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Mesmo em um campo de concentração, alemão se manteve fiel à sua filosofia de vida como vegetariano
Em 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, o pacifista alemão Edgar Kupfer-Koberwitz foi classificado como um inimigo da Alemanha e enviado para um campo de concentração em Dachau, ao norte de Munique. Mesmo vivendo em situação degradante, ele se manteve fiel a sua filosofia de vida como vegetariano.
Durante os anos em que esteve em Dachau, ele escreveu diariamente sobre a sua vida e suas impressões da realidade. Para Kupfer, o fato do ser humano negar humanidade a seus semelhantes e, assim agir de forma cruel, sempre foi determinante na legitimação da brutalidade contra os animais.
“Acredito que enquanto o homem torturar e matar animais, ele vai torturar e matar seres humanos também – e guerras serão travadas – pois o assassinato deve ser praticado e aprendido em uma pequena escala. Devemos tentar superar nossa própria pequena crueldade irrefletida, evitá-la e aboli-la”, escreveu em seu diário que deu origem ao livro “Dachauer Tagebücher Die Aufzeichnungen des Häftlings 2481”, publicado em Munique em 1997, baseado em suas memórias e reflexões.
Kupfer-Koberwitz: “Acredito que enquanto o homem torturar e matar animais, ele vai torturar e matar seres humanos também”
Me recuso a comer animais porque não posso me nutrir a partir do sofrimento e da morte de outras criaturas
Em 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, o pacifista alemão Edgar Kupfer-Koberwitz foi classificado como um inimigo da Alemanha e enviado para um campo de concentração em Dachau, ao norte de Munique. Mesmo vivendo em situação degradante, ele se manteve fiel a sua filosofia de vida como vegetariano.
Quando recebia uma porção de carne, Kupfer dava aos seus companheiros prisioneiros, de acordo com informações do “Guide to the Edgar Kupfer-Koberwitz Dachau Diaries 1942-1945”, da Universidade de Chicago. Durante os anos em que esteve em Dachau, ele escreveu diariamente sobre a sua vida e suas impressões da realidade. Para Kupfer, o fato do ser humano negar humanidade a seus semelhantes e, assim agir de forma cruel, sempre foi determinante na legitimação da brutalidade contra os animais.
“Acredito que enquanto o homem torturar e matar animais, ele vai torturar e matar seres humanos também – e guerras serão travadas – pois o assassinato deve ser praticado e aprendido em uma pequena escala. Devemos tentar superar nossa própria pequena crueldade irrefletida, evitá-la e aboli-la”, escreveu em seu diário que deu origem ao livro “Dachauer Tagebücher Die Aufzeichnungen des Häftlings 2481”, publicado em Munique em 1997, baseado em suas memórias e reflexões.
Segundo informações da Biblioteca da Universidade de Chicago, depois de conseguir um trabalho como balconista em uma loja do campo de concentração, Edgar Kupfer-Koberwitz começou o seu próprio diário em pequenos pedaços de papel. A princípio, ele relatava principalmente os incidentes da vida em Dachau.
Para não ser flagrado e punido, ele escondia suas folhas entre outros papéis. Até que mais tarde, preocupado em perder tudo que tinha escrito, tomou a decisão de enterrar seus diários. Ainda assim, foi impossível preservar todas as folhas porque algumas foram danificadas pelo contato com a água.
“Me recuso a comer animais porque não posso me nutrir a partir do sofrimento e da morte de outras criaturas. Me recuso a fazê-lo, porque sofri tão dolorosamente que posso sentir as dores dos outros, lembrando meus próprios sofrimentos”, declarou em carta que faz parte do ensaio “Animais, Meus Irmãos”, que integra seus diários preservados pela Universidade de Chicago.
A passagem foi escrita quando, após contrair tifo, o pacifista alemão estava em um barracão que funcionava como hospital. Mesmo doente e receando a própria morte, ele conseguiu sobreviver, ao contrário de outros 12 mil prisioneiros que sucumbiram em decorrência de doenças ao longo de quatro meses e meio.
“Me sinto feliz, ninguém me persegue; por que devo perseguir outros seres ou fazer com que sejam perseguidos? Não sou prisioneiro, sou livre; por que eu faria com que outras criaturas fossem feitas prisioneiras e jogadas na prisão? Ninguém me prejudica; por que eu deveria prejudicar outras criaturas e fazê-las sofrer?”, ponderou Kupfer.
Edgar Kupfer-Koberwitz foi libertado pelas Forças Armadas dos Estados Unidos em 29 de abril de 1945, assim como outros mais de 67 mil prisioneiros. Quando se deu conta de que estava realmente livre para continuar a sua vida, ele declarou: “O dia acabou, celebrarei este 29 de abril de 1945 pelo resto da minha vida como o meu segundo aniversário, como o dia que me deu novamente a vida.”
