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Posso pedir um favor?
Amanheceu chovendo muito. Estacionei o carro perto do centro e saí caminhando. Tentei me proteger da chuva sob a marquise das lojas. Quando virei em uma esquina, veio um homem em minha direção. Mesmo com um guarda-chuva, em vez de me dar passagem, ele manteve o corpo no mesmo lugar. Então parei e o cumprimentei.
— Bom dia. Posso pedir um favor? Estou sem guarda-chuva, e acho que seria legal se o senhor pudesse me dar espaço para que eu não precisasse me molhar desnecessariamente.
O homem, então com um sorriso amarelecido, estranhando a abordagem, me deu passagem e segui o meu caminho.
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Frangos sob chuva
Encontrei na rodovia uma carreta transportando frangos na chuva. Centenas dentro de caixas amarelas de plástico, com penas parcialmente molhadas e pouco espaço para movimentarem-se. Tive a impressão de ver uma porção de olhos entre as fendas. Não sei se faziam silêncio ou barulho, porque o tamanho da caixa não permitiu tal distinção. E lá dentro, vidas que logo mais cessarão.
A chuva cativa sobre a colina
Irritado, desci a colina gelado, numa torrente que se alongava e se dispersava por todo lado
Desde criança, tenho sonhos incomuns, abstratos e talvez absurdos para quem gosta de defini-los como sinais, revelações ou tormentos. Na noite passada, por exemplo, assim que dormi me vi em um final de tarde em um casarão de madeira no alto de uma colina. Perto de mim, uma bruma morna envolvia crianças e animais que celebravam o Dia de Cosme e Damião em um vilarejo livre de adultos.
Empolgadas, elas gritavam e corriam por todos os lados numa balbúrdia incessante que vinha de um ponto mais baixo, onde a grama tornada seca tinha aspecto embusteiro de palha dourada – e se movia como pés e mãos de espantalhos disformes que gargalhavam sem boca sob as formas do sopro do vento.
Praticamente imóvel, eu observava a movimentação em meio a uma miríade de ventarolas de papel que balouçavam presas às cordinhas de varal. As dezenas de crianças sorriam e giravam em grandes círculos. O ato era simulado por cães e gatos enquanto balas, pirulitos e outros tipos de doces caíam do céu como chuva paulatina. Os picolés derretiam antes de tocarem a grama, se desfazendo como suco embrulhado. Pincelavam os corpos e as cabeças dos pequenos que tentavam em vão agarrar os palitos nus. Era como creolina em roupa. Grudava, se fixava, temendo o próprio fim.
Eu não interagia. Continuava no mesmo lugar, na minha inércia, observando tudo, sóbrio, mas alheio à consciência do tempo e da minha própria condição existencial. Eu era como um nada que antes fluía inidentificável. Na realidade, eu era a chuva que presa e reduzida a um compartimento do telhado acabou privada de tocar o chão, substituída por uma infinidade de doces.
Era injusto comigo que nasci para sentir a terra, umedecê-la e vivificá-la. Ela sempre corava em minha presença. Amolecia, me abraçava e me deixava penetrar em suas entranhas, onde eu poderia desaparecer ou me enredar pelo lençol freático, correndo junto de águas caudalosas. Uma aventura em tanto! Ela me aquecia e eu a esfriava, e aquilo fazia de nossa relação a mais poética das simbioses.
Deixei de ser onipresente naquele Dia de Cosme e Damião, não sei se por unção ou punição a pagão. E isso também pouco importava para quem numa condição limitada somente ansiava, titubeava diante da torrente cálida do sol que o mundo das crianças inebriava. Havia aroma dulcificado por todos os lados, anestesiando até meus sentidos inominados.
De repente, um silêncio solene se instaurou. Todos se calaram para ouvir o som da terra que se intensificou. “O que será que vem agora?”, refleti em confinamento. Depois vi doces brotando do chão. Alguns eram expelidos enquanto outros se descolavam de galhos minúsculos e retraídos sobre caules diminutos.
A cena que se repetiu muitas vezes em vários pontos do vilarejo deixou as crianças ensandecidas. Corriam tresloucadas, atropelando as esculturas de Cosme e Damião que ficavam pelo caminho. Já não representavam a elas mais do que obstáculos. Enquanto digladiavam pelos doces, saltando e golpeando, arrancando com violência as plantinhas que se encolhiam e tremiam curvadas sobre o solo, os cacos de gesso dos irmãos gêmeos voavam pelo chão, formando um caminho encascalhado de profanação.
