrindo.
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David Chancellor e a vida selvagem
O fotógrafo inglês David Chancellor tem uma carreira envolvida em controvérsia, consequência de sua especialidade – registrar a vida selvagem sob interferência de caçadores. Na foto polêmica ao lado, um caçador de Dallas, no Texas, mostra com ostentação e altivez os seus “troféus”.
Acesse: www.davidchancellor.com
O medo da onça!
Paranavaí surgiu em meio ao habitat das onças
Nas décadas de 1930 e 1940, era comum os moradores da Fazenda Brasileira, atual Paranavaí, no Noroeste do Paraná, se depararem com cobras, antas, jaguatiricas, catetos, queixadas, macacos e veados-campeiros por causa da proximidade da área urbana com a mata. Mas nenhum desses animais assustou tanto a população quanto as onças-pintadas e pardas que viviam na região.
“Tinham que tocar elas para continuarem o trajeto”
Paranavaí surgiu em meio ao habitat de uma população de onças. A justificativa está em um fato corriqueiro percebido no início dos anos 1940, quando muitos migrantes que vinham para cá viveram a mesma experiência. Durante a viagem para cá, motoristas de ônibus e caminhões eram obrigados a parar os veículos porque as onças não davam passagem.
“As pessoas [até mesmo os passageiros] tinham que dar um jeito de tocar elas para continuarem o trajeto. A gente via também anta e cascavel na estrada”, relatou o pioneiro paulista José Ferreira de Araújo, conhecido como Palhacinho.
Nem todos queriam afastar as onças. Alguns pioneiros que se arriscavam como caçadores, mesmo inexperientes, tentavam conquistar prestígio adentrando a mata para abater os animais. Contava-se muito com a sorte, algo que nem sempre os acompanhava. Quem aprendeu isso na prática foi um caçador amador do Povoado de Guaritá (atual Nova Aliança do Ivaí), antiga Derrubada Grande, vitimado por duas onças nos anos 1940.
“Tiraram carne de algumas partes para colocar em outras”
O rapaz estava caçando em companhia de alguns cães quando viu três onças empoleiradas em uma árvore. Não pensou duas vezes e atirou em uma. Ao ser atingido, o animal caiu e foi atacado pelos cães. “As outras duas onças pularam em cima do homem e começaram a rasgar as suas costas e nádegas. Quando os cachorros chegavam perto, aí que elas mordiam. Nisso, o rapaz já tinha jogado a espingarda e ficou lá deitado, então as onças correram pro mato”, frisou Palhacinho.
Quem socorreu a vítima foi o pioneiro Lourencinho Barbosa que o trouxe de carroça até Paranavaí. “Tiveram de tirar carne de algumas partes para colocar em outras. Ele passou por uma cirurgia em Curitiba e voltou aqui depois de três meses, todo deformado”, lembrou José Ferreira. O pioneiro mineiro Enéias Tirapeli jamais esqueceu o dia em que um homem chegou a Paranavaí com uma onça morta, deitada sobre o cavalo. “Até os animais se espantaram. O bicho tinha doze palmos de comprimento”, assegurou.
Na época, vivia aqui José Belentani, conhecido como Balantam, que se tornou um dos maiores caçadores do Paraná depois que abriram a estrada para o Distrito de Piracema. Beletam matava até duas onças por dia. “Não esqueço quando ele chegou aqui com a onça debruçada no arreio do cavalo. Era tão grande que o focinho alcançava o chão”, contou o pioneiro cearense Raimundo Leite, acrescentando que Arlindo Baiano era outro grande caçador local.
“A onça arrancou cinco quilos de carne com uma mordida na nuca”
Se por um lado, alguns conseguiam prestígio e fama matando onças, por outro, a maioria preferia nunca encontrar o animal. Exemplo disso foi o pioneiro paulista Paulo Tereziano de Barros quando certa noite, retornando de viagem, parou em um rancho para descansar.
“As portas estavam fechadas e quando abriram perguntei do que eles estavam com medo. Aí me mostraram uma enorme porca de quem a onça arrancou cinco quilos de carne só com uma mordida na nuca”, enfatizou Tereziano de Barros que sentiu cheiro de onça durante todo o trajeto de volta a Paranavaí. Naquele tempo, o receio de encontrar o animal fazia muita gente pensar duas vezes antes de adentrar a mata ou sair de casa à noite.
Nos anos 1930 e 1940, foram registrados muitos casos de animais de criação mortos pela felina. “Uma vez o irmão do Pedro Palmiano foi ver a porcada dele e a onça estava comendo um porco. Ele ficou com tanta raiva que atravessou o animal com uma foice e um facão”, assinalou Paulo Tereziano. Também houve casos de mulheres que foram atacadas enquanto tomavam banho e lavavam roupas às margens do rio.
De acordo com o pioneiro catarinense Carlos Faber, os mais desatentos eram facilmente surpreendidos pelas onças. “Teve o caso de um rapaz que foi atacado por duas. Sorte dele que os companheiros vinham logo atrás e mataram os bichos”, ressaltou. O pioneiro paulista Valdomiro Carvalho perdeu as contas de quantas vezes ouviu barulho de onças na mata. “Eu usava uma carrocinha com dois cavalos e sempre carregava um encerado. Ouvia os bichos de noite quando eu pousava em algum lugar”, salientou Carvalho.
“Você já viu homem pegar onça assim?”
Nos anos 1940, o pioneiro José Ferreira de Araújo foi visitar o primo em Paraguaçu Paulista, interior de São Paulo. Em viagem a cavalo, passando por Santo Inácio e Guaraci, no Norte Central Paranaense, Araújo trouxe alguns cães de caça. O pioneiro seguiu pela Estrada Boiadeira, nas imediações de Santa Fé e Arapongas. “Era muito suja a Boiadeira, muito fechada. Tanto que eu tive que enrolar uns panos na cabeça porque tinha muitas abelhas e teias de aranha. Os cachorros até se enrolavam nos cipós. Na volta, a gente foi parar no Distrito de Sumaré”, disse.
A viagem que já era muito difícil ficava pior ainda quando escurecia e Palhacinho parava em algum lugar para dormir. O medo de onça era tão grande que o pioneiro colocava os animais de um lado e deitava “beirando o fogo”. Outro episódio jamais esquecido aconteceu quando ele e o companheiro Ulisses perseguiram uma onça ao final de uma corredeira no Rio Ivaí. “A água estava muito forte e ela nadava rio abaixo. O Ulisses me falou para correr e pular no bote. Liguei o motor e fomos atrás dela. Quando chegamos perto que vimos que era uma onça grande”, explicou.
Ulisses pediu que José Ferreira se aproximasse mais do animal para que pudessem pegá-la viva. “Aí eu falei: pegar nada! Você tá louco? Você já viu homem pegar onça assim?”, relembrou. Os dois continuaram seguindo o animal até que ele saiu do outro lado do Rio Ivaí. “O Ulisses passou a mão na espingarda e atirou, mas errou e ela sumiu”, revelou Palhacinho.
Saiba Mais
Na década de 1950, onças ainda invadiam propriedades rurais de Paranavaí.
Naquele tempo, não havia preocupação quanto à preservação de muitas espécies de animais.
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