Conforme o “Guide to the Edgar Kupfer-Koberwitz Dachau Diaries 1942-1945”, durante a Segunda Guerra Mundial, Adolf Hitler proibiu que todas as organizações vegetarianas continuassem ativas em territórios ocupados pela Alemanha. Também ordenou a prisão de seus líderes. Tal iniciativa foi colocada em prática porque o vegetarianismo organizado era visto como uma ameaça, por se aproximar dos mesmos ideais das organizações pacifistas que o Führer desprezava.
“Ninguém me mata. Por que devo ferir ou matar outras criaturas, ou fazer com que sejam feridas ou mortas para o meu prazer e conveniência? Não é natural que eu não cause dor em outras criaturas que, eu espero e temo, nunca causarão em mim? Não seria injusto fazer tais coisas sem outra finalidade senão gozar deste insignificante prazer físico à custa do sofrimento dos outros, da morte de outros?”, interpelou o pacifista alemão em seu diário.
A vida de um pacifista alemão
Edgar Kupfer-Koberwitz nasceu na cidade de Koberwitz, na Alemanha, em 24 de abril de 1906 e estudou em Bonn, Regensburg e Stuttgart. Após o divórcio de seus pais, ele deixou a escola para ajudar sua mãe e sua irmã. Trabalhou em fábricas, lojas e bancos. Como consequência de uma desilusão amorosa, foi para a Itália em 1925.
Entre idas e vindas até 1940, trabalhou em jornais, agências de viagens e também como modelo para um escultor. Após a sua libertação, ele viveu nos Estados Unidos até o início dos anos 1950. E depois, se mudou para a Sardenha. Decidiu viver definitivamente na Alemanha a partir de 1984. Ele faleceu em Stuttgart, na Alemanha, em 7 de julho de 1991.
A autenticidade de seus diários foi confirmada pelos agentes do Corpo de Contra-Inteligência (CIC), e também por testemunhas. Ele criou e distribuiu um questionário entre ex-prisioneiros, assim reunindo declarações sobre seu comportamento no acampamento e sobre sua confiabilidade. Os relatos nos diários de Edgar Kupfer, doados à Universidade de Chicago em 1º de abril de 1954, foram publicados de forma fragmentada pela primeira vez no semanário do parlamento alemão “Aus Politik und Zeitgeschichte”, sob o título “Als Häftling in Dachau”.
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“Die Tierbrüder − eine Betrachtung zum ethischen Leben“, ou “Os Irmãos Animais – Uma Consideração da Vida Ética”, ensaio que ele escreveu sobre vegetarianismo, foi publicado na íntegra no livro “Radical Vegetarianism”, de Mark Mathew Braunstein, em 1981.
Referências
https://www.lib.uchicago.edu/e/scrc/findingaids/view.php?eadid=ICU.SPCL.KOBERWITZ
http://neveragain.org.il/articles/animals-my-brethren-edgar-kupfer-koberwitz/
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Refugiado húngaro criou as maiores obras da Igreja São Sebastião
Em Paranavaí, Bálint Fehérkúti criou as mais importantes obras da Igreja São Sebastião
Entre os anos de 1966 e 1971, depois de escapar de um gúlag, campo de trabalho forçado na União Soviética, o artista plástico húngaro Bálint Fehérkúti viveu em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, e produziu as mais importantes obras da Igreja São Sebastião. Com uma sublime capacidade de transmitir sentimentos pessoais por meio da arte, Fehérkúti despertou admiração e repulsa.
“Na via-crúcis tradicional a cena é muito restrita a cruz e mais duas ou três pessoas. Bálint preferiu fazer diferente. Incluiu mais personagens, alguns como se estivessem dialogando. Foi realmente inovador”, conta frei Filomeno dos Santos após analisar a obra de caráter estético arcaico produzida em argila pelo artista húngaro em 1966.
Em essência, a Via-Sacra de Fehérkúti foi pouco compreendida. Com o passar dos anos, os fiéis se dividiram entre favoráveis e contrários à exposição da obra. Alguns alegavam que mesmo muito bonita não despertava piedade. Outros foram mais intolerantes e intransigentes nas críticas. Em 1990, quando a Via-Sacra começou a se deteriorar, o frei Gentil Lima alegou que não encontraram restauradores habilitados para conservar a estética original, então decidiu substituí-la.
De 1966 a 1971, Fehérkúti produziu as populares esculturas de quatro grandes estátuas de São José, São Sebastião, Maria do Monte Carmelo e Santa Teresa de Lisieux. As estátuas foram finalizadas pelo escultor austríaco Conrado Moser. Para a Ordem do Carmo de Paranavaí, o artista húngaro criou também uma pintura do batismo de Jesus e outra da ressurreição de Cristo. A primeira pode ser vista na capela do batismo e a segunda na cripta embaixo do altar-mor.
Em 2006, durante visita à Paróquia São Sebastião, atual Santuário do Carmo, me surpreendi com a intrigante pintura de “A Última Ceia”, inspirada no afresco de Leonardo da Vinci. A imagem que ocupa uma parede inteira do refeitório foi idealizada pelo húngaro em 1970. Quem observa a pintura com atenção percebe que pouco acima da cabeça de Jesus Cristo há um par de olhos, chifres e um focinho. A primeira pessoa que notou a suposta figuração do demônio foi um padre franciscano que visitou a paróquia em 1990.
