David Arioch – Jornalismo Cultural

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“Cinema Negro”, um cinema de constituição material social

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Cena de “Histórias de Arcanjo”, de Guilherme Azevedo

O chamado “cinema negro”, por vezes qualificado como se fosse um gênero, é um cinema de constituição de material social, que visa principalmente lançar luz sobre questões identitárias que envolvem relações sociais, históricas e culturais. No Brasil, essa conscientização surgiu com o Cinema Novo, quando os cineastas, influenciados pelo caráter de denúncia social do neorrealismo italiano, começaram a combater o racismo ao abordar a realidade brasileira sem artificialismo e romantismo. Inclusive esse período ficou marcado pela efervescência do protagonismo negro no cinema nacional.

Written by David Arioch

July 3rd, 2017 at 8:21 pm

Uma história de amizade em um mundo árido

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Johann e Ranulpho se aproximam por força da necessidade, mas aos poucos se tornam amigos

A princípio, Johann e Ranulpho são apenas dois estranhos se ajudando (Foto: Divulgação)

A princípio, Johann e Ranulpho são apenas dois estranhos se ajudando (Foto: Divulgação)

Lançado em 2005, Cinema, Aspirinas e Urubus é o longa-metragem de estreia do cineasta Marcelo Gomes. Ambientado no sertão nordestino em 1942, o road movie apresenta a história do alemão Johann (Peter Ketnath) e do sertanejo Ranulpho (João Miguel), dois homens antagônicos que se aproximam por força da necessidade, mas aos poucos se tornam amigos.

A primeira cena em que Johann aparece guiando o automóvel em meio à caatinga carrega um conceito de desertificação. A contumácia da claridade amplifica a sensação do vasto vazio em profundidade – do nada, do inabitado. E a trilha aliada ao ambiente evidencia a saudade e a solidão. Em Cinema, Aspirinas e Urubus, desde o princípio a música é tão importante quanto um personagem – ela situa o drama no tempo.

No limiar, há poucos diálogos e a comunicação do filme com o espectador é construída a partir da iluminação que naturalmente intensa reflete uma aridez que evoca semelhante agonia despertada por Nelson Pereira dos Santos em Vidas Secas, adaptação cinematográfica do clássico de Graciliano Ramos.

O imigrante Johann conhece o sertanejo Ranulpho em uma de suas paragens para vender aspirinas e exibir filmes promocionais a pessoas humildes que nunca foram ao cinema. Logo o sertanejo se oferece como ajudante e o alemão aceita. O caráter de tragicomédia da obra se baseia no fato de que o estrangeiro, distante da Segunda Guerra Mundial, vê a mansidão do sertão como paraíso enquanto o brasileiro a vê como um inferno.

O calor extremo, praticamente perpetuado pela estiagem, notabiliza o mal-estar de Ranulpho, crente de que a vida num lugarejo distante da modernidade acentua sua ausência de perspectiva. Atitudes impolutas, como a do sertanejo que não sabe onde encontrar combustível porque está acostumado a ver apenas veículos de tração animal, nutrem a depreciação de Ranulpho, sujeito que usa a ironia como instrumento da própria contestação social.

No decorrer da trama, os dois começam a se entender (Foto: Divulgação)

No decorrer da trama, os protagonistas começam a se entender (Foto: Divulgação)

É interessante a forma como Marcelo Gomes aborda a linguagem regionalista e suas redundâncias. Com exceção dos dois protagonistas, muitos dos personagens, formados por gente simples, têm um vocabulário visceralmente pobre, fundamentado em monossílabos canhestros. Em contraponto, também é algo encantador e singelo porque é honesto e veraz. O próprio Ranulpho, um sonhador em paradoxo – com uma visão pessimista do sertão nordestino, tenta impressionar o alemão, porém recai nas mesmas falhas que ele tanto condena com relação àquele povo humilde.

