David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

Archive for the ‘Cinema Brasileiro’ tag

“Cinema Negro”, um cinema de constituição material social

without comments

Cena de “Histórias de Arcanjo”, de Guilherme Azevedo

O chamado “cinema negro”, por vezes qualificado como se fosse um gênero, é um cinema de constituição de material social, que visa principalmente lançar luz sobre questões identitárias que envolvem relações sociais, históricas e culturais. No Brasil, essa conscientização surgiu com o Cinema Novo, quando os cineastas, influenciados pelo caráter de denúncia social do neorrealismo italiano, começaram a combater o racismo ao abordar a realidade brasileira sem artificialismo e romantismo. Inclusive esse período ficou marcado pela efervescência do protagonismo negro no cinema nacional.

Written by David Arioch

July 3rd, 2017 at 8:21 pm

O valor de uma promessa

without comments

A história do homem que viaja sete léguas com uma cruz nas costas para cumprir um voto

Zé carrega a cruz em retribuição a cura do seu burro (Foto: Reprodução)

Zé carrega a cruz em retribuição a cura do seu burro (Foto: Reprodução)

Lançado em 1962, O Pagador de Promessas, do cineasta Anselmo Duarte, é um dos maiores clássicos do cinema nacional. A obra inspirada na peça de Dias Gomes conta a história de um homem do campo que viaja sete léguas (42 quilômetros) com uma cruz nas costas para pagar uma promessa.

No filme, Zé do Burro (Leonardo Villar) chega à cidade machucado pelo peso da cruz sobre o ombro, resultado de um voto que fez à Santa Bárbara para que o seu fiel companheiro, um burro, fosse curado de uma grave enfermidade. Mas o grande problema surge quando o agricultor tenta entrar na Igreja de Santa Bárbara com a cruz, sendo impedido pelo Padre Olavo (Dionísio Azevedo) ao saber que Zé fez uma promessa à santa em um terreiro de candomblé.

Tenta justificar o episódio falando que não havia nenhuma igreja ou capela próxima. Intransigente, o sacerdote não aceita a explicação de Zé e pede que o homem saia das imediações do templo. O pagador de promessas se recusa e decide ficar na frente da igreja até conseguir entrar, honrando o compromisso feito à Santa Bárbara.

Aproveitando-se da inocência do matuto homem do campo, uma infinidade de pessoas tentam se aproximar com as mais diversas intenções. Um exemplo é o inescrupuloso personagem Bonitão, um cafetão que finge ajudar Zé apenas com a intenção de conquistar Rosa, a mulher do pagador de promessas.

Outra figura digna de destaque é o jornalista interpretado por Othon Bastos que explora com sensacionalismo e inverdades a figura de Zé como um revolucionário messiânico. A repercussão da publicação atrai visitantes, líderes religiosos, patrocinadores oportunistas e até mesmo a polícia que começa a encarar o produtor rural como um contraventor e agitador social.

Filme apresenta o contraste entre símbolos religiosos europeus e africanos (Foto: Reprodução)

Filme apresenta o contraste entre símbolos religiosos europeus e africanos (Foto: Reprodução)

É trágica e cômica a cena do comerciante estrangeiro pedindo para o fotógrafo do jornal mostrar ao fundo o seu comércio enquanto em primeiro plano aparecem Zé, a cruz e Rosa. Anselmo Duarte aborda com riqueza visual e informacional a relação conturbada entre o catolicismo e as religiões afro-brasileiras, avaliadas pelo padre como “práticas demoníacas”.

A beleza de O Pagador de Promessas está na simplicidade, objetividade e linguagem canhestra do protagonista, alheio ao materialismo e malícias da modernidade. Em alguns aspectos, o filme lembra a crítica social das fases mexicana e espanhola do cineasta Luis Buñuel e também o cinema neorrealista de Pier Paolo Pasolini, principalmente a passagem da mercantilização da fé do clássico Uccellacci e Uccellini.