Ninguém sabe se a representação foi intencional ou não, já que é muito comum o inconsciente se revelar durante uma prática artística. “Acredito que simboliza a tentação que Judas sofreu em trair Jesus”, interpreta frei Filomeno. Na “Última Ceia” de Bálint, a aparência clássica e hermética dos apóstolos foi substituída por feições mais familiares dos padres alemães que viviam em Paranavaí.
“Na sala de recreação, uma grande pintura com uma vista de Bamberg [cidade de origem de muitos padres que viveram em Paranavaí] testemunha a sua capacidade, assim como a pintura que está no altar da Igreja Nossa Senhora das Graças [situada em Graciosa, distrito de Paranavaí]”, escreveu o frei alemão Alberto Föerst no livro Erinnerungen eines Brasilienmissionars, lançado na Alemanha em 2012.
Ultrapassando estilos, técnicas e formas, Fehérkúti encontrou na subjetividade da arte um meio de tentar se reencontrar, dialogar consigo mesmo e registrar a própria história, além de materializar em desenhos, pinturas e esculturas as impressões e cicatrizes deixadas pelo passado.
Escultor, pintor e desenhista, Bálint era acima de tudo um artista múltiplo, apto a enfrentar qualquer desafio. Ousado, sabia como se lançar em cada obra de forma implícita e explícita. Não hesitava em apresentar uma perspectiva mais contemporânea e pessoal de tudo. Manipulava os mais diferentes materiais com uma facilidade impressionante.
Surpreendia trabalhando com pinturas em aquarela e têmpera, lápis sobre papel, vitrais, mosaicos e esculturas em pedra, cerâmica e madeira. Padres que conviveram com o artista em Paranavaí confidenciaram que possivelmente as obras retratam o sofrimento de Fehérkúti antes de chegar ao Brasil.
De acordo com o frei Tiago Correia, da Ordem do Carmo, o húngaro fez muitos trabalhos de temática religiosa, envolvendo passagens das sagradas escrituras, imagens de Jesus Cristo e da Virgem Maria. No entanto, há também projetos de mobiliários e muitas pinturas de paisagens e rostos de pessoas comuns. “Sim, Bálint era um artista realmente distinto e polivalente”, registrou Föerst na obra Erinnerungen eines Brasilienmissionars.
Somando-se as obras de grande expressão que podem ser vistas em Paranavaí, Graciosa e no Museu da Abadia de São Geraldo, no Jardim Colombo, em São Paulo, na capital paulista, Bálint deixou um legado de mais de 50 criações históricas e inovadoras. São trabalhos que foram catalogados pela Ordem dos Carmelitas. Em 1951, Fehérkúti participou e se destacou na 1ª Bienal Internacional de São Paulo. Em 1968, atraiu muita atenção no XXXIII Salão Paulista de Belas Artes.
Embora tenha passado quase despercebido pela população de Paranavaí, Bálint está entre os maiores nomes da arte húngara contemporânea. Em Budapeste, na Hungria, algumas de suas obras fazem parte dos acervos do Museu de Artes Aplicadas (Iparművészeti Múzeum) e Universidade Húngara de Belas Artes (Magyar Képzőművészeti Egyetem). O trabalho do artista também integra a Biblioteca Europeana, fundada pela União Europeia em 2008.
Fehérkúti foi considerado um inimigo da União Soviética
Bálint Fehérkúti nasceu na Hungria em 5 de novembro de 1923. Nos anos 1940, já atuava como artista plástico, designer de objetos e arquiteto. Com a iminente derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) invadiu a Hungria, aliada dos alemães, e assumiu o controle da capital Budapeste em 13 de fevereiro de 1945.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a União Soviética começou a perseguir e prender nazistas e simpatizantes até que surgiu um problema operacional. Para a manutenção de cada gulag (campo de concentração), os soviéticos precisavam de pelo menos dois mil prisioneiros. Então muitas vezes a cota não era atingida. Para alcançar a meta, o Exército Vermelho decidiu prender alemães étnicos não nazistas e húngaros nativos, de origem magyar.
“A serviço dos vencedores da Segunda Guerra Mundial, a imprensa mundial virou as costas para os fatos e concordou em divulgar apenas que o Exército Vermelho era formado por libertadores. Nos países ocupados pela União Soviética, quem ousasse dizer o contrário era punido”, garante o pesquisador e professor universitário húngaro Károly Szerencsés, doutor em história da Hungria no século XX pela Universidade Eötvös Loránd, de Budapeste.
Ao longo de anos pesquisando sobre o assunto, o historiador descobriu que a interferência econômica e a destruição patrimonial provocada pelos soviéticos custaram 40% das riquezas da Hungria. “Foi um longo período de pobreza, privação e terror. Temos uma estimativa de que entre 1945 e 1948 até 200 mil mulheres húngaras foram estupradas pelo Exército Vermelho”, revela o professor e escritor estadunidense Peter Kenez, autor do livro Hungary From The Nazis To The Soviets e doutor em história da Rússia e do Leste Europeu pela Universidade Harvard.
