David Arioch – Jornalismo Cultural

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A fome que chegou com a chuva

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População de Paranavaí passou fome durante longos períodos de chuva

16 dias de chuva castigaram a colônia (Foto: Reprodução)

Na década de 1940, quando chuvas torrenciais atingiam Paranavaí, no Noroeste do Paraná, por longos períodos, era difícil e até perigoso deixar o povoado. Nessas circunstâncias, a população era obrigada a lidar com a fome enquanto esperava o fim da chuva.

Uma das situações mais críticas vividas pelos pioneiros foi registrada em 1945, quando 16 dias de chuva castigaram a colônia. Ninguém imaginava que choveria tanto numa época em que não se tinha o hábito de manter uma despensa, nem mesmo para casos emergenciais.

Antes da chuva chegar ao fim, ninguém mais no povoado tinha o que comer em casa. E para piorar, era impossível deixar Paranavaí e buscar alimentos nas cidades ao Sul do estado. Além de não haver meios de transporte que aguentassem longas viagens, trafegar com veículos pequenos pelas íngremes estradas de chão era algo impensável. Além disso, o fato das vias serem estreitas e ladeadas pela mata só aumentava os riscos.

“Já era 1h da madrugada quando ouvimos o ronco de um caminhão. Foi uma surpresa pra todo mundo. Ninguém mais vinha pra cá fazia 16 dias, tanto que a gente estava sem nada. A comida já tinha até acabado”, lembrou o pioneiro paulista José Ferreira de Araújo, conhecido como Palhacinho, em entrevista à Prefeitura de Paranavaí décadas atrás.

O som do caminhão na Rua Getúlio Vargas, no cruzamento com a Rua Marechal Cândido Rondon, fez todo mundo levantar da cama, acender os lampiões e correr para o centro da colônia. Quando chegaram lá e viram os faróis acesos, o empreiteiro Zeca Machado desceu do veículo e mostrou para a população toda a comida trazida de Curitiba. Além de mantimentos, Machado trouxe muitas verduras e legumes para abastecer Paranavaí.

“Todo mundo comprou tudo. Naquele tempo, era normal um dever para o outro porque a gente tinha o costume de emprestar açúcar, café e dali em diante”, destacou José Ferreira. Zeca Machado era o empreiteiro da Colônia Paranavaí e conhecia todas as estradas da região, até porque  muitas foram abertas por ele.

Machado viajava esporadicamente a Curitiba com um caminhão do Governo do Paraná para buscar alimentos, materiais de construção e outros produtos. “Mais tarde, o Zeca Machado abriu um armazém e começou a fornecer tudo que a população precisava”, destacou Palhacinho.

O pioneiro paulista Salatiel Loureiro afirmou que o empreiteiro foi o primeiro comerciante da colônia. “O Zeca começou com tudo, depois veio o Patriota, o Lindolfo e o Carlos Faber”, revelou.

Palhacinho dava carne de anta para a freguesia

Araújo: “Na minha pensão, cheguei a alimentar os clientes com carne de anta” (Foto: Reprodução)

Quem também ajudou a população em um longo período de chuvas foi o pioneiro Rodrigo Ayres que certa vez viajou até Marialva, no Norte Central Paranaense, para buscar uma carroça de mantimentos.

“A viagem durou 15 dias. Demos o dinheiro e ele trouxe tudo que pedimos. Pouco tempo depois, o Patriota [Leodegário Gomes Patriota] abriu um armazém e logo tivemos fartura. Nunca mais faltou comida”, relatou o pioneiro paulista José Ferreira de Araújo, conhecido como Palhacinho.

Ainda nos anos 1940, Araújo tinha uma pensão em Paranavaí e alimentava os clientes com carne de anta. “Eu mesmo que caçava lá na Água da Floresta e Tucano. Cozinhei muitas paneladas para dar ao pessoal. Depois melhorou e pude alimentar eles com carne seca e batata. Todo mundo comia contente. Ninguém saía daqui com fome”, declarou.

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Memórias de um Paranagoano

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Dedé é um desses pioneiros esquecidos pela história oficial, mas que contribuiu para a construção de um patrimônio

Dedé ajudou a construir o Terminal Rodoviário de Paranavaí (Foto: Leonardo Brito)

Dedé ajudou a construir o Terminal Rodoviário de Paranavaí (Foto: Leonardo Brito)

O autônomo José Jovino da Silva, conhecido como Dedé, de origem alagoana, abandonou o Nordeste e se radicou em Paranavaí em 1957. Aqui desempenhou muitas atividades, inclusive a de pedreiro na construção do Terminal Rodoviária Urbano, criado há mais de cinco décadas.