O pagador de promessas ostenta valores maiores que a própria vida (Foto: Reprodução)

O pagador de promessas ostenta valores maiores que a própria vida (Foto: Reprodução)

No início da obra, símbolos religiosos europeus e africanos se misturam no mesmo ambiente, evocando uma ideia de unidade da fé sustentada em amor incondicional e livre de preconceitos. Ao mesmo tempo, a percussão arcaica e dissonante da cena introduz o espectador ao caos que ainda vai ser vivido por Zé do Burro. Outra característica marcante do filme é o contraste entre o barulho e o silêncio total, além da aridez do cenário e a fotografia angustiante que em vários momentos aspira ao desconforto e ao derrotismo.

O Pagador de Promessas é uma obra antológica que apresenta um personagem ímpar com valores maiores que a própria vida. Extremamente atual, o clássico discute assuntos ainda controversos como o preconceito religioso, reforma agrária e má distribuição de renda. O elenco conta com outros grandes nomes do cinema e da TV nacional como Glória Menezes, Geraldo Del Rey, Roberto Ferreira, Norma Bengell e Antonio Pitanga.

O filme de Anselmo Duarte foi o grande vencedor do Festival de Cannes de 1962, recebendo a Palma de Ouro, título jamais conquistado por outra película brasileira. Também foi premiado em duas categorias no San Francisco International Film Festival, onde recebeu o Golden Gate, além de outras premiações no Festival de Cartagena, na Colômbia, e uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1963.

Roberto Moreira e a tradicional hipocrisia brasileira

with one comment

Filme de estreia do cineasta mostra a diferença entre olhar e enxergar a realidade

Filme é recheado de críticas sociais (Foto: Reprodução)

Filme é recheado de críticas sociais (Foto: Reprodução)

O filme Contra Todos, que marcou a estreia de Roberto Moreira como cineasta, é recheado de críticas sociais que desnudam a hipocrisia da sociedade brasileira a partir de uma caricata família de classe média baixa.

Contra Todos foi o filme brasileiro mais premiado em 2004, quando foi lançado, e não por acaso. A obra apresenta todos os elementos de uma boa história. Na periferia de São Paulo, Teodoro (Giulio Lopes), que tenta preservar uma imagem de homem religioso, interpreta um mercenário e pai de família que bate na filha Soninha (Sílvia Lourenço) e trai a mulher Cláudia (Leona Cavalli) com a companheira de culto Terezinha (Martha Meola).

Infeliz com o marido, Cláudia se relaciona com Júlio (Ismael de Araújo). Aos poucos, a verdadeira imagem da família se descortina. A situação sai de controle quando o amante de Cláudia é assassinado. Perturbada, a mulher destrói a casa e abandona tudo. Depois de fugir e se hospedar em um hotel, Cláudia conhece Lindoval (Dionísio Neto), com quem começa a namorar.

No elenco, Leona Cavalli, Giulio Lopes e Aílton Graça (Foto: Reprodução)

No elenco, Leona Cavalli, Giulio Lopes e Aílton Graça (Foto: Reprodução)

Mais uma vez, o plano de felicidade é interrompido quando Lindoval quase morre após ser espancado. Cláudia acredita que o crime é de autoria do marido. Em meio a tanta confusão, Teodoro decide se casar com Terezinha e mandar a filha morar com a avó. A história ganha outro rumo quando a religiosa recebe uma fita de vídeo do futuro marido tendo relações sexuais com a ex-mulher; Terezinha acreditava que Teodoro era solteiro.

Muitos dos acontecimentos do filme são motivados pelo malandro e persuasivo Waldomiro (Aílton Graça), amigo e confidente da família de Teodoro. Além disso, também chama atenção a busca por isenção e impessoalidade. O cineasta não interfere nos acontecimentos, se limita a apresentá-los da forma mais crua possível, deixando para o espectador a tarefa de refletir e tirar conclusões.