Em pouco tempo, a vida de Bálint Fehérkúti mudou. Ainda muito jovem, o artista foi considerado um inimigo da União Soviética. Perseguido e condenado com base em provas forjadas, o deportaram para um gulag na Sibéria por volta de 1946. “Cidadãos húngaros foram enviados a dois mil campos de prisioneiros. Do total, 64 ficavam na Sibéria. Muitos morreram antes de chegarem ao destino. O número de pessoas que jamais retornaram à Hungria ultrapassa 380 mil”, explica Szerencsés. Os gulags eram considerados colônias corretivas em que os prisioneiros eram escravizados 14 horas por dia em minas, derrubadas de árvores e projetos de construções de canais e ferrovias.
“Tinham de trabalhar sob constante ameaça de fome e execução. As árvores eram cortadas com serrotes ruins e o solo congelado era escavado com picaretas primitivas. Os homens que trabalhavam extraindo carvão ou cobre só podiam usar as mãos. Quem inalava o pó de minério com frequência, logo contraía doenças pulmonares dolorosas”, enfatiza o pesquisador e professor universitário estadunidense Roy Rosenzweig, doutor em história pela Universidade Harvard e autor do projeto Gulag: Many Days, Many Lives, considerado um dos mais ricos trabalhos de pesquisa sobre os campos de concentração da União Soviética.
Inúmeros historiadores defendem que é mais fácil uma pessoa ganhar na loteria hoje do que um prisioneiro escapar de um gulag siberiano. “Eram mal alimentados, espancados e executados por motivos diversos. A cada ano havia uma queda de 10% do total de prisioneiros. Estimamos que de 15 a 30 milhões de pessoas morreram nesses campos de concentração entre 1918 e 1956”, declara Rosenzweig.
Provavelmente, Fehérkúti vivenciou as piores experiências de sua vida em um gulag siberiano. A região tinha a fama de ter as prisões mais aterrorizantes da União Soviética. Era preciso suportar um inverno com duração de nove meses e temperatura média de 50 graus Celsius negativos, chegando a ultrapassar 60 entre os meses de dezembro e janeiro. “Os presos viajavam até lá de trem, mas havia uma época do ano em que o frio era tão intenso que os serviços de transporte eram interrompidos”, frisa Roy Rosenzweig.
Artista fugiu de um gulag na Sibéria e veio para o Brasil
Segundo o pesquisador Károly Szerencsés, aos olhos das autoridades soviéticas, a vida dos prisioneiros não tinha valor algum. “A substituição era rápida porque o sistema podia encontrar mais pessoas para reposição nos campos de trabalho”, comenta. Entre 1949 e 1950, ciente de que não continuaria vivo por muito tempo, Bálint Fehérkúti preparou um plano de fuga e decidiu se arriscar pela primeira vez, mesmo sabendo que caso fosse capturado a pena seria aumentada em pelo menos dez anos.
Supostamente, por sorte ou artifício do destino, conseguiu fugir carregando apenas uma corda. A usou para se amarrar embaixo do trem que o levou até a Sibéria como prisioneiro. Sem poder retornar para casa, vagou pela Europa e se distanciou de países ocupados pelos soviéticos até chegar a Portugal. “De lá, embarcou em um navio com destino ao Brasil. Em São Paulo, Bálint foi acolhido pela comunidade húngara”, relata frei Filomeno dos Santos.
Na capital paulista, Fehérkúti recebeu ajuda e voltou a trabalhar como artista, arquiteto e designer de objetos. Mais tarde, fez amizade com o arquiteto Eugênio Szilágyi e o engenheiro Karl Kögl, imigrantes que deixaram a Hungria no final da Segunda Guerra Mundial, fugindo das perseguições, e vieram para o Brasil.
Em 1960, a convite da Ordem dos Carmelitas, Szilágyi e Kögl aceitaram o desafio de construir em Paranavaí a Igreja São Sebastião. “A pedra fundamental foi colocada no mês de outubro. Demorou cinco anos até que pudéssemos mudar para a nova casa de Deus, projetada de forma ampla e útil”, narra o frei alemão Joaquim Knoblauch no livro “Os 25 Anos dos Carmelitas da Província Germaniae Superioris no Brasil”, escrito em 1976.
Os húngaros projetaram e construíram também o convento. Um ano após a inauguração, padres alemães da Ordem dos Carmelitas de Paranavaí conheceram o trabalho de Bálint Fehérkúti e pediram a Eugênio Szilágyi e Karl Kögl que o trouxessem a Paranavaí. O artista foi além das expectativas, tanto que criou obras para a paróquia local ao longo de cinco anos. Alberto Föerst, que conviveu com Fehérkúti por meses, registrou muitos elogios ao húngaro no livro Erinnerungen eines Brasilienmissionars.
