David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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Posso pedir um favor?

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Arte: Gregory Thielker

Amanheceu chovendo muito. Estacionei o carro perto do centro e saí caminhando. Tentei me proteger da chuva sob a marquise das lojas. Quando virei em uma esquina, veio um homem em minha direção. Mesmo com um guarda-chuva, em vez de me dar passagem, ele manteve o corpo no mesmo lugar. Então parei e o cumprimentei.

— Bom dia. Posso pedir um favor? Estou sem guarda-chuva, e acho que seria legal se o senhor pudesse me dar espaço para que eu não precisasse me molhar desnecessariamente.

O homem, então com um sorriso amarelecido, estranhando a abordagem, me deu passagem e segui o meu caminho.

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Written by David Arioch

August 16th, 2017 at 2:16 pm

“Droboy tume Romale! Não vou ler a sua mão”

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Pintura: Flora The Gypsy Flower Seller, de George Clausen

No centro, uma cigana me parou e pediu um minuto da minha atenção. “Droboy tume Romale! Não vou ler a sua mão. Mas quero te contar uma coisa.” Consenti. Ela disse que já me conheceu, não nesta vida, mas em outras.

— Você pode não acreditar, mas viveu pelo menos dez vezes mais do que eu. E a sua aparência é sempre a mesma, em cada uma dessas vidas. Os olhos pretos, os cabelos pretos e a barba preta ajudam a equilibrar a luz que existe em você. Por isso te reconheci. Seus olhos são os mesmos de sempre. Você é antigo, e acho que não tem ideia do quanto. Mas as pessoas não saberem isso é uma vantagem maior pra você do que pra elas.

— Antigo? Como assim?

— Sim, meu rapaz. Esta é a sua vida agora, mas você traz muito de outras vidas.

— Sei.

— Morro volá, falo sério! Meu bisavô já falava de você quando eu era criança. Ele te conheceu como Oleg, um kalderash que vivia nos Montes Urais; adquiria a sabedoria dos animais e a compartilhava com os humanos. Se um dia o encontrá-lo novamente, prometo mostrar uma pintura que ele fez de você. Vai te surpreender.

— Sério? Seria interessante ver isso.

— Por que não acredita?

— Não duvido da senhora, mas talvez tenha me confundido com alguém ou algo do tipo.

— De modo algum, sua presença é sentida à distância.

— Hum…

— Aposto que você decidiu usar barba longa pela primeira vez quando fez 30 anos.

— Como a senhora sabe? Talvez um palpite?

— Porque você fez isso em todas as suas outras vidas. Nunca usou barba longa antes dos 30 anos.

— Hum…

— Sabe por que?

— Acho que não há um motivo em especial…

— Há sim. Sempre há. Porque os fios longos sempre marcaram um novo ciclo em todas as suas vidas.

— É?

— Pois acredite, porque não tenho porque mentir. Afinal, não estou cobrando nada, estou?

— Nisso a senhora tem razão.

— Óbvio que sim.

— Hum…

— Bato! Meu pai ficaria feliz de vê-lo também. Ele sempre ouvia suas histórias na infância.

— Quais histórias?

— São muitas. Ah, isso eu não vou contar agora. Quem sabe, em outra ocasião.

— Entendi. Bom, senhora, vou indo porque tenho compromisso e já estou atrasado.

— Não se preocupe. Vá em paz. Akana mukav tut le Devlesa!

Caminhei alguns passos e olhei para trás. A cigana tinha desaparecido.

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Written by David Arioch

June 24th, 2017 at 6:14 pm

Posted in Crônicas/Chronicles

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“Não tão preparando nenhuma maldade não, né, fio?”

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Arte: Kristin Hardiman

No centro, encontrei um amigo que eu não via há um bom tempo. Assim como eu, ele também está bem barbudo.

— Mano, leio as histórias da sua barba. Você passa por cada uma, hein? Por que comigo não acontece nada? Ninguém me confunde nem com mendigo, cara.

— Cara, pra ser sincero, não tenho a mínima ideia.

De repente, passou uma velhinha segurando um guarda-chuva.

— Vocês são muito bonitos. São irmãos? Não tão preparando nenhuma maldade não, né, fio?

— Não, que isso, minha senhora…Aqui só tem gente de bem.

— Então tá bom, assim ninguém fica feio, e ninguém precisa juntar os pedaços de ninguém.

