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Laranja Mecânica, o filho preterido de Anthony Burgess
A obra perdeu o sentido quando uma editora americana suprimiu o último capítulo do livro
Embora o livro A Clockwork Orange (Laranja Mecânica), do escritor britânico Anthony Burgess, não figure entre os seus melhores romances, a obra distópica de 1962 foi responsável por torná-lo famoso no mundo todo, principalmente após o lançamento do controverso filme de Stanley Kubrick em 1971.
Se por um lado, alguns críticos qualificaram o livro como uma profecia do colapso social hipermoderno, outros foram além, defendendo que a obra em si já o incentivava. A verdade é que à época pouca gente entendeu o sincretismo de sadismo, cultura teddy boy e uma apocalíptica filosofia urbana e social reforçada por uma mixórdia do idioma russo e do jive talk, uma linguagem popular que surgiu entre músicos de jazz do Harlem, em Nova York.
Ainda assim, mesmo com tanta repercussão e sucesso a partir da década de 1970, Burgess fazia questão de dizer em cada entrevista que, de todos os seus livros, “Laranja Mecânica” era o que menos o agradava, e não por causa da estrutura, linguagem e conteúdo, mas sim porque o cinema e as editoras dos Estados Unidos o descaracterizaram.
A obra, segundo Burgess, perdeu o sentido a partir do momento em que uma editora americana suprimiu o último capítulo do livro, um fato que se repete até a atualidade em algumas edições, já que a primeira edição estadunidense foi uma das mais reproduzidas. Quando o escritor britânico teve a oportunidade de lançar uma nova versão restaurada em 1986, ele fez questão de escrever uma introdução explicando como o seu trabalho foi arruinado.
No original, o jovem Alex, protagonista cruel e vicioso, evolui no capítulo 21 porque Burgess sempre acreditou que a energia humana é melhor gasta na criação do que na destruição. Porém as editoras dos Estados Unidos foram na contramão. E com elas o pessimismo do cineasta Stanley Kubrick que fez o escritor britânico odiar a adaptação do seu livro, com um final que leva o cinismo às raias do surrealismo.
A partir da obra de Burgess, não é difícil entender a escolha do título Laranja Mecânica. Ele faz uma analogia do ser humano com uma laranja, um belo organismo recheado de suco e que pode ser espremido por Deus, pelo diabo ou até por si mesmo quando substitui os dois. Em síntese, um ser humano que rendido às próprias armadilhas do maniqueísmo se torna incapaz de entender a primazia do livre-arbítrio.
Burgess ficou tão chateado com a desvirtuação do livro que chegou a admitir que desde então só escrevia embriagado. O autor frequentemente encontrava pessoas comentando que o seu livro era uma ode à violência e à misantropia, quando na realidade a sua intenção era alertar sobre a nefasta mecanização da humanidade.
Saiba Mais
Pouco conhecido no Brasil, Earthly Powers (Poderes Terrenos), de 1980, é considerado o melhor livro de Anthony Burgess.
Referência
http://www.todayinliterature.com
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Fargo, poesia audiovisual do absurdo
Uma série de TV sangrenta com requinte satírico de tragédia grega
Para quem gosta de séries de anti-heróis, e que misturam drama, suspense e humor mórbido, vale a pena conhecer a série Fargo, da FX, que estreou em 2014. Melhor ainda para quem já assistiu ao filme homônimo dos Irmãos Coen, lançado nos Estados Unidos em 1996. Vale a pena investir algumas horas na série e no filme, já que como a storyline é diferente, assim como atores e personagens, um se soma ao outro nas suas mais diversas perspectivas.
Intrigante e envolvente, a primeira temporada da série tem como ponto alto um elenco composto por atores de séries como Sherlock, Breaking Bad e Dexter, além do tarimbado Billy Bob Thornton no papel de um mercenário enigmático, metódico, idealista e desdenhoso. Quem assiste ao primeiro episódio já fica na ânsia de acompanhar os demais.
Na segunda temporada, de 2015, Fargo recomeçou com um novo elenco e sem qualquer associação com o desenvolvimento da primeira temporada. Após um acidente fatal provocado pela esposa Peggy Blumquist (Kirsten Dunst), o incauto assistente de açougueiro Ed Blumquist (Jesse Plemons), o Todd de Breaking Bad, se vê às voltas com a máfia. Sem se dar conta das próprias ações, causa uma guerra entre mafiosos. A situação só não se torna pior do que já é porque tem como atenuante o policial Lou Solverson (Patrick Wilson) e o xerife Hank Larsson (Ted Danson).
Embora as histórias das duas temporadas sejam completamente distintas, alguns padrões são mantidos. Por exemplo, sempre há a moral, o imoral e o amoral, além de personagens que banalizam a vida e se colocam acima da lei para alcançar qualquer objetivo. Outras similaridades entre os personagens incluem prevaricação, comportamento sociopata e negação dos fatos e da realidade, além de anseios eversivos e autodestrutivos.
E o mais curioso é que tudo isso se mistura também à ingenuidade, irreflexão e descomedimento. Excessos de confiança e de profissionalismo também são apresentados como nocivos. São características que cegam os personagens para as falhas e vulnerabilidades percebidas apenas por quem não compõe aquele cenário ou contexto belicoso.
Um exemplo é a cena em que Hanzee Dent (Zahn McClarnon) planeja executar o casal Blumquist, crente de que, por serem pessoas comuns, eles não mostrariam nenhum tipo de resistência. É cômico reconhecer que a experiência também pode levar à tolice e à subestimação, e o que deveria ser uma vantagem se torna uma desvantagem.