O advogado e escritor paranavaiense Paulo Campos ainda se recorda das poucas vezes em que escalou um muro nas imediações da Igreja São Sebastião para observar Fehérkúti. “Eu era menino e muito curioso. Para mim, aquele artista foi uma figura enigmática e intrigante, ainda mais porque não sabíamos quase nada sobre ele”, confidencia Campos.
Introspectivo e praticamente ostracista, o húngaro passava a maior parte do tempo trabalhando. Raramente era visto fora da Igreja São Sebastião ou do convento. Föerst escreveu que a única fraqueza de Bálint Fehérkúti era o alcoolismo. Bebia para tentar esquecer os traumas da perseguição na Hungria e da vida desumana em um gulag. “Após o fim da Guerra [Segunda Guerra Mundial], ele teve de suportar muitas dificuldades. Isto o marcou a longo prazo”, pondera frei Alberto na obra Erinnerungen eines Brasilienmissionars.
Com o tempo, a dependência alcoólica se tornou o maior obstáculo na vida de Fehérkúti. No dia 30 de março de 1977, em São Paulo, o artista que escapou de um campo de trabalho forçado na Sibéria faleceu com apenas 53 anos em decorrência de problemas de saúde causados pelo alcoolismo.
Saiba Mais
O arquiteto Eugênio Szilágyi e o engenheiro Karl Kögl foram os responsáveis pela construção da Embaixada da Hungria no Brasil. Situada em Brasília, foi inaugurada em 21 de agosto de 1972.
A ocupação soviética da Hungria chegou ao fim somente em junho de 1991.
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Anjo da Morte pode ter morado em Graciosa em 1954
Pioneiros de distrito de Paranavaí suspeitam que médico nazista viveu no Seminário Imaculada Conceição
Em 1954, um grupo de criminosos armou uma emboscada para assassinar o comerciante Ludovico Selhorst na colônia germânica Graciosa, distrito de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Para não serem identificados, os homens usaram máscaras e se esconderam em uma roça de milho nas imediações do comércio de Selhorst.
À noite, assim que o comerciante ficou sozinho, aguardaram alguns minutos, atiraram nele e fugiram. Quando Ludovico caiu, quem estava próximo do local estranhou o barulho e correu até lá para saber o que aconteceu. “Ele foi atingido perto do braço e não teve tempo nem de ver de onde a bala saiu”, relata a pioneira Francisca Bruning Schiroff que à época tinha 19 anos. Os irmãos da vítima, inclusive Jacob Selhorst que era o delegado do distrito, foram os primeiros a socorrer Ludovico, assim como João Bruning, pai de Francisca, que pediu para alguém chamar um médico hospedado no Seminário Imaculada Conceição.
“Ficamos sabendo desse doutor. Só que ninguém sabia quem era”, conta a pioneira. Descrito como alto, forte e aparentando ter mais de 40 anos, o médico pouco comunicativo estancou o sangramento, aplicou um antibiótico injetável e o encaminhou para o Hospital Professor João Cândido Ferreira, conhecido como Hospital do Estado, em Paranavaí. Para transportá-lo, como não havia ambulância naquele tempo, o colocaram sobre um colchão em cima de um caminhão. A princípio, Ludovico reagiu bem, mas não resistiu e faleceu na manhã seguinte.
A suspeita é de que os envolvidos no assassinato trabalhavam explodindo pedreiras com dinamite. “Achamos que o crime foi cometido por homens contratados para retirarem pedras de um rio perto de Graciosa. Eles estavam atuando na construção do seminário e se desentenderam na hora do pagamento. Me parece que queriam receber mais, então é provável que tenha sido um ato de vingança”, declara Francisca.
A pioneira se recorda do dia em que o frei Bonaventura Einberger falou sobre a chegada de um médico alemão para ajudar os mais necessitados. “Explicou apenas que o médico, assim como ele, também participou da guerra. Como a gente era bem jovem, ninguém tinha coragem de perguntar demais. Além disso, o ‘frei Bona’ não gostava de comentar sobre a Alemanha do período nazista”, relata. Apesar do conhecimento básico de português, o médico não enfrentou nenhum problema no distrito, até porque nos anos 1950 muitos moradores de Graciosa se comunicavam mais em alemão do que em português.
“Ele se vestia com simplicidade, acho que até para não chamar a atenção. Só que era fácil perceber que não era um médico comum”, avalia Francisca que certo dia foi até o seminário acompanhada da mãe para se consultar com o alemão de quem ninguém sabia o nome.
O médico demonstrava muita experiência profissional, tanto que soube lidar com todos os problemas de saúde dos pacientes. “As consultas com ele eram rápidas e quem não sabia alemão ia acompanhado de um intérprete. Me recordo que a primeira pergunta dele para a minha mãe foi: ‘Como está se sentindo?’”, cita a pioneira.
Polido, parcimonioso e reservado, o médico atendeu praticamente todas as famílias que viviam em Graciosa em 1954. Ainda assim, um fato curioso chamou a atenção dos moradores. O misterioso alemão não registrava prescrições médicas em papel nem pedia que alguém o fizesse para que ele apenas assinasse. “Era tudo falado, de boca mesmo”, garante Francisca Bruning Schiroff.