As brincadeiras findaram, e como selvagens as crianças no chão se debruçaram. Comiam, comiam e comiam sem pestanejar, até que passando mal começaram a soluçar. Mesmo os mais escanifrados ganharam barrigas esféricas como enormes balões. Não conseguiam caminhar, e rolavam e choravam sobre a terra cada vez mais calcinada que o dorso queimava. Alguns resistiam e tentavam correr sobre as pontas dos pés nus, sem direção ou propósito – fuga pela fuga ou échapper par la fuite, como dizem os franceses.
Infindáveis, doces continuavam brotando do chão. Logo centenas de abelhas se aproximaram para polinizar as pequenas plantas que cresciam vertiginosamente. O calor seguiu aumentando. Em estado líquido, eu nada sentia. As crianças sedentas, vencidas pela hiperglicemia, berravam e praguejavam porque não havia água em nenhum lugar de fácil acesso. Encolerizadas com a gritaria, as abelhas abandonaram a polinização para perseguir e atacar os pequenos.
Uma garotinha cercada pelo enxame ficou dourada como a grama queimada, parando de correr e até de se mover. Estática, não tinha ferida, mas parecia sem vida, e seus olhos lembravam bolinhas recheadas de mel que traziam na íris o talhe de um anel. Ouvi alguém batendo na porta do casarão que me abrigava, enquanto o chão, rendido pela mais severa estiagem, rachava.
“Por favor, deixa a gente entrar! Por favor!”, gritavam dezenas de crianças em uníssono. Sem mãos e pernas, o que eu poderia fazer? Não havia ninguém além de mim no casarão. Uma a uma, elas caíram no chão, vitimadas por calor, sede e torpor. Resfolegavam com dificuldade, até que consumido por agitação sobrenatural tentei me desprender da calha entupida. Não consegui e chorei, multiplicando minhas águas e arrastando comigo tudo que me segurava.
Irritado, desci a colina gelado, numa torrente que se alongava e se dispersava por todo lado. Assim que me lancei sobre as crianças, lavando o corpo e a face, elas despertaram e se levantaram. Observaram o céu desanuviado e reconheceram que o mormaço tinha se dissipado. Abriram a boca e beberam a água límpida e fresca que caía em forma de chuva comunesca. Sim, as abelhas também sumiram, e com elas o chão eivado e os doces. O que restava era a vida que resistia consorte e gentia.
A queda da ponte do Rio Santo Anastácio
Pioneiros de Paranavaí tiveram de reconstruí-la em 1927
Em 1927, o engenheiro agrônomo Joaquim da Rocha Medeiros teve de viajar até Pirapora, Minas Gerais, para buscar 300 famílias de migrantes para levar à fazenda que se tornaria a cidade de Paranavaí. Entretanto, a viagem foi interrompida por causa da queda de uma ponte.
Paranavaí era apenas uma fazenda situada no Norte do Paraná nos anos 1920, e que fazia parte da Gleba Pirapó, administrada pela Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco), à época conhecida apenas como “Companhia Brasileira”. Inclusive por tal motivo, após 1930, a área foi chamada de Fazenda Brasileira, uma pequena colônia que começou a se desenvolver em 1924, sob coordenação de Joaquim da Rocha Medeiros que naquele tempo tinha apenas 28 anos. Foi o jovem engenheiro agrônomo quem teve de viajar até Pirapora, no Norte de Minas Gerais, onde 300 famílias o aguardavam para trabalhar como colonos na área rural da Vila Montoya.
Para trazer toda aquela gente a Paranavaí, Medeiros alugou um trem especial que levava passageiros até Presidente Prudente, no Oeste de São Paulo. A viagem foi interrompida por causa de chuvas torrenciais que se prolongaram por mais de um mês, causando enormes estragos. “A nossa sorte é que ficamos sabendo que a nove quilômetros havia dois galpões para a criação de bicho da seda que estavam abandonados. Também havia outras coberturas desocupadas. Lá, conseguimos acomodar todo mundo”, relatou o engenheiro agrônomo em um registro pessoal sobre a colonização do Norte do Paraná.
