David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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Perica

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Arte: Elaine Plesser

Quando eu tinha dez anos, meu pai me levou para a casa de seu amigo Perica, um senhor já idoso que há mais de 20 anos vivia sozinho no campo com sua biblioteca e seus tonéis. Cheiro de papel e cheiro de vinho, de um lado, do outro, por todos os lados. Perguntou se eu bebia. Respondi que não, que o álcool é nojento. Ele achou engraçado.

“Mas lê pelo menos?”, Sim, leio, respondi. “Então tudo bem! Não esqueça que a morte precoce acontece quando não alimentamos a vida, e sim nos alimentamos dela”, disse. Certo, comentei. Perica foi meu mentor nas férias de verão. Era um sujeito incomum. Bebia e lia, lia ou bebia, e lia e bebia. Mas nunca o vi bêbado. No último dia antes de voltar para casa, perguntei como era possível ele tomar tanto vinho e nunca ficar bêbado.

“Na realidade, eu não bebo.” Como? “Isso, não bebo.” Mas esse cheiro, esses tonéis, o copo na mão?, questionei. “Eu te induzi a acreditar nisso a partir da sua chegada, da nossa conversa, do primeiro dia. O cenário ajuda, mas o que eu trazia no copo nunca era vinho. Não cheguei a produzir vinho, meus pais sim. O que você acha disso?”

Acho que você está me enganando, comentei. “Não…isso seria desnecessário e imprudente.” Realmente havia um copo na mão de Perica, mas não com vinho, e os tonéis, de fato, traziam aroma de vinho, mas era simplesmente sinestesia. “A minha verdade, a sua verdade, às vezes não é fácil distinguir se a mente se liberta para a realidade ou para a criatividade ou constrói a sua própria grade”, disse Perica.

Written by David Arioch

October 2nd, 2018 at 1:37 am

“Você não é o Tora-Tora?”

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Hoje de manhã, enquanto eu estava aguardando a minha vez no banco, um cara se aproximou.

— E aí, rapaz — ele disse.

— E aí — respondi.

— Tudo bem?

— Sim e você?

— Também. Então, por que você não apareceu na Fazenda Santa Efigênia no sábado?

— Acho que está me confundindo, camarada.

— Você não é o Tora-Tora?

— Como?

— Tora-Tora!

— Não, cara. De modo algum. Foi um engano.

— Ah, me desculpe. É que vocês são parecidos. Na realidade, a barba. Não sei falar o nome dele, nome estranho, então demos esse apelido. Veio pra cá pra trabalhar como lenhador.

— Entendo.

— Então me desculpe.

— Sem problema.

— Mas, olhe, você tem cara de quem sabe cortar lenha. Se um dia quiser experimentar.

— Hum…é lenha de reflorestamento? Se não for, minha religião não permite.

— Qual é a sua religião?

— Sou vegano.

— Já ouvi falar disso. É tipo uma seita, né?

— Sim…

O cara riu; eu também. Nos despedimos.





 

Written by David Arioch

June 5th, 2018 at 12:41 am

Um encontro casual

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Ontem à tarde, caminhando até a seção de dietética do Guguy (mercado), uma senhora que não conheço começou a falar comigo.

— Que bom te encontrar aqui hoje.
— É? Mas por que?
— Porque eu olho pra você e você transmite uma coisa muito boa.
— Sério?
— Sim, verdade.
— Que bom! Muito obrigado. Fico realmente lisonjeado.
— Não precisa agradecer.

Eu sorri; a senhora sorriu. Caminhei para uma seção e ela para outra.

Written by David Arioch

June 3rd, 2018 at 1:58 pm

Você é um daqueles verdinhos?

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Acervo: Turkey Runner

Na fila do mercado, eu, uma camiseta verde do Type O Negative e uma boina. Uma senhorinha se aproximou e se posicionou atrás de mim aguardando a vez. Expliquei que ela não precisava ficar na fila porque pela idade ela tem preferência no caixa especial.

— Não, filho, eu gosto de ficar aqui. Tenho saúde e não tenho pressa.

— Que bom — respondi com o meu típico sorriso tímido.

— Filho, olhei pra você e pra sua cesta, diferente o que vi, admito. Você é um daqueles verdinhos?

— Como?

— Um daqueles verdinhos.

— Me desculpe, mas não sei, senhora. O que é um verdinho?

— Que não come carne, leite, ovo…

— É por aí. Acho que vou um pouquinho além inclusive.

— Olhe só, que honra! Um verdinho de verdade!

— É, acho que sim — comentei, entregue a um sorriso encalistrado.