Quando a senhorinha se afastou, o amigo arreganhou os dentes:

— Vou andar mais vezes com você, mano.

E foi embora todo feliz por ser chamado de terrorista pela primeira vez.

 

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Written by David Arioch

June 2nd, 2017 at 5:15 pm

“Fazia muito tempo que eu não encontrava nenhum grego ortodoxo”

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Andando pelo centro de Paranavaí, agachei para amarrar o cadarço do meu tênis, uma pessoa passou e jogou uma nota de R$ 2 e algumas moedas em minha direção. Vai entender. Mais tarde, quando saí da academia e atravessei a rua, uma senhorinha acompanhada da neta, me parou perto do Rotary. Pensei que ela estava perdida ou queria alguma informação, mas me enganei.

Ela pediu para segurar as minhas duas mãos. Reconhecendo seu olhar de ternura, consenti na hora. No mesmo instante, a senhorinha balançou minhas mãos e disse o seguinte: “Olhe esse moço, minha neta! Fazia muito tempo que eu não encontrava nenhum grego ortodoxo nesta cidade. Não estou nem acreditando! Adonai Echad, meu filho!”

20 de outubro de 2016.

Written by David Arioch

November 16th, 2016 at 10:31 am

No centro e no mercado

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Dias atrás, no centro, bem na esquina da Avenida Paraná com a Rua Souza Naves, uma cigana começou a balançar as pulseiras e gritou, me chamando de “wortako”. Olhei receoso, indeciso sobre parar ou não. Quando segui adiante, ela veio em minha direção, ameaçando segurar minha mão.

Fiquei tão surpreso que acabei sem reação, com os pés interrompidos. A cigana olhou bem nos meus olhos duas ou três vezes, alternando toques e esfregões na palma da minha mão direita. De repente, levou a mão à boca e disse: “Você não é filho do Tayrone?” Respondi que não, ela soltou minha mão e gritou: “Che chorrobiya! Che chorrobiya! Seu mentiroso! Mentiroso! Eu conheço a sua família!” Enquanto ela balançava as pulseiras, me afastei a passos rápidos.

Um pouco mais cedo, fui ao mercado. Na seção de grãos, peguei um pacote de farinha de trigo para quibe, de uma marca que até então eu não conhecia, e comecei a ler a lista de ingredientes e outras informações complementares. De repente, uma mulher se aproximou e disse: “Aposto que até você que come muito quibe está estranhando o preço, não?”

6 de novembro de 2016.

 

Written by David Arioch

November 16th, 2016 at 10:19 am

O dia em que Pedro Tenório assassinou Alma de Gato e Bartolo no Líder Bar

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Crime aconteceu no centro de Paranavaí no dia 8 de agosto de 1964

Líder Bar (ao fundo), cenário de um dos crimes mais macabros da região na década de 1960 (Acervo: João Carlos Antunes)

Líder Bar (ao fundo), cenário de um dos crimes mais macabros da região na década de 1960 (Acervo: João Carlos Antunes)

No dia 8 de agosto de 1964, um homem bebendo no Líder Bar, na Avenida Paraná, perto do cruzamento com a Rua Getúlio Vargas, no centro de Paranavaí, explicou a um conhecido que estava negociando a venda de uma fazenda que pertencia a uma família de gaúchos em Querência do Norte. “Vou fechar esse negócio, daí pago a minha dívida, né?”, enfatizou o homem, de acordo com Honório Bonfadini, um dos proprietários do Líder Bar na época, que acompanhou a conversa diante do balcão.

Quando chegou a hora de formalizar a venda, o negociante chamado Pedro Tenório se sentiu lesado porque a transação não foi concluída e ele perdeu a chance de ganhar uma boa comissão. Dois dias depois, retornou ao bar por volta do meio-dia. O local estava lotado, tanto que não havia mais cadeiras e mesas disponíveis. Então Tenório se aproximou do balcão e caminhou até dois homens que conversavam. Sem dizer palavra, sacou um revólver de calibre 44, puxou Onofre de Oliveira, mais conhecido como Alma de Gato, pelo braço e deu-lhe um tiro à queima-roupa no peito.