Por pior que seja, a ideia da morte em Fargo não chega ao espectador de forma pesarosa, a não ser a de Betsy Solverson (Cristin Miloti), a esposa do oficial Solverson que sofre de câncer. No mais, o passamento parece inevitável e até incentivado como um recurso maior. Ele reforça os desdobramentos meândricos e tresloucados de uma obra cruenta com requinte satírico de tragédia grega.
A desgraça é apresentada em Fargo como uma poesia do absurdo, do tout est possible, mergulhada numa estética carmesim. E nela quase tudo de significante ou insignificante soa mais valoroso que a própria vida – quase relegada a recurso de figuração em meio a um caos de degenerescências.
Uma comédia sobre o caos e a decadência
Lançado em 1995, o filme Sábado, do cineasta Ugo Giorgetti, mostra uma equipe de publicidade ocupando em um sábado o saguão do Edifício das Américas, em São Paulo, para a realização de um comercial. Logo no início, o elevador do prédio para de funcionar, surgindo uma série de incidentes que se correlacionam. Os fatos tornam-se alegoria do caos paulistano. Por meio das confusões vivenciadas pelos personagens no interior do prédio, o diretor explora o antagonismo.
Giorgetti também destaca o preconceito e a barreira cultural entre pessoas que compõem a sociedade visível, de significativo poder aquisitivo – personificada pelos funcionários empenhados na realização do comercial, e a invisível – representada pelos personagens marginalizados, naquele contexto, moradores de um edifício que um dia foi símbolo de luxo e mais tarde tornou-se ícone da decadência.
O filme conta com um elenco formado por Otávio Augusto, Maria Padilha, Tom Zé, Giulia Gam, André Abujamra, Jô Soares, Renato Consorte, MAriana Lima, Gianni Ratto, Wandi Doratiotto, Sérgio Viotti e Cláudio Mamberti. Ao longo de 40 anos de carreira, Ugo Giorgetti, que costuma atuar como diretor e roteirista, já produziu 12 filmes. A primeira obra do cineasta foi Bairro dos Campos Elíseos, lançada em 1973. Já Cara ou Coroa, de 2012, é o trabalho mais recente.
Os zumbis de Romero
Night of the Living Dead, o primeiro filme de horror como crítica social
Lançado em 1968, Night of the Living Dead (A Noite dos Mortos-Vivos) é um filme cult de horror do cineasta estadunidense George Romero que apresenta uma crítica social a partir das deficiências de caráter do ser humano em situações de risco.
Em Night of the Living Dead, os mortos voltam à vida por causa da radiação de um meteorito do planeta Vênus. Cientes de que os zumbis se alimentam de carne humana, os vivos fogem em busca de abrigo. A antropofagia no filme é tão direta quanto simbólica; representa a autodestruição do homem e a anulação do que cada um representa na individualidade.
Na obra, alguns sobreviventes se refugiam em um casebre localizado na área rural de Pittsburgh, na Pensilvânia. A partir do confinamento, Romero apresenta a vileza humana através de ações de egoísmo e autopreservação. Em vez de se unirem para tentarem se livrar dos zumbis, os personagens brigam entre si, ampliando o caos em um universo racional, onde o intelecto deveria ser dominante.
O mais curioso é que paralelo a isso, os mortos-vivos que estão fora da residência, mesmo privados de suas funções cerebrais, representando de forma peculiar a essência primitiva e livre do homem aquém dos princípios sociais, agem coletivamente, como uma infantaria. Em Night of the Living Dead, Romero também confronta o preconceito racial ao destinar o papel mais importante do filme a Ben (Duane Jones), um jovem negro que ao contrário dos brancos da história é o personagem mais lúcido, coerente e perspicaz. Há ainda uma cena que faz referência ao ativista Martin Luther King Jr.
Outro destaque é a previsão quase profética do cineasta ao mostrar a submissão do homem diante da tecnologia. Um grande exemplo é a cena em que os abrigados parecem reféns de um televisor, aparelho usado para preservar algum tipo de relação com o mundo exterior. Aí subsiste uma ironia, pois a TV já era encarada como um instrumento de reafirmação coletiva, condicionamento e uniformidade reflexiva.
Um dos precursores da zombie culture, Night of the Living Dead influenciou centenas de filmes, além de séries televisivas. O clássico está entre os melhores de todos os tempos nas mais importantes listas de grandes obras de horror. É considerado o expoente do splatter film, subgênero que tem como principal característica a violência gráfica que por meio de efeitos especiais ressalta a vulnerabilidade do corpo humano e a teatralização da mutilação.
Embora não se enquadre tanto como splatter film quanto Dawn of the Dead, lançado por Romero em 1978, Night of the Living Dead é um marco e serviu de base para os subgêneros exploitation e slasher. O primeiro diz respeito aos filmes de apelo visual e baixo orçamento. O segundo se refere as obras ao melhor estilo “serial killer à solta”, como os sucessos Halloween, de John Carpenter; Friday The 13th, de Sean S. Cunningham; e Nightmare on Elm Street, de Wes Craven.
Até hoje, Night of the Living Dead surpreende pelo custo de produção de U$ 114 mil, o que garantiu um lucro de U$ 30 milhões em todo o mundo. Em seu livro, Planks of Reason – Essays on the Horror Film, de 2004, o pesquisador estadunidense Barry Keith Grant, define o clássico de Romero como um divisor que transformou o cinema independente norte-americano e apresentou uma fórmula de sucesso aos muitos cineastas que enveredaram pelo horror nos anos 1970 e 1980.