“Aqui nem guerra chega” e “Lugar que não presta é assim, demora pra acabar”, diz Ranulpho em tom de escárnio. O brasileiro rejeita o cigarro nacional do alemão, deixando subentendido que para ele tudo que é bom precisa ser importado. Recalcitrante, o sertanejo passa boa parte do tempo depreciando seus conterrâneos. Johann, que muitas vezes escuta em silêncio os discursos do ajudante, decide se manifestar e defende que é difícil entender como Ranulpho pode criticar tanto o povo nordestino, sendo que ele faz parte daquela realidade. “Mais ou menos”, responde, sem ceder.

Entre os momentos mais bucólicos da obra estão as cenas de exibição dos comerciais de aspirina. Os espectadores ficam deslumbrados e emocionados. O cinema tão esperado pela população se resume a um vídeo projetado em uma tela de pano – a trilha sonora é baseada nas músicas que tocam no rádio do caminhão. Para eles, a experiência é tão inolvidável que ao final do filme continuam parados observando a tela de pano.

“Vai passar o filme de novo?”, questiona um rapaz empolgado. Intrigante também é a autêntica observação da moça que diz não querer ser atriz porque no filme os atores parecem pessoas infelizes tentando transparecer felicidade. No decorrer da trama, Johann e Ranulpho começam a se entender depois de passarem por muitas situações de aprendizado. No final, os dois reconhecem e aceitam as próprias diferenças e singularidades como resultado do mundo em que foram gestados.

Outro fato curioso é que a cidade natal de Ranulpho se chama Bonança, uma ironia e uma realidade. É incoerente se tratando de riquezas materiais, porém verdadeira ao pensarmos em serenidade. Em 2005, após o lançamento de Cinema, Aspirinas e Urubus, encontrei muitas críticas alegando que o filme é lento e sacal. Acredito que não se trata de uma deficiência de direção, muito pelo contrário. É um artifício de fidedignidade. O sertão é envolto em lentidão e marasmo, então nada mais justo do que transmitir isso, principalmente quando se traz referências do neorrealismo.

Written by David Arioch

March 4th, 2016 at 6:39 pm

O valor de uma promessa

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A história do homem que viaja sete léguas com uma cruz nas costas para cumprir um voto

Zé carrega a cruz em retribuição a cura do seu burro (Foto: Reprodução)

Zé carrega a cruz em retribuição a cura do seu burro (Foto: Reprodução)

Lançado em 1962, O Pagador de Promessas, do cineasta Anselmo Duarte, é um dos maiores clássicos do cinema nacional. A obra inspirada na peça de Dias Gomes conta a história de um homem do campo que viaja sete léguas (42 quilômetros) com uma cruz nas costas para pagar uma promessa.

No filme, Zé do Burro (Leonardo Villar) chega à cidade machucado pelo peso da cruz sobre o ombro, resultado de um voto que fez à Santa Bárbara para que o seu fiel companheiro, um burro, fosse curado de uma grave enfermidade. Mas o grande problema surge quando o agricultor tenta entrar na Igreja de Santa Bárbara com a cruz, sendo impedido pelo Padre Olavo (Dionísio Azevedo) ao saber que Zé fez uma promessa à santa em um terreiro de candomblé.

Tenta justificar o episódio falando que não havia nenhuma igreja ou capela próxima. Intransigente, o sacerdote não aceita a explicação de Zé e pede que o homem saia das imediações do templo. O pagador de promessas se recusa e decide ficar na frente da igreja até conseguir entrar, honrando o compromisso feito à Santa Bárbara.

Aproveitando-se da inocência do matuto homem do campo, uma infinidade de pessoas tentam se aproximar com as mais diversas intenções. Um exemplo é o inescrupuloso personagem Bonitão, um cafetão que finge ajudar Zé apenas com a intenção de conquistar Rosa, a mulher do pagador de promessas.