Alma de Gato foi sepultado na gaveta superior e Bartolo na gaveta inferior do Cemitério Municipal de Paranavaí (Foto: David Arioch)

Alma de Gato foi sepultado na gaveta superior e Bartolo na gaveta inferior do Cemitério Municipal de Paranavaí (Foto: David Arioch)

Bartolo Sanches Perez, que estava ao lado do amigo ferido, ficou inerte, com os olhos estalados. Antes que reagisse, também foi alvejado no peito. Os dois caíram lado a lado enquanto o sangue se misturava no chão do bar. Durante a ação, alguns fregueses tremiam assustados e encolhidos embaixo das mesas. Outros ficaram tão desesperados que correram em direção à Avenida Paraná. “Todo mundo saiu de perto quando ouviu o primeiro tiro. O atirador não chegou a quebrar nada. Só furou a parede e o forro”, relata Bonfadini.

Com calma, Tenório abaixou o revólver e saiu do bar da mesma forma que entrou, ou seja, calado. “Havia muito sangue no chão e muito medo nos olhos de quem presenciou esse crime”, relata o pioneiro João Mariano. O atirador caminhou com tranquilidade até a Rua Getúlio Vargas, onde foi abordado pelo tenente Walter Porto, da Polícia Militar. Não resistiu à prisão e ainda confidenciou que sua intenção era ir até outro bar assassinar mais duas pessoas que segundo ele faziam parte do grupo que interferiu em seus negócios. Feridos gravemente, Alma de Gato e Bartolo acabaram falecendo no hospital.

O pioneiro e ex-prefeito Deusdete Ferreira de Cerqueira se recorda que foi procurado por João Tenório para testemunhar a favor de Pedro Tenório. “Ele era de família abastada. Eu me dava bem com esse parente dele. Mas um dia ele passou na minha casa e disse: ‘É sobre o Pedro, sei que você faz parte do júri popular e quero pedir que salve ele’. Aí expliquei: ‘Ô Seu João, pra mim é difícil. A única coisa que você pode fazer é pedir pra me tirar do júri porque se eu for lá eu condeno ele. Tenho minha consciência e meu senso de justiça’”, lembra.

Deusdete Cerqueira, Honório Bonfadini e João Mariano conheciam Pedro Tenório e as vítimas (Foto: David Arioch)

Deusdete Cerqueira, Honório Bonfadini e João Mariano conheciam Pedro Tenório e as vítimas (Foto: David Arioch)

Após a condenação, Tenório foi transferido para Curitiba. O que o motivou a matar Alma de Gato e Bartolo foi o desejo de vingança e a sensação de impunidade. “Ele tinha amizade com um juiz e um escrivão que se dispuseram a ajudar ele. Ou seja, tudo gente boa”, ironiza Honório Bonfadini, lembrando que era muito comum as pessoas andarem munidas de revólveres de calibre 22 e 38 em 1964.

O duplo homicídio repercutiu tanto que se tornou o assunto mais falado na região por semanas. Inclusive a polícia exigiu que os Bonfadini fechassem o Líder Bar por alguns dias, reabrindo numa segunda-feira. “E tudo isso por causa da corretagem de uma fazenda. Naquele tempo as pessoas matavam facilmente por causa de comissão de terras. Ainda bem que os outros não quiseram se vingar porque senão ia acabar não sobrando ninguém”, pondera Deusdete.

Vizinho de Bartolo Sanches Perez, o pioneiro João Mariano conta que ele era tranquilo e educado. “Uma vez ele passou por uma situação difícil quando o filho dele foi laçar um boi e o animal o arrastou. Levaram o rapaz ao médico e ele se recuperou, mas ficou sem a mão”, confidencia.

Mariano também defende que Alma de Gato, homem alto e magro que conheceu em 1955, não era má pessoa. “Eu era mais novo que o Alma de Gato e tive o primeiro contato com ele em 1953, um ano depois que cheguei em Paranavaí. A propriedade onde moro hoje [Estância Reno] era do pai dele. Tinham uma fazenda enorme, com muito café e mato. Quando comprei, já tinham loteado. O forte deles sempre foi a cafeicultura”, garante Cerqueira.

Curiosidades

Alma de Gato e Bartolo estão sepultados na primeira seção de gavetas do Cemitério Municipal de Paranavaí.

Alma-de-Gato é o nome de um pássaro originário da Amazônia que tem a cauda longa, o peito acinzentado e a plumagem cor de ferrugem.

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A indiferença e os artistas de rua

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Pensei também em como eles resistem na contramão deste mundo cada vez mais consumista em que vivemos

Pensei também em como eles resistem na contramão deste mundo cada vez mais consumista em que vivemos

Eu estava voltando pela Avenida Heitor Alencar Furtado quando parei em um sinaleiro. À minha frente, um artista de rua fazia malabarismo com facões. Fiquei imaginando quanto tempo ele deve ter levado pra chegar àquele nível.