Dedé mudou-se para Paranavaí com o mesmo sonho de todos os migrantes e imigrantes: a oportunidade de uma vida melhor. Infelizmente, o objetivo pelo qual tanto lutou não foi alcançado, ou melhor, não da forma idealizada.

Mesmo assim, José Jovino admite, com calma e parcimônia, que nunca teve saudades da sua terra natal. “Saí de Alagoas com quatro anos, e do nordeste na adolescência, então me considero paranaense. Além disso, aqui se vive de forma mais digna, mais humana”, declara o autônomo que viveu na prática as agruras da seca nordestina retratada na obra “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos.

O sabor e o aroma da farofa de mandioca com jabá, Dedé ainda preserva na memória, como um elemento cultural catártico que por um instante anula as experiências trazidas pela fome e miséria durante a infância.  “Lembro também da sede que sentia depois de comer”, diz o autônomo franzindo a testa e desviando o olhar. Tímido, José Jovino ri com as mãos tapando parte do rosto.

A iguaria tipicamente nordestina foi o principal alimento de José e mais 12 familiares durante sete dias de viagem, quando saiu da Bahia rumo a São Paulo. “Isso foi em 1955. Tinha 30 pessoas no caminhão pau-de-arara. Uma parte da carroceria estava ocupada por coco baiano e a outra parte por fumo arapiraca dos grossos. Viemos em cima de tudo isso. Embaixo tinha só uma lona”, afirma.

Durante a viagem mais longa de sua vida, deixando para trás amigos e familiares, Dedé teve a primeira experiência com uma fatalidade. Quando o caminhão estava chegando a Aparecida do Norte, em São Paulo, um senhor que sofria de distúrbios psicológicos saltou do caminhão, naquele momento, trafegando em alta velocidade. “Ele morreu na hora. Nem deu tempo de levar até um hospital. É uma cena que nunca saiu da minha memória”, informa em tom reflexivo.

Caminhão pau-de-arara trouxe José Jovino a Paranavaí (Foto: Roberto Faria)

Caminhão pau-de-arara trouxe José Jovino a Paranavaí (Foto: Roberto Faria)

Como se revivesse o passado, os olhos de José Jovino cintilam ao relembrar o primeiro contato com a malha viária. “Só conheci o asfalto em 1955. Também me emocionei no dia 7 de setembro daquele ano, quando vimos um desfile na Avenida Paulista, em São Paulo. Fiquei surpreso com um movimento tão bonito. Como fomos criados no mato, até babei de emoção”, frisa Dedé sorrindo e corando as maçãs do rosto.

De São Paulo, José Jovino veio ao Paraná. À época, com apenas 17 anos. Já estava acostumado ao trabalho braçal desempenhado desde os 14. Quando chegou a Paranavaí, Dedé conseguiu um serviço de colono, se responsabilizando pela produção de sete mil pés de café.

“Não deu certo porque houve uma crise financeira muito feia. Mas ainda bem que iam começar a construir o Terminal Rodoviário Urbano e me deram trabalho. Fiquei lá até o fim da obra. Lembro que tinha mais de 40 pessoas trabalhando”, reitera.

O autônomo José Jovino da Silva, 70, com fala mansa, disperso em um passado de satisfações e desventuras, diz que não sabe precisar quantas atividades desempenhou. “Já fui de tudo um pouco, mas nada me tomou mais tempo que a lavoura”, conta Dedé estendendo os braços e mostrando as mãos calejadas pelo trabalho braçal.

“Me sinto como se não existisse”

Na atualidade, o maior objetivo do autônomo é conseguir todos os documentos necessários para se aposentar. Sem qualquer registro de identificação, Jovino sofre por estar com a saúde debilitada e, mesmo assim, ter de trabalhar para se sustentar.

“Perdi tudo há 40 anos. Nem me recordo mais como é ter uma carteira de identidade. Durante muito tempo tive pelo menos o registro de nascimento, mas a casa em que morava tinha fiação elétrica muito velha e pegou fogo. Fiquei sem nada. Agora estou correndo atrás de novos documentos”, lamenta lacrimejando.

O desconhecido pioneiro sonha com a aposentadoria, para então tornar-se barbeiro, atividade que segundo ele não exige tanto esforço físico. “Antes tenho de voltar a existir legalmente. Me sinto como se não existisse”, comenta.

Saiba Mais

José Jovino da Silva nasceu em 1940.