Outra figura digna de destaque é o jornalista interpretado por Othon Bastos que explora com sensacionalismo e inverdades a figura de Zé como um revolucionário messiânico. A repercussão da publicação atrai visitantes, líderes religiosos, patrocinadores oportunistas e até mesmo a polícia que começa a encarar o produtor rural como um contraventor e agitador social.

Filme apresenta o contraste entre símbolos religiosos europeus e africanos (Foto: Reprodução)

Filme apresenta o contraste entre símbolos religiosos europeus e africanos (Foto: Reprodução)

É trágica e cômica a cena do comerciante estrangeiro pedindo para o fotógrafo do jornal mostrar ao fundo o seu comércio enquanto em primeiro plano aparecem Zé, a cruz e Rosa. Anselmo Duarte aborda com riqueza visual e informacional a relação conturbada entre o catolicismo e as religiões afro-brasileiras, avaliadas pelo padre como “práticas demoníacas”.

A beleza de O Pagador de Promessas está na simplicidade, objetividade e linguagem canhestra do protagonista, alheio ao materialismo e malícias da modernidade. Em alguns aspectos, o filme lembra a crítica social das fases mexicana e espanhola do cineasta Luis Buñuel e também o cinema neorrealista de Pier Paolo Pasolini, principalmente a passagem da mercantilização da fé do clássico Uccellacci e Uccellini.

O pagador de promessas ostenta valores maiores que a própria vida (Foto: Reprodução)

O pagador de promessas ostenta valores maiores que a própria vida (Foto: Reprodução)

No início da obra, símbolos religiosos europeus e africanos se misturam no mesmo ambiente, evocando uma ideia de unidade da fé sustentada em amor incondicional e livre de preconceitos. Ao mesmo tempo, a percussão arcaica e dissonante da cena introduz o espectador ao caos que ainda vai ser vivido por Zé do Burro. Outra característica marcante do filme é o contraste entre o barulho e o silêncio total, além da aridez do cenário e a fotografia angustiante que em vários momentos aspira ao desconforto e ao derrotismo.

O Pagador de Promessas é uma obra antológica que apresenta um personagem ímpar com valores maiores que a própria vida. Extremamente atual, o clássico discute assuntos ainda controversos como o preconceito religioso, reforma agrária e má distribuição de renda. O elenco conta com outros grandes nomes do cinema e da TV nacional como Glória Menezes, Geraldo Del Rey, Roberto Ferreira, Norma Bengell e Antonio Pitanga.

O filme de Anselmo Duarte foi o grande vencedor do Festival de Cannes de 1962, recebendo a Palma de Ouro, título jamais conquistado por outra película brasileira. Também foi premiado em duas categorias no San Francisco International Film Festival, onde recebeu o Golden Gate, além de outras premiações no Festival de Cartagena, na Colômbia, e uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1963.

Roberto Moreira e a tradicional hipocrisia brasileira

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Filme de estreia do cineasta mostra a diferença entre olhar e enxergar a realidade

Filme é recheado de críticas sociais (Foto: Reprodução)

Filme é recheado de críticas sociais (Foto: Reprodução)

O filme Contra Todos, que marcou a estreia de Roberto Moreira como cineasta, é recheado de críticas sociais que desnudam a hipocrisia da sociedade brasileira a partir de uma caricata família de classe média baixa.

Contra Todos foi o filme brasileiro mais premiado em 2004, quando foi lançado, e não por acaso. A obra apresenta todos os elementos de uma boa história. Na periferia de São Paulo, Teodoro (Giulio Lopes), que tenta preservar uma imagem de homem religioso, interpreta um mercenário e pai de família que bate na filha Soninha (Sílvia Lourenço) e trai a mulher Cláudia (Leona Cavalli) com a companheira de culto Terezinha (Martha Meola).