Pensei também em como ele resiste na contramão deste mundo cada vez mais consumista em que vivemos. Não tenho dúvida alguma de que ele não é ambicioso ou ganancioso. E são pessoas com esse tipo de nobreza que vivem alheios à inveja. Do contrário, não estaria lá, entretendo um público ocasional que muitas vezes pouco se importa com o que ele está fazendo.

Notei pessoas mantendo os vidros fechados e desviando os olhos pouco antes do sinal ficar verde. Achei a cena triste, mas de um contraste que realça a nobreza de quem está sempre acima das mesquinharias. O rapaz fazia reverências e sorria efusivamente até para quem o ignorava ou acenava dizendo que não tinha dinheiro algum, mesmo que esses guiassem veículos que custam mais de R$ 100 mil.

Mais do que uma Era de Consumismo, me deparo com situações no dia a dia que reafirmam a existência de uma Era da Mesquinharia, um sentimento que fui incentivado desde cedo a não ter. Cada vez que você vira as costas ou ignora alguém, você reforça uma tentativa de marginalizar alguém. Se você acredita que não tem nada a oferecer, tudo bem, desde que assim sua consciência o reconheça. Mas triste é quando você sabe que tem, mas prefere não oferecer nada baseando-se na descrença generalizada a respeito do ser humano.

Anteontem à tarde foi diferente. No sinaleiro da Rua Manoel Ribas, em frente ao Posto Minas, um rapaz fazendo malabarismos com pinos ganhou um dinheirinho de todos os motoristas. Achei aquilo bonito e raro porque percebi que existia harmonia naquela ação individual que ganhou força coletiva iniciada nas primeiras fileiras. Havia beleza e uniformidade. E a fisionomia do rapaz realmente mostrou que ele se sentiu recompensado.

Me recordei de um costume que o meu pai tinha quando estava fazendo quimioterapia no Hospital Beneficência Portuguesa em 1997. Sempre que ia a São Paulo, ele separava um pouco de dinheiro. Um dia minha mãe perguntou qual era a finalidade e meu pai respondeu: “É que até chegar ao hospital não quero ter que dizer não a nenhum pedinte.”

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Uma noite no fliperama

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Frequentar a Play Time me garantia uma aula semanal de “experiência mundana”

Eu estava jogando Sunset Riders quando Graxinha me chamou a atenção (Foto: Reprodução)

Eu estava jogando Sunset Riders quando Graxinha me chamou a atenção (Foto: Reprodução)

Em 1993, meu pai levava eu e meu irmão mais velho, Douglas, uma vez por semana na Play Time, uma famosa casa de fliperamas situada na Rua Manoel Ribas, no centro de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Chegando ao local, um paraíso juvenil de mais de 20 máquinas do tipo arcade que mais lembrava o cenário de um filme teenager estadunidense dos anos 1980, ele falava para formarmos uma concha com as mãos e distribuía dez fichas para cada um. Enquanto jogávamos, nosso pai ficava ao lado, no Bar Toyokawa, mais conhecido como Bar do Kengo.

Eu era pequenino, tinha menos de dez anos e estudava na Escola Vicentina São Vicente de Paulo numa época em que as professoras, principalmente freiras, colocavam os alunos de castigo por mau comportamento. O meu mundo era tão minúsculo quanto eu fui na infância. Cheio de limites, me fazia ter uma visão bem canhestra da realidade, embora eu fosse muito curioso. Por isso o fliperama significava mais do que diversão baseada em jogos eletrônicos.

Foi nas idas noturnas à Play Time que conheci crianças da minha idade que já bebiam, fumavam e se drogavam. Tinham uma linguagem própria que fazia eu me sentir um pouco estrangeiro. Era um universo que me intrigava e ao mesmo tempo me amedrontava. Eu os via de longe e às vezes deixava de jogar apenas para observá-los. Encostavam suas caixas ao lado das máquinas e acompanhavam os jogadores com os olhos. Davam palpites na tentativa de ganhar a confiança, uma oportunidade e quem sabe até uma ficha.