— Olho esses carrinhos e cestas, só consigo pensar em uma coisa. Você sabia que antigamente não existia toda essa comilança de carne? Muita gente do meu tempo, criada em sítio, chegava a ficar até um ano sem comer carne. E vivia bem, realmente bem, com muita energia, lavourando.

— Isso é bom.

— Papai e mamãe deixaram a Polônia durante a guerra e eles viram tanto sangue e morte naquele lugar que quando chegaram ao Brasil falaram que iriam criar os filhos longe de qualquer tipo de morte. Dito e feito. Tenho 78 anos e não como carne desde os cinco anos quando chegamos aqui em 1944.

— Que história interessante. Se a senhora quiser me contar um dia em detalhes, posso transformar em alguma coisa.

— Quem sabe — ela respondeu sorrindo.

— Seria muito legal — comentei.

— Olhe, o conteúdo da minha cestinha é parecido com o da sua. Estamos apenas em um espectro diferente de gerações, pelo menos nesta vida — disse sem desvanecer o sorriso.

— Não duvido — comentei sorrindo.

— É, sempre enxergo um verdinho de longe.

— Por causa da minha camiseta? — questionei com um sorriso enviesado.

— Não — respondeu rindo.

— Hum…

— Meu pai dizia que os nossos melhores hábitos são sempre translúcidos diante dos nossos olhos e dos olhos dos outros quando existe boa vontade. Claro, desde que nós e os outros queiramos enxergar — explicou a senhora antes da despedida.

 





Me dá sua carteirinha de vegano!

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Arte: Reprodução

Saindo da academia, já cansado, pernas esmorecendo pela destruição marota do treino de segunda, atravessei a rua e tão logo desativei o alarme do carro, um cara sentado em uma mureta saltou e gritou:

— Porra, cara! Tô aqui na espreita faz hora. Você é vegano! Tá andando de carro por que?
— Porque preciso. Preciso estar em vários lugares diariamente e tenho pouco tempo livre. Por enquanto é o jeito.
— Precisa porra nenhuma! Isso não é vegano, caramba! Parece um refém do sistema com esse papinho pós-história.
— É mesmo?
— É, me dá essa merda dessa carteirinha aí!
— Que carteirinha?
— Sua carteirinha de vegano, ora!
— Não tenho carteirinha.
— Como não?
— Não tenho.
— Olhe, cara, dessa vez vou te liberar, mas só porque seus pneus são da Michelin.
— Obrigado, irmão. Não sei o que eu faria sem a minha carteirinha.
— Tá! Tá! Tá! Tá liberado! Vai vegano!
Fiz um V com os dedos médio e indicador da mão direita e ele retribuiu enquanto comia uma goiaba.

 

 





 

Written by David Arioch

March 27th, 2018 at 12:35 am

No estacionamento do mercado

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Ontem de manhã, caminhando em direção ao carro no estacionamento do mercado, uma mulher não me viu e bateu o carro em mim enquanto eu caminhava. Não cheguei a cair no chão, só arqueei o corpo. Mas ela reconheceu o barulho do choque, desceu, me olhou e rapidamente começou a gesticular em vez de falar. Sem saber como reagir diante daquela situação, fiz alguns sinais que aprendi com um amigo que tem uma irmã surda. Ficamos nós dois tentando nos comunicar. Cerca de dois ou três minutos depois, uma amiga dela chegou:
 
— Quase atropelei esse rapaz sírio. Na realidade, bati o meu carro nele, mas ainda bem que ele não se machucou.
— Sério? Mas ele está bem?
— Acho que sim. Olhe a cara dele. Não parece estar com dor.
— É verdade — comentou a amiga.
— Sim, estou bem — respondi — limpando a sujeira dos joelhos.
— Você fala português?
— Sim, sou daqui.
— Nossa, nem imaginava. Encontrei agora há pouco um grupo de sírios lá em cima e pensei que você fosse um deles.
— É?
— Sim…
— Ok.
— Vou indo…
— Então tá. Se cuide.
— Obrigado, ostani dobro.
— O que ele disse?
— Sei lá! Acho que é sírio mesmo.




 

Written by David Arioch

March 26th, 2018 at 2:22 am

Como você entrou aí?

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Na semana passada, andando perto da Catedral, ouvi uma voz estridente.

— Ei, você aí.

Tive que olhar várias vezes para ter certeza de onde vinha aquela voz.

— Aqui, mano. Cola aqui.
— Que isso? Como você entrou aí?
— Como cheguei aqui não interessa, parceiro. A verdade é que vamos ficar rico hoje.
— Quê?
— Bora caçar um tesouro. Tem coisa boa aqui dentro. Chega aí.
— Não, obrigado. Pode ficar com o tesouro pra você. Preciso trabalhar.
— Trabalhar pra que, mano? Você é bobo?
— Agradeço a consideração, mas vou indo.
— Azar o seu, louco.