O autor usa recursos que corroboram o realismo da trama – como planos com a câmera na mão, evitando a plasticidade. Moreira ainda escolheu locações que fogem aos clichês da periferia paulistana. Para dar mais naturalidade às cenas, optou por um elenco que concordou em participar do filme sem ter contato com o roteiro antes do início da produção.

Mojica Marins e o Fim do Homem

without comments

finis-hominis---o-fim-do-homem

Filme aborda a carência e a fragilidade humana (Foto: Reprodução)

Lançado em 1971, Finis Hominis (Fim do Homem), do cineasta brasileiro José Mojica Marins, mais conhecido como Zé do Caixão, é um controverso filme de influência niilista e iconoclasta que aborda a carência e a fragilidade humana a partir da idolatria de um homem incomum.

Na primeira cena de Finis Hominis, um sentimento de angústia é proeminente. Ao redor do protagonista – o próprio Mojica Marins, que parece confuso ao surgir por meio de um artifício surreal, desponta uma paisagem em que o uso de filtro ressalta uma penumbra; possível referência à escuridão que permeia a natureza humana.

Pouco tempo depois o estranho recebe o nome de Finis Hominis. O personagem representa o antiparadigma do homem considerado normal. Mesmo pouco comunicativo e de aparência extravagante, desperta atenção por onde passa, conquistando uma infinidade de seguidores que veem no anormal um alicerce de segurança e possibilidade de redenção.

33

José Mojica interpreta um personagem reverenciado por onde passa (Foto: Reprodução)

Em Finis Hominis, Mojica Marins adianta o que aconteceria muitos anos depois; um grande aumento do número de igrejas. Também enfatiza, por meio da dialógica, que o homem é um ser extremamente vulnerável e refém do status quo. O cineasta questiona até que ponto o ser humano é capaz de ser fiel as suas ideologias e crenças, não se deixando levar pelas tentações do acaso.

Em uma das cenas, Finis Hominis arremessa um monte de moedas em meio a um grupo de hippies que como seres irracionais começam a brigar pela posse do dinheiro, ignorando os próprios valores. O personagem não se surpreende, simplesmente vira as costas e vai embora, como uma figura provocadora e ao mesmo tempo alheia.

 Curiosidade

Finis Hominis é o único filme de José Mojica Marins lançado durante a Ditadura Militar que não foi censurado.

Written by David Arioch

January 23rd, 2013 at 6:14 pm

Crime e Castigo à brasileira

without comments

Heitor Dhalia e a interpretação moderna da obra de Dostoiévski

nina43

FIlme apresenta um mundo obscurantista e psicodélico (Foto: Reprodução)

Lançado em 2004, Nina foi o filme de estreia do cineasta Heitor Dhalia. A história, que se desenrola a partir da difícil condição psicológica e emocional de uma jovem mulher, é uma livre interpretação moderna da obra literária Crime e Castigo, do existencialista russo Fiódor Dostoiévski.

nina29

Nina é humilhada o tempo todo por Dona Eulália (Foto: Reprodução)

nina42

A protagonista mantém apenas relações superficiais e efêmeras (Foto: Reprodução)

Nina (Guta Stresser) é uma moça que vive em um mundo obscurantista e psicodélico, onde o convívio social se resume à exaltação de emoções efêmeras e superficiais. Ciente de sua condição, se mantém viva por meio da interiorização e do ato de desenhar, atividade explorada por Dhalia com a intenção de evidenciar a sensibilidade da personagem e despertar reações. Há uma clara referência ao expressionismo alemão e ao gekiga.

Do início ao fim, o filme ressalta as negatividades que a modernidade impõe aos humanos extraordinários através dos ordinários, usurpando-lhes a vivacidade. Como consequência, surge uma solidão avassaladora, envolta por uma redoma de sentimentos como humilhação e ausência de autoestima. Tudo isso se soma a uma austera descrença na humanidade.