Lembro quando um desses garotos se aproximou de mim. Era um engraxate de não mais que 12 anos. Eu estava entretido com um jogo de tiros com cowboys chamado Sunset Riders, um dos mais disputados do lugar. De repente, ele cutucou meu ombro e disse: “Ei, você pode me deixar jogar? Sou bom nisso. Passo fácil essa fase aí. Deixa, vai!” Acabei cedendo. Era um garoto negro, franzino, de cabeça raspada e com as unhas cheias de vestígios de graxa. Conforme ele jogava, eu prestava atenção em suas mãos e expressões faciais. Era melhor que eu. Jogava com muita vontade.

A impressão que tenho até hoje daquele momento é de que enquanto aquele garoto não vencia na vida ele merecia pelo menos vencer no jogo. E era o que acontecia. A verdade é que não o deixei jogar pensando se ele passaria de fase ou não. Tanto que depois comecei a dividir metade das minhas fichas com ele, independente do desempenho. Em troca, conheci um pouquinho do seu mundo numa permuta não declarada. Me contou que trabalhava das sete até as oito da noite – nem sempre recebia pelo serviço que prestava. Às vezes tinha que fugir para não apanhar dos clientes mais abusivos.

O chamavam de Graxinha e me recordo, numa reminiscência enuviada e parcial, quando revelou que nasceu e foi criado na Vila do Sossego, atual Vila Alta, na periferia de Paranavaí. “É um lugar pra lá do buracão. Moro do lado, numa barraca. Mas nem dá nada. Não vou pra casa sempre. Acostumei a dormir por aí, em banco de praça ou na rodoviária. Assim não preciso ir e voltar todo dia”, relatou. Ficou atônito, ou pelo menos fingiu, quando um dia me pediu um isqueiro e expliquei que não tenho. “Ué, você não fuma? Vai me dizer que também não bebe?”, questionou. Quando respondi sem jeito que não, Graxinha fez uma expressão mimética de surpresa, se calou por segundos e soltou uma gargalhada. Fiquei envergonhado. Só balancei a cabeça e dei um sorriso acanhado.

Desinibido, mas cuidadoso, circulava por Paranavaí só em turma. Dizia que era perigoso andar sozinho porque “de noite a vida do marginal vale menos do que durante o dia”, algo assim. O grupo era formado por sete ou oito engraxates, todos menores de idade. Meu pai conhecia cada um e sempre pagava algo para eles comerem e beberem. Acho que fazia muito mais do que isso. Com o tempo, me dei conta que meu pai, que um dia também foi engraxate, não me levava apenas para jogar, mas também para aprender mais sobre a vida e o mundo. O contato com esses garotos garantia isso. Era como uma aula semanal de “experiência mundana”.

No mesmo período eu soube que muitos dos engraxates de Paranavaí que tinham essa faixa etária inalavam cola de sapateiro, tíner e benzina. Uns diziam espontaneamente que era o jeito de suportar a vida na rua ou o frio rigoroso que chegava no final de junho, ainda que pudesse afetar a mucosa do nariz. Ingenuamente outros se “fantasiavam” de adultos com um cigarro em uma mão e um copo de cerveja na outra. Na ausência de referências, eram precoces que viviam à sua maneira numa época em que crianças podiam tranquilamente comprar bebida alcoólica ou tabaco.

Apesar disso, sempre vi esses garotos como bastante amigáveis. Apenas tentavam sobreviver com o que conseguiam engraxando sapato até tarde da noite. Me pareciam destemidos, mesmo quando estavam agachados e cabisbaixos nas esquinas, armazenando suas ferramentas de trabalho dentro de caixas personalizadas com palavras aleatórias, frases e desenhos feitos à caneta. Na Play Time e em muitos outros estabelecimentos comerciais, alguns clientes os desprezavam tanto que os xingavam e iam embora quando eles chegavam. Os engraxates não gostavam de briga, então só ignoravam. Felizmente, o Eduardo, proprietário da casa de fliperamas, sempre os recebia com cordialidade e respeito.

Um dia, sem avisar ninguém, Graxinha desapareceu. A última vez que o vi ele estava sorrindo e acenando enquanto pegava carona no estribo de uma Caloi Cross branca como a cor do seu boné. Uns afirmam que foi embora de Paranavaí, outros comentam que o assassinaram. Quase 20 anos depois, conheci o lugar onde o jovem engraxate viveu. Não havia mais nada. No local, só um vazio, alguns restos mortais de cães e gatos, uma placa com um trecho do salmo 22, um pouco de lixo e um céu que parecia mais baixo e nebuloso do que em qualquer outra parte da cidade.