No distrito, o médico auxiliava o frei Bonaventura na distribuição gratuita dos medicamentos enviados da Alemanha pela Caritas Internacional, entidade de promoção e atuação social que trabalha na defesa dos direitos humanos, da segurança alimentar e do desenvolvimento sustentável solidário. “Eles também levavam remédios para o frei alemão Ulrico Goevert em Paranavaí. Era uma assistência muito boa. Realmente fazia a diferença”, pondera a pioneira.
Após ajudar muita gente em situação de carência social, um dia o homem partiu. A notícia foi lamentada pelos moradores de Graciosa. “Ele ficou mais ou menos um ano aqui. Ninguém sabe exatamente quando chegou nem quando foi embora”, confidencia Francisca. No distrito, o médico morou em um pequeno quarto no Seminário Imaculada Conceição. Poucas vezes foi visto em outros locais.
Alguns meses depois, Lidia Selhorst, esposa de Ludovico Selhorst, e também falecida, foi surpreendida ouvindo rádio, quando o locutor noticiou que estavam procurando o médico nazista Josef Mengele, conhecido como Todesengel, Anjo da Morte. A descrição era a mesma do médico que morou em Graciosa. “Falaram que o Mengele tinha inclusive uma cicatriz perto do pescoço. Quando ele se abaixou para prestar atendimento ao Ludovico, a Lidia viu essa cicatriz”, enfatiza Francisca Schiroff.
Como o frei Bonaventura Einberger foi enfermeiro da Wehrmacht, Forças Armadas da Alemanha nazista, até o final da Segunda Guerra Mundial, pode ser que eles tenham se conhecido anos antes. “Não dá pra afirmar até que ponto o ‘frei Bona’ o conhecia, mas a partida do médico foi suspeita. Acho que o frei ficou com medo de alguma coisa e recomendou que o homem partisse para outro lugar”, supõe a pioneira.
“Ele preferia crianças, gêmeos e anões”
Nascido em 11 de março de 1911 em Günzburg, na Alemanha, Josef Mengele se tornou um dos personagens mais famigerados da Segunda Guerra Mundial. Discípulo do geneticista Otman von Verschuer, com quem trabalhou em Frankfurt, Mengele tinha um doutorado em antropologia e outro em medicina.
Em 1937, ingressou no Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP) e se voluntariou para trabalhar na SS Medical Corps como pesquisador de genética no reassentamento da Província de Posen, na Polônia. O papel de Mengele consistia em preservar a pureza racial dos membros da Schutzstaffel (SS). Sendo assim, casamentos só eram aprovados após análises invasivas e estudos sobre a árvore genealógica da noiva.
Em 1942, enviaram Josef Mengele para atuar na Frente Leste como cirurgião da 5ª Divisão Panzer. Ferido em combate, teve de ser transferido para o Oeste. Na Alemanha, foi promovido a capitão e se juntou mais uma vez ao geneticista von Verschuer no Instituto Kaiser Wilhelm, onde se concentravam os maiores estudos de antropologia, hereditariedade e eugenia da Alemanha, temas com os quais Mengele se identificava muito.
No instituto, o médico seguiu uma hermética linha de pesquisa baseada na qualificação racial e limpeza étnica. O seu trabalho foi determinante na criação do Aktion T4, programa de eutanásia e esterilização voltado para a identificação de pessoas consideradas “inaptas a se reproduzir ou viver”.
Meses mais tarde, transferiram Mengele para a rede de campos de concentração de Auschiwtz-Birkenau, na Polônia. Com o apoio incondicional do governo alemão, realizou experiências com pessoas que ele mesmo escolhia e qualificava como fracas ou inúteis. Documentos do The National WWII Museum, de Nova Orleans, nos Estados Unidos, responsabilizam Josef Mengele pelo envio de 400 mil pessoas para as câmaras de gás dos campos de concentração. “Ele preferia crianças, gêmeos e anões, pessoas com quem ele fazia experiências sem qualquer tipo de remorso”, comenta o pesquisador e historiador estadunidense Tom Gibbs.
Von Verschuer e outros cientistas receberam de Mengele muitos cadáveres, órgãos, esqueletos e amostras de sangue de crianças judias e ciganas. “Ele gostava de ‘cortejar’ suas vítimas, tanto que oferecia melhores condições de moradia e alimentação. Também tinha o hábito de presentear crianças com leite e doces”, relata Gibbs.
Em janeiro de 1945, após a evacuação de Auschwitz-Birkenau, Mengele percorreu alguns campos menores até ser capturado. Ficou preso na Alemanha até junho do mesmo ano, quando conseguiu fugir para a Argentina com um nome falso. Mais tarde, partiu para o Paraguai e depois se mudou para o Brasil. Supostamente, Mengele morreu afogado em 7 de fevereiro de 1979 em Bertioga, no litoral paulista. No entanto, até hoje há pesquisadores que refutam o motivo e a data da morte.