O sujeito estava dentro de um bueiro, e entre as grades eu conseguia ver apenas sua testa lambuzada, sua boca se movendo e seus dedos cobertos de fuligem.

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Written by David Arioch

September 11th, 2017 at 1:28 am

O policial e a criança

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Arte: Norman Rockwell

No mercado, vi uma cena que me chamou a atenção enquanto eu estava na fila do caixa rápido. Um policial militar escolhia alguns pães quando um garotinho, acompanhado do pai e da mãe começou a sorrir efusivamente. Consegui ver seus olhos cintilando mesmo eu não estando tão perto.

A mãe e o pai cumprimentaram o policial e falaram que a criança sempre teve grande admiração por policiais. Dava para ver no rosto do garotinho que a figura do policial para ele é a de um herói. Acanhado, mas lisonjeado, o rapaz fardado balançou a cabeça e disse poucas palavras. Nem precisaria dizer nada. A expressão compenetrada e sisuda de antes desapareceu com a chegada do menino.

O sorriso da criança o desarmou. E ele também começou a sorrir sem parar, olhando para a criança e vez ou outra mirando os pais com seus olhos encalistrados. O menininho pediu para dar um abraço no policial e ele concordou. Agachou e envolveu a criança nos braços por alguns segundos.

Mesmo depois que o casal e o filho partiram, o policial continuou sorridente, passou por mim sem conseguir velar o sorriso. Continuava tímido, translúcido, feliz e provavelmente agradecido por um presente inesperado que o impediu de retomar a expressão circunspecta.

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Written by David Arioch

July 8th, 2017 at 1:11 am

Um banco e duas barbas

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É…são muito parecidas… (Pintura: Anthony van Dyck)

Durante o atendimento, o bancário começou a rir. Eu também.
— Eu sou você amanhã.
— É…acho que sim.
— Não…sua barba é mais fechada.
— Será?
— É sim.
— Obrigado.
— Olhe a barba dele – comentou com outro bancário que também começou a rir e chamou a atenção de outro bancário.
— É…são muito parecidas…uma é cinza e a outra é preta…estágios de transformação.
— Já guardou coisas na barba?
— Sim…
— É mágico, não? – comentou atravessando duas canetas pela barba, formando um X peludo.
— X de Xará.
— hahahahaha demais…
Em pouco tempo, quatro bancários riam e eu também, já anestesiado por passar mais de três horas aguardando atendimento, em abstinência de escrever, sentindo as mãos formigando e as ideias pululando. Vi pessoas sorrindo, rindo, reclamando, xingando, praguejando, bocejando, dormindo.
— Sua barba deve ter mais de ano.
— Tem sim…
— Também estou quase lá.
— É isso aí.
— Não vá cortar a barba, hein? — disse o bancário barbudo.
— Não, senhor.
— Ah, outra coisa.
— O quê?
— Não vá cortar a barba, hein?
— Pode deixar.
Quando me levantei e caminhei em direção à saída, senti minha barba esquentando. Alguém estava me odiando. Sem problema. Lá fora, uma criança de quatro ou cinco anos apontou o dedo em minha direção:
— Tio, sua barba parece um algodão-doce preto.

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Written by David Arioch

June 28th, 2017 at 8:32 pm

Oi…posso te fazer uma pergunta?

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Pedi só uma garrafa de água, caminhei até uma cadeira e sentei diante de uma mesa (Arte: Tom Brown)

Em outra cidade, o único local onde tive tempo de parar e checar se tinha algo que eu pudesse comer foi em uma lanchonete de um posto de combustíveis. Quando a atendente me mostrou todas as opções, expliquei que não como nada com nenhum tipo de carne, laticínios e ovos.

Então pedi só uma garrafa de água, caminhei até uma cadeira e sentei diante de uma mesa, testemunhando através de uma parede de vidro um pedaço de natureza ainda intocado. Três caras acompanhados de uma moça me observavam em uma mesa de canto.

Enquanto eu bebia tranquilamente, notei que a atendente continuava olhando para mim. Quando percebeu que percebi, ela ficou um pouco acanhada e disfarçou passando uma flanela sobre o balcão. Cerca de dois minutos depois, ela se aproximou:

— Oi…posso te fazer uma pergunta?
— Sim…
— Como você consegue ser musculoso sem consumir carne, leite e ovos?
— Deve ser a natureza me agradecendo por não me alimentar de seus filhos.

Ela riu, eu sorri; nos despedimos.

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