Myriam Muniz 3

Eulália personifica as imperfeições do mundo contemporâneo (Foto: Reprodução)

A personagem principal, uma versão brasileira à imagem de Rodion Românovitch Raskólnikov, protagonista do romance russo Crime e Castigo, se aproxima da sociedade apenas em momentos de embriaguez ou sob efeito de alucinógenos. Aí se materializa o mundo eletrônico, falsamente colorido, onde as dores da alma encontram refúgio em uma artificial luz de néon. É uma plasticidade que representa fuga e reforça a negação da natureza.

A história tem momentos perturbadores, como nas cenas em que a fragilizada Nina, mesmo calada, admite a si mesma a intemperança emocional, o incólume desejo de matar ou se autodestruir. São situações trazidas à tona, na maior parte do tempo, pela antagonista Dona Eulália (Myrian Muniz), de quem a protagonista é inquilina e por isso se submete a muitas humilhações.

A idosa mesquinha, uma versão 2004 da odiosa usurária Aliena Ivánovna, de Dostoiévski, personifica não apenas as imperfeições do mundo contemporâneo, como a imoralidade do capitalismo selvagem ou as injustiças da sociedade de consumo, mas também valores retrógrados como o despotismo.

Com a primazia de uma estética cinematográfica revolucionária, que materializa emoções a partir de peculiares transformações de cenário e cinegrafia dissonante, Dhalia estreou como cineasta ofertando um inesquecível registro sobre um câncer invisível; doença que reside na existência humana, mas não pode ser aniquilada em uma mesa de cirurgia, nem mesmo tratada com quimioterapia ou radioterapia.

Além das excelentes interpretações de Guta Stresser e da memorável Myrian Muniz, Nina ainda conta com a participação de um grande elenco formado por Milhem Cortez, Abrahão Farc, Juliana Galdino, Heitor Goldflus, Ailton Graça, Sabrina Greve, Luiza Marini, Altamiro Martins, Selton Mello, Wagner Moura, Lázaro Ramos, Matheus Nachtergaele, Walter Portela, Renata Sorrah, Eduardo Semerjian, Nivaldo Todaro e Guilherme Weber. A trilha sonora é do renomado compositor Antonio Pinto, filho do famoso cartunista Ziraldo, que já compôs para mais de 30 filmes, entre obras brasileiras e até hollywoodianas.

Deus e o diabo no sertão

without comments

Glauber Rocha conta a história de dois nativos da exclusão social

tpm114-bazar-030

Deus e o Diabo na Terra do Sol consagrou Glauber Rocha como expoente do Cinema Novo (Foto: Reprodução)

Lançado em 1964, Deus e o Diabo na Terra do Sol é o filme que consagrou Glauber Rocha como um dos expoentes do Cinema Novo. No clássico, um casal vivendo em condição de miséria, vagando sob o sol escaldante da caatinga, torna-se incapaz de distinguir entre Deus e o diabo.

black_god_white_devil_1_56825-1400x1050

Manoel e Rosa se tornam discípulos de um falso profeta (Foto: Reprodução)

Nascidos sob o estigma da pobreza, Manoel (Geraldo Del Rey) e Rosa (Yoná Magalhães) são dois nativos da exclusão social que se tornam intolerantes com a própria realidade. Logo no início do filme, Manoel é encarregado de comprar algumas cabeças de gado; o trato é que o fazendeiro partilhe o lucro das vendas.

deusdiabo

Na história, o casal também segue o cangaceiro Corisco (Foto: Reprodução)

Por azar, mais da metade dos bovinos morre antes de chegar ao destino. Na hora do pagamento, o patrão afirma que não dará nada ao empregado, já que o gado morto, segundo o fazendeiro, pertencia a Manoel. Encolerizado com o desvio de caráter do latifundiário, o rapaz o mata. A cena representa a vitória do escravo do campo sobre o coronelismo.

Com medo, o casal foge e abandona tudo, não apenas pelo temor de serem presos, mas também porque começam a acreditar que a honestidade não vale a pena. Na fuga, a dupla conhece o profeta Sebastião (Lídio Silva), uma falsa personificação messiânica. Sem rumo e desesperados, decidem segui-lo.