Quando a chuva cessou, Joaquim Medeiros chamou a atenção de todos e explicou que logo chegariam a uma estrada de terra próxima do Rio Santo Anastácio. Por azar, um pouco mais adiante havia uma ponte de madeira que não resistiu às chuvas e cedeu, indo por água abaixo. De acordo com o engenheiro, logo voltou a chover e tiveram de voltar aos barracões. “À nossa esquerda, as terras se resumiam a um massapé preto numa densa mata”, comentou Medeiros.
No local onde a ponte caiu, o engenheiro selecionou o maior número possível de homens para ajudar a reconstruí-la, pois não havia nenhum outro meio de atravessar tanta gente pelo Rio Santo Anastácio. Além disso, não podiam abandonar os veículos usados no transporte dos colonos. “Fizemos nove quilômetros de estiva e depois iniciamos a transposição até a área do cerrado”, relatou Joaquim da Rocha, acrescentando que foi um trabalho surpreendente, que jamais seria completado com êxito se não fosse pelo tanto de pessoas dispostas a ajudar.
Mais tarde, os centenas de migrantes enfrentaram outro problema. Os caminhões atolavam com extrema facilidade no solo do arenito Caiuá, o que afetou tanto a viagem que entre atolar e desatolar os veículos passou-se uma semana. “Só mesmo o nordestino para suportar tanto desconforto”, admitiu o engenheiro agrônomo Joaquim da Rocha Medeiros. Na fazenda da Companhia Brasileira, futura Paranavaí, os migrantes trazidos de Pirapora foram responsáveis pelo plantio e alinhamento de 1,2 milhão de cafeeiros, tendo somente a ajuda de 20 caminhões Ford.
Saiba Mais
O pioneiro e engenheiro agrônomo Joaquim da Rocha Medeiros que conheceu a futura Paranavaí em 1924 nasceu em Alcobaça, no Sul da Bahia, em 16 de dezembro de 1895. O engenheiro faleceu em 15 de setembro de 1978, aos 82 anos, em São Carlos, na região central de São Paulo.
Medeiros foi Secretário da Agricultura da Bahia, no governo de Landulpho Alves de Almeida. Ficou conhecido por modernizar a agricultura baiana tendo como modelo a agricultura estadunidense.
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A fome que chegou com a chuva
População de Paranavaí passou fome durante longos períodos de chuva
Na década de 1940, quando chuvas torrenciais atingiam Paranavaí, no Noroeste do Paraná, por longos períodos, era difícil e até perigoso deixar o povoado. Nessas circunstâncias, a população era obrigada a lidar com a fome enquanto esperava o fim da chuva.
Uma das situações mais críticas vividas pelos pioneiros foi registrada em 1945, quando 16 dias de chuva castigaram a colônia. Ninguém imaginava que choveria tanto numa época em que não se tinha o hábito de manter uma despensa, nem mesmo para casos emergenciais.
Antes da chuva chegar ao fim, ninguém mais no povoado tinha o que comer em casa. E para piorar, era impossível deixar Paranavaí e buscar alimentos nas cidades ao Sul do estado. Além de não haver meios de transporte que aguentassem longas viagens, trafegar com veículos pequenos pelas íngremes estradas de chão era algo impensável. Além disso, o fato das vias serem estreitas e ladeadas pela mata só aumentava os riscos.
“Já era 1h da madrugada quando ouvimos o ronco de um caminhão. Foi uma surpresa pra todo mundo. Ninguém mais vinha pra cá fazia 16 dias, tanto que a gente estava sem nada. A comida já tinha até acabado”, lembrou o pioneiro paulista José Ferreira de Araújo, conhecido como Palhacinho, em entrevista à Prefeitura de Paranavaí décadas atrás.
O som do caminhão na Rua Getúlio Vargas, no cruzamento com a Rua Marechal Cândido Rondon, fez todo mundo levantar da cama, acender os lampiões e correr para o centro da colônia. Quando chegaram lá e viram os faróis acesos, o empreiteiro Zeca Machado desceu do veículo e mostrou para a população toda a comida trazida de Curitiba. Além de mantimentos, Machado trouxe muitas verduras e legumes para abastecer Paranavaí.
“Todo mundo comprou tudo. Naquele tempo, era normal um dever para o outro porque a gente tinha o costume de emprestar açúcar, café e dali em diante”, destacou José Ferreira. Zeca Machado era o empreiteiro da Colônia Paranavaí e conhecia todas as estradas da região, até porque muitas foram abertas por ele.