Enterrado no Cemitério do Rosário, em Embu das Artes, na grande São Paulo, Josef Mengele teve os ossos exumados em 1985, quando uma equipe de especialistas do Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo e da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (USP) confirmou a sua identidade. Em 1992, foi feita uma ratificação por meio de análise em DNA.
Saiba Mais
Há inúmeros relatos de moradores de Graciosa e de Paranavaí que viram o médico caminhando sozinho pelo Bosque de Graciosa em 1954.
O que também despertou a suspeita dos moradores de Graciosa é que o misterioso alemão raramente circulava pela área central do distrito.
A 137 quilômetros de Paranavaí, pioneiros de Mamborê, no Centro Ocidental Paranaense, afirmam que Josef Mengele, usando o nome de Josef Kanat, trabalhou como médico no então distrito de Campo Mourão em 1956.
No mundo todo, o médico nazista inspirou livros, filmes, documentários, músicas e programas especiais para a TV. No Brasil, a obra mais conhecida é o filme “Meninos do Brasil”, de 1978. Em 2013, a cineasta argentina Lucía Puenzo lançou o filme “Wakolda”, também inspirado na vida do médico, principalmente em sua passagem pelo Sul da Argentina.
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Um filme sobre o fim da liberdade romani
A história de uma família roma que foi perseguida durante a Segunda Guerra Mundial
Lançado em 2009, Korkoro, palavra romani que significa sozinho, é um filme do cineasta franco-argelino Tony Gatlif que retrata a realidade de uma família roma que perdeu a liberdade enquanto viajava pelo interior da França em 1943, quando o país estava sob o domínio Vichy.
Logo no início, a música, a paisagem bucólica e o lirismo introduzem o espectador a uma cena em que as notas de um piano são representadas pela movimentação de arames farpados em paralelo. A princípio, a única perspectiva real que se tem é de um primeiro plano enuviado pelas incertezas de não sabermos o que há antes e depois daquela divisa. É um prólogo referencial do estilo de vida nômade.
Tony Gatlif apresenta uma família romani composta por pessoas de personalidades bem distintas, mas que carregam na essência algumas afinidades que envolvem companheirismo, abnegação, hospitalidade, amor à música, fé e desapego material. Não é uma obra que se limita a combater estereótipos ou simplesmente construir uma imagem bonita sobre a cultura cigana. É bem mais do que isso. Em alguns casos, Gatlif ironiza os clichês justamente para reforçar uma ideia ou parodiar um pensamento comum obtuso.
Em uma das viagens, o cigano Taloche (James Thiérrée) percebe que estão sendo seguidos por um garoto – Claude (Mathias Laliberté). Sem família, o menino se junta a eles. Durante o percurso, colocam saquinhos de estopa nas patas dos cavalos para não deixarem rastros. Quando chegam a um vilarejo, onde montam acampamento, são informados de que o nomadismo está proibido em todo o território francês, sob pena de prisão.
Então uma professora, Mademoiselle Lundi (Marie-Josée Croze) – partisan, integrante da resistência francesa, sugere que eles parem de viajar até o fim da guerra. Por ora, continuam no local, embora não tenham planos de fixar residência. Na escolinha, um dos estudantes comenta com Claude, a quem Taloche chama ironicamente de Chororo (garoto pobre), que os romani roubam crianças. Admirador dos ciganos, o ignora.
O filme é pautado por muita música do início ao fim, corroborando a ideia de que não há vida sem música no mundo roma. Bem comunicativos, os ciganos vão até o centro comercial do vilarejo vender produtos e oferecer serviços. Na tentativa de ganhar algum dinheiro consertando panelas, Taloche diz em tom bem humorado: “Todos têm utensílios com buracos em casa, o que acontece é que às vezes os buracos estão escondidos.”
Em uma cena, o médico veterinário e prefeito do vilarejo, Théodore Rosier (Marc Lavoine), socorre um dos cavalos do acampamento na ausência dos ciganos. Por azar, Rosier é mordido pelo animal e cai com o braço ensanguentado. Pouco tempo depois, chegam para socorrê-lo. Enquanto uns cuidam de seu ferimento, outros prestam atendimento ao equino. Movidos pela fé, tradição e superstição, tratam do braço do veterinário com uma pasta de estrume. Ao mesmo tempo, oram pelo cavalo caído que em um rompante se levanta como se jamais tivesse adoecido.
Mais tarde, Rosier, o prefeito que deu abrigo a petit Claude, evitando que os ciganos tivessem problemas por terem entre os seus um jovem de origem desconhecida, pede ao garoto para perguntar qual foi o remédio usado em seu tratamento. “Foi estrume de cavalo. Mas diga a ele que até uma vassoura pode lançar fogo se for o desejo de Deus”, enfatiza um dos roma.
É profunda a relação dos ciganos com outras formas de vida não humanas. Em outra situação, a família toca uma canção festiva para elevar o ânimo de dezenas de galinhas. No filme, a música ajuda a superar muitos problemas – um recurso que manifesta uma liberdade frugal.