Antonio

Antonio das Mortes sela o destino da dupla (Foto: Reprodução)

Mesmo com um grande poder de persuasão diante de uma legião de miseráveis e ignorantes, o líder religioso mostra a verdadeira face quando tenta sacrificar uma criança. Rosa impede Sebastião e em seguida o mata. Fica claro o quão tênue é a linha entre o fanatismo religioso e a barbárie motivada pela insanidade.

A experiência contribui para a destruição dos poucos valores que o casal ainda preservava. Honestidade e espiritualidade se esvaem em detrimento da obtusa condição existencial dos personagens. Novamente sozinhos, e cercados pela imensidão desértica, encontram o cangaceiro Corisco (Othon Bastos), um cético justiceiro que, sem grandes esperanças na humanidade, atribui aos burgueses as desgraças vividas pelo povo.

Frio, impiedoso e violento, o fora-da-lei representa o diabo, em uma subjetiva idealização do cineasta. Quando Corisco é assassinado pelo mercenário Antonio das Mortes (Maurício do Valle), Manoel e Rosa se interiorizam ainda mais, crentes de que com a morte simbólica de Deus e do diabo só resta acreditar no homem, na possibilidade de que um dia ele encontre a si mesmo.

Embora pouco valorizado no Brasil, o filme de Glauber Rocha é cultuado em muitos países, principalmente na França e nos Estados Unidos, onde figura entre as obras preferidas de cineastas como Martin Scorsese e Quentin Tarantino. Amigo do cineasta brasileiro, com quem teve contato pela última vez em 1980, Scorsese considera a filmografia de Rocha uma das três mais importantes em sua formação cinematográfica.

A história do Preto Velho

without comments

Em Cafundó, João de Camargo representa o Brasil miscigenado e heterogêneo

cult_cafundo (1)

Lázaro Ramos interpreta o preto velho João de Camargo (Foto: Reprodução)

Lançado em 2005, Cafundó, dos cineastas Paulo Betti e Clovis Bueno, é um filme recheado de simbologias que narra a trajetória de João de Camargo (Lázaro Ramos), o mais emblemático preto velho brasileiro. Na obra que teve como cenário várias cidades do Paraná, como Ponta Grossa, Paranaguá e Antonina, João de Camargo representa um símbolo de fé e a figuração de um Brasil marcado pela miscigenação, heterogeneidade e fusão de valores.

Exemplo de toda essa mistura é a ideia do protagonista em criar a Igreja de Bom Jesus do Bonfim que une elementos de umbanda e cristianismo; um revolucionário artifício que pode não ter sido determinante na aceitação dos símbolos religiosos africanos, mas contribuiu para mostrar uma nova realidade que se distanciava daquele contexto europeizado.

leona-cavalli-e-lazaro-ramos-em-cena-de-cafundo-longa-metragem-dirigido-pelo-ator-paulo-betti-2005-1351782245280_564x430

Personagem rompe sua relação com o passado na busca pela redenção (Foto: Reprodução)

A iniciativa de construir uma igreja diferente só surge quando o protagonista decide, após uma vida errante de muito sofrimento, viver para a fé. João de Camargo rompe sua relação com o passado na busca pela redenção. A entrega às crenças religiosas também se relaciona ao fato do personagem assumir o dom para a mediunidade, não ignorando mais as vozes que o acompanhavam, e sim as usando para curar enfermidades.

Cafundó

Muitas cenas do filme foram gravadas no Paraná (Foto: Reprodução)

O Preto Velho era um homem muito à frente de seu tempo, tanto que os primeiros indícios de seu perfil como líder aparecem em 1866, quando o personagem começa a aceitar a vida e o próprio talento para lidar com as multidões e o preconceito racial. Camargo não só estimulava a fé das pessoas em uma divindade, mas também as fazia acreditar no valor da vida e na importância de cada ser humano, independente de credo ou origem.