Machado viajava esporadicamente a Curitiba com um caminhão do Governo do Paraná para buscar alimentos, materiais de construção e outros produtos. “Mais tarde, o Zeca Machado abriu um armazém e começou a fornecer tudo que a população precisava”, destacou Palhacinho.
O pioneiro paulista Salatiel Loureiro afirmou que o empreiteiro foi o primeiro comerciante da colônia. “O Zeca começou com tudo, depois veio o Patriota, o Lindolfo e o Carlos Faber”, revelou.
Palhacinho dava carne de anta para a freguesia
Quem também ajudou a população em um longo período de chuvas foi o pioneiro Rodrigo Ayres que certa vez viajou até Marialva, no Norte Central Paranaense, para buscar uma carroça de mantimentos.
“A viagem durou 15 dias. Demos o dinheiro e ele trouxe tudo que pedimos. Pouco tempo depois, o Patriota [Leodegário Gomes Patriota] abriu um armazém e logo tivemos fartura. Nunca mais faltou comida”, relatou o pioneiro paulista José Ferreira de Araújo, conhecido como Palhacinho.
Ainda nos anos 1940, Araújo tinha uma pensão em Paranavaí e alimentava os clientes com carne de anta. “Eu mesmo que caçava lá na Água da Floresta e Tucano. Cozinhei muitas paneladas para dar ao pessoal. Depois melhorou e pude alimentar eles com carne seca e batata. Todo mundo comia contente. Ninguém saía daqui com fome”, declarou.
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A trajetória de um homem do campo
José Freitas fala sobre a experiência de fazer parte da primeira geração de boias-frias
O aposentado José Alexandre Freitas, 72, morador do Jardim Morumbi, em Paranavaí, é da primeira geração de boias-frias do Noroeste do Paraná. Hoje em dia não trabalha mais, mas carrega marcas que nem o tempo é capaz de apagar, como as mãos calejadas, de pele grossa, e o rosto enegrecido e manchado pela frequente exposição ao sol.
Da época em que atuava como trabalhador volante, Freitas herdou também um chapéu de palha que ele ajeita cuidadosamente várias vezes, mesmo sabendo que a entrevista não é para a TV. O aposentado é amistoso e sorridente, porém quando se recorda dos problemas de quando trabalhava no campo, o sorriso se mistura a um olhar mortiço, uma consequência natural que evidencia a relação de amor e ódio do boia-fria com o campo.
Na entrevista abaixo, compilada em tópicos, José Alexandre Freitas, o colono que virou boia-fria, sintetiza opiniões e experiências ao falar sobre colonato, êxodo rural, trabalho infantil, aposentadoria, mecanização e outros assuntos.
O pequeno produtor rural
Nas décadas de 1960, 1970, quem tinha um sítio teve que vender pra fazendeiro. O pequeno produtor não tinha chance nenhuma de disputar o mercado. Acontecia muitas injustiças que eu mesmo vi de perto. Isso melhorou só depois por causa das cooperativas.
O colono
Quando comecei a trabalhar de colono, tudo isso aqui era café. A gente recebia mesada do patrão. A colheita era unida, bonita de ver e de lembrar. Depois acabou e tive que virar boia-fria. Em 1964, 1965 e 1966, a gente recebia uma diária mixuruca, não chegava a ganhar nem um salário por mês. A coisa foi mudando na década de 1980.
O fim do colonato
Os colonos desapareceram. Vim em 1982 pra cidade porque os patrões não queriam mais ninguém na roça. Eu fui um dos últimos colonos a vir pra cá. Vim meio que obrigado, não queria muito, ainda gostava da roça. Cheguei nessa mesma rua [Avenida Domingos Sanches], onde a gente tá conversando agora. Hoje, penso diferente, se fosse pra eu trabalhar de novo na roça preferia morar aqui e ir de ônibus do que morar na fazenda.
Êxodo rural
Naquele tempo, a jornada era de 12 horas, então trabalhar na roça era terrível. Quem tinha a chance de vir pra cidade não pensava duas vezes. Imagine, você começar a trabalhar às 6h da manhã e parar só às 6h da tarde. Hoje em dia é diferente, ninguém trabalha na roça mais do que oito horas. Era cruel, o pessoal sofria muito.