Em contraste ao paisagismo rústico, Gatlif parte de uma condição coletiva para a individual quando aborda o lirismo de Taloche, personagem cuja inocência, aparente dislexia e hiperatividade, parece experimentar um incessante conflito existencial. Há uma exaltação da hipersensibilidade do cigano que destoa da idade e, por vezes, remete ao humor pastelão dos tempos do cinema mudo.
Mas não há nada mais bem representado em Korkoro do que a necessidade de liberdade, até nas cenas mais simples. Outro momento inesquecível surge quando Taloche vai até a casa de Rosier. No banheiro, ele se inebria com a água que sai da torneira. Enche a pia e a faz deslizar por todo o cômodo, como se a conduzisse à emancipação. Quando a água desce em abundância, Taloche se lança escada abaixo, sem o menor temor de se ferir.
O filme assume um caráter documental em algumas cenas-chave. Traídos pelo amigo Pierre Pentecôte (Carlo Brandt), um simpatizante dos nazistas, a família é levada para um campo de concentração, onde há centenas de romani. Lá, Darko (Arben Bajraktaraj) pergunta a Pentecôte por que estavam trancando eles como cachorros. O traidor então responde: “Para livrar a França de seus vermes.”
Ao saberem o que houve, Rosier e Mademoiselle Lundi decidem intervir. O prefeito transfere a escritura de uma propriedade familiar para o patriarca roma. Em seguida, os dois vão até o campo de concentração e apresentam o documento, obrigando que a família seja libertada. Quando retornam ao vilarejo, os ciganos se surpreendem com a nova morada. Alguns concordam em viver provisoriamente no local, já outros preferem partir. No fim, prevalece a decisão do patriarca que considera mais prudente continuar no povoado.
Taloche é o último a entrar na casa. Para ele, a ideia de viver entre paredes é uma forma de privação, embora não manifeste isso com palavras. Dias depois, Rosier os visita e encontra a propriedade abandonada. Novamente na estrada, rumam para a Bélgica, acompanhados mais uma vez por Claude. Não chegam tão longe. São surpreendidos pelos homens do Governo Vichy, a serviço dos nazistas.
Enquanto são obrigados a formarem uma fila e apresentarem registros de identificação, Taloche se esconde. O arrastam, mas ele estapeia o líder da operação – uma versão de Adolf Hitler, em uma cena caricata digna de Charlie Chaplin. Foge em direção à floresta e sobe em uma árvore enorme. É alvejado a tiros, até que numa queda poética e acrobática cai sobre um córrego. Deitado, mas ainda vivo, é vítima de um tiro certeiro na testa.
A morte de Taloche simboliza o fim da liberdade romani e a iminência do Porajmos, o genocídio cigano perpetrado na Segunda Guerra Mundial. O desespero da família é geral, mas, apesar dos prantos, nada pode ser feito diante de tantos homens armados. O corpo é abandonado, assim como os animais e os pertences. Dali, não levam nada. Um longo tempo passa em questão de segundos. Aquela família não retorna mais. Em uma cena estática, tudo se esvai: o som, o fogo, a fumaça, a luz e a vida.
É muito interessante o cuidado que Tony Gatlif teve aos detalhes das expressões e particularidades de alguns personagens, embora talvez fosse mais impactante tornar outros romani da obra igualmente menos anônimos. De qualquer modo, fica clara a intenção de não deixar o individual, por mais peculiar que seja, se sobressair ao coletivo. O cineasta não tem intenção de se aprofundar na guerra. O foco é outro. É um filme sobre pessoas tentando exercer o direito de existir, não apenas habitar o mundo. Há uma bela construção do espaço em profundidade.
Korkoro se divide em dois ritmos. Onde existe alegria, há movimento e velocidade. Onde há tristeza, prevalece a lentidão de retratos quase estáticos das agruras de um tempo nefasto. Outro diferencial é a trilha sonora sempre pontual, um belíssimo trabalho capitaneado por Gatlif e a compositora Delphine Mantoulet.
Tony Gatlif é um dos poucos cineastas que se dedica a produzir obras que evidenciam ou flertam com a cultura romani. Como autor de filmes de longa-metragem, o primeiro grande destaque surgiu com Latcho Drom, de 1993; seguido por Mondo (1995), Gadjo Dillo (1997), Je Suis Né D’une Cigogne (1998), Vengo (2000), Swing (2001), Exils (2004), Transylvania (2006), Korkoro (2009) e Indignados (2012). Vale a pena se aprofundar um pouco mais na filmografia desse autor de origem roma.
Saiba Mais
Não há dados precisos, mas acredita-se que de 250 a 500 mil ciganos foram assassinados pelos nazistas até o fim da Segunda Guerra Mundial.
Curiosidades
Korkoro é baseado em uma história real. A professora Lundi é inspirada na combatente da resistência Yvette Lundi.
James Thiérrée que interpreta Taloche é filho de Victoria Chaplin e neto de Charlie Chaplin.