Embora tenham se passado quase 150 anos, até hoje as influências do Preto Velho na cultura brasileira se estendem por diversas esferas artísticas e religiosas. Mesmo que desde 1988 o Cafundó, remanescente do quilombo situado na região de Sorocaba, em São Paulo, tenha deixado de ser um folclórico espaço físico de casinhas de barro e pau trançado, o lugar ainda é grande como um ambiente imaterial que se multiplica no ideário de quem se preocupa em preservar uma cultura pouco valorizada.

Além da interpretação inesquecível de Lázaro Ramos, é preciso destacar os papéis de Leona Cavalli, Leandro Firmino, Alexandre Rodrigues, Ernani Moraes, Luís Melo, Renato Consorte, Francisco Cuoco e Abrahão Farc. Outro grande atrativo de Cafundó é a trilha sonora de André Abujamra que a cada cena se mostra um exímio manipulador de emoções, introduzindo o espectador por viagens transcendentais. A rabeca entra na história como um recurso estilístico que pauta o tempo e os rompantes do acaso.

Um criminoso à moda antiga

without comments

Flávio Frederico conta a história do paranaense que comandou a Boca do Lixo

daniel-oliveira-teve-que-usar-lentes-grosas-protese-no-queixo-e-afatador-para-ficar-com-orelhas-de-abano-1348693213537_615x470

Daniel de Oliveira em uma de suas melhores atuações (Foto: Reprodução)

Lançado em 2010, o filme Boca do Lixo, do cineasta Flávio Frederico, autor dos documentários Caparaó e Serra, de 2007 e 2003, conta a história do paranaense Hiroito de Moraes Joanides, o maior criminoso da Boca do Lixo. O filme segue uma ordem cronológica de eventos. Tem início na infância de Hiroito, mostrando de que forma o garoto desenvolveu um vínculo com a Boca do Lixo, no bairro da Luz, em São Paulo.

No início da juventude, o herdeiro dos Joanides já demonstrava desinteresse por uma vida normal. Preferia viver em prostíbulos, bebendo e tentando impor a ordem ao seu modo. Hiroito nunca aceitou a monogamia, e amava tanto as mulheres quanto os livros, a quem dedicava boa parte do dia.

exvid_boca_screenshots

Hiroito vivia como um rei de perspectiva limitada (Fotos: Reprodução)

Tinha facilidade em conquistar parcerias, mas também em desfazê-las; tudo por causa da personalidade volátil que se agravou com o tempo. O rei da Boca do Lixo, como ficou conhecido, chegou a assassinar o melhor amigo quando soube que o rapaz lhe furtou uma parte dos ganhos com a prostituição e comércio de entorpecentes.

Hiroito vivia como um rei, mas de perspectiva limitada. Acreditava que por ter um delegado de polícia como cúmplice jamais seria imputado por qualquer crime. Um grande engano. A megalomania fez com que chamasse muita atenção em todo o país, inclusive tendo de retornar por um curto período para o Paraná.

Mais tarde, de volta a São Paulo, o jovem Joanides se recusa a crer na transformação da Boca do Lixo, e com apenas dois parceiros tenta retomar o comando do lugar. Além da belíssima fotografia, que parece remeter ao cinema noir, e da ação da trama, referenciada pelo gangster movie, o filme chama atenção pelo realismo e fidedignidade à obra homônima, escrita pelo próprio Hiroito.

Outro destaque é o elenco formado por Milhem Cortez, Hermila Guedes, Leandra Leal e Daniel de Oliveira que mergulha na personalidade do culto mafioso. Quem assina a inconfundível trilha sonora da obra é o produtor musical e compositor Eduardo Bid que também compôs para filmes como O Primeiro Dia, de Walter Salles Jr; Chega de Saudade e As Melhores Coisas do Mundo, de Lais Bodanzky; e Estamos Juntos, de Toni Venturi.

Curiosidade

No filme, Daniel de Oliveira teve de usar um afastador para simular orelhas de abano, além de prótese no queixo e lentes grossas que ressaltam não apenas os olhos, mas também a intrincada expressividade do personagem.