A vida de boia-fria
A verdade é que boia-fria até hoje é um sujeito sem patrão. O mais próximo que ele tem de um chefe é o gato. No meu tempo, ninguém podia adoecer. Se ficasse um mês parado, passava fome. Lembro que a gente recebia 40, 50 centavos por pé de café, mas quando o patrão queria que o sujeito fosse embora por vontade própria, ele pagava 20 centavos. Mas nem todos eram assim. Tive patrão bom também que quando o boia-fria não conseguia ganhar o suficiente, ele pagava mais pela diária.
Gato X fiscal
O gato e o fiscal agem da mesma maneira. Eles pegam uma área de empreita, contratam os trabalhadores e pagam um pouco menos do que o oferecido pelo dono da propriedade pra ter lucro. O ganho por dia equivale a duas diárias de um boia-fria. Trabalhei como fiscal e gato por alguns anos. Às vezes, tinha que dividir a turma. Era impossível dar conta de 100 peões ao mesmo tempo.
Trabalho infantil
Até a década de 1990, tinha muitas crianças trabalhando nas roças da região, já hoje é difícil de encontrar. Acho errado o menor não poder trabalhar, porque antigamente, quando a criança começava cedo na lida, ela aprendia a respeitar mais os pais e também a vida. Hoje, qualquer adolescente diz que não vai trabalhar porque está protegido pela lei, inclusive tem quem use isso pra desafiar a família. Na minha época, um rapaz de 18 anos já era independente, tinha a
própria vida.
Segurança x ajuda
Acidente de trabalho acontecia, mas ninguém era responsável. Hoje também não mudou muita coisa. A verdade é que sem registro não existe segurança. No tempo em que mais trabalhei, década de 1950, 1960 e 1970, quem mais sofria acidente era a criança. Caía e machucava o pé, quebrava braço, então quem tinha que se virar era a família. Quando alguém se feria, a gente se reunia e ajudava. Comprava comida, fazia vaquinha pra arrecadar dinheiro. O ruim é que empregado que se machucava no serviço era mandado embora.
Relação com os colegas de trabalho
Quando trabalhei como gato, nunca fui maldoso com ninguém, eu respeitava todos os boias-frias, até porque fui um deles, né? Tinha paciência, falava com educação. Por isso que os patrões gostavam de mim. Eu odiava estupidez.
Chuva na roça
Essa era a pior parte. Não tinha esse negócio de que porque está chovendo não ia trabalhar. A gente ganhava por dia, então não tinha como ficar em casa esperando a chuva passar.
Sindicato dos trabalhadores
Naquele tempo, o sindicato não era vigorado como hoje. Agora o trabalhador rural tem garantias e direitos. O sindicato garante salário-desemprego, 13º salário e ainda ajuda a receber os atrasados. Fazem um trabalho muito bom.
Entretenimento
A gente ocupava o tempo livre jogando futebol, até o patrão jogava, e de centroavante. Era o nosso grande lazer, além de outro que eu não posso falar (risos).
Aposentadoria
Trabalhei a vida toda na roça e nunca tive direito a nada. A única sorte que tive foi me aposentar com 60 anos. Hoje, pra se aposentar com essa idade, é muito difícil. Quase nenhum patrão quer ajudar o empregado que trabalhou na roça. Até dá pra entender, ninguém quer ser responsável se der alguma coisa errada. Conheço muita gente que trabalhou no campo e tenta se aposentar, mas não consegue. Na minha família tem gente nessa situação.
Experiência no corte de cana-de-açúcar
Há 21 anos, tive uma experiência no corte de cana, mas não consegui cortar 70 metros. Fui três dias, fizeram a minha ficha, mas daí não foi aprovada porque não cortei 70 metros. Disseram que não podiam me dar nenhuma garantia.
Mecanização
Sobre as máquinas, acho que a dificuldade maior é que ninguém sabe o que o governo vai fazer com esse povo todo. O serviço braçal ainda vai acabar, disso eu tenho certeza porque já conheci máquina que substitui o homem até em terreno irregular. Lá no interior de São Paulo mesmo, boia-fria é conhecido como cata-bituca, porque pra ele só ficam os restos deixados pela máquina.
O futuro dos boias-frias
A única saída ainda é a reforma agrária. O governo deve desapropriar e comprar essas fazendas onde ninguém planta nada e cortar em lotes. Se fizer direito, vai dar certo. Sei disso porque tenho um genro que mora numa fazenda no interior de São Paulo e lá ele conseguiu oito alqueires e hoje vive de forma mais digna.