Infeliz com o marido, Cláudia se relaciona com Júlio (Ismael de Araújo). Aos poucos, a verdadeira imagem da família se descortina. A situação sai de controle quando o amante de Cláudia é assassinado. Perturbada, a mulher destrói a casa e abandona tudo. Depois de fugir e se hospedar em um hotel, Cláudia conhece Lindoval (Dionísio Neto), com quem começa a namorar.

No elenco, Leona Cavalli, Giulio Lopes e Aílton Graça (Foto: Reprodução)

No elenco, Leona Cavalli, Giulio Lopes e Aílton Graça (Foto: Reprodução)

Mais uma vez, o plano de felicidade é interrompido quando Lindoval quase morre após ser espancado. Cláudia acredita que o crime é de autoria do marido. Em meio a tanta confusão, Teodoro decide se casar com Terezinha e mandar a filha morar com a avó. A história ganha outro rumo quando a religiosa recebe uma fita de vídeo do futuro marido tendo relações sexuais com a ex-mulher; Terezinha acreditava que Teodoro era solteiro.

Muitos dos acontecimentos do filme são motivados pelo malandro e persuasivo Waldomiro (Aílton Graça), amigo e confidente da família de Teodoro. Além disso, também chama atenção a busca por isenção e impessoalidade. O cineasta não interfere nos acontecimentos, se limita a apresentá-los da forma mais crua possível, deixando para o espectador a tarefa de refletir e tirar conclusões.

O autor usa recursos que corroboram o realismo da trama – como planos com a câmera na mão, evitando a plasticidade. Moreira ainda escolheu locações que fogem aos clichês da periferia paulistana. Para dar mais naturalidade às cenas, optou por um elenco que concordou em participar do filme sem ter contato com o roteiro antes do início da produção.

Meirelles e Olival lançam luz sobre “personagens invisíveis”

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DOMÉSTICAS

Filme apresenta o cotidiano das empregadas domésticas (Foto: Reprodução)

Lançado em 2001, o filme Domésticas, de Fernando Meirelles e Nando Olival, é uma comédia que nos traz à luz algo mais profundo que a comicidade. Se trata da enfática realidade de cinco empregadas domésticas que têm apenas a profissão em comum. A atividade profissional as tribaliza e as homogeneiza – desde a linguagem até os hábitos culturais. Por serem aquelas que desempenham o serviço que os abastados se negam a fazer, vivem em um universo de preconceitos, desigualdades e invisibilidade.

São dificuldades que também fazem parte do cotidiano dos motoboys, porteiros, vigias, lavadores de carros e entregadores de pizza; pessoas que compõem um mesmo mosaico social. As cinco vidas que dão sustentabilidade ao filme, ao final de cada dia, de algum modo, cedem à resignação de algum infortúnio, mas renascem pela manhã, quando a nova aurora desponta em suas vidas. Embora seja um filme de fácil compreensão, Domésticas não tem começo, meio e fim – nem se sustenta na ideia de um mundo dividido entre bem e mal.

Em referência ao realismo, a obra conta com um elenco formado por atores pouco conhecidos, o que reforça ainda mais a proposta do filme. De forma bem particularista, e até tendenciosa, Meirelles e Olival apresentam pequenos fragmentos que compõem o universo de milhões de brasileiros marginalizados. São pessoas que vemos todos os dias, mas que muitas vezes são esquecidos e condenados à insignificância por fazerem parte de uma classe social da qual se costuma desviar a câmera e a iluminação.  E assim o ciclo continua interminavelmente…

Written by David Arioch

January 7th, 2013 at 3:00 pm

Uma comédia sobre o caos e a decadência

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Filme mostra com bom humor as barreiras culturais (Foto: Reprodução)

Lançado em 1995, o filme Sábado, do cineasta Ugo Giorgetti, mostra uma equipe de publicidade ocupando em um sábado o saguão do Edifício das Américas, em São Paulo, para a realização de um comercial. Logo no início, o elevador do prédio para de funcionar, surgindo uma série de incidentes que se correlacionam. Os fatos tornam-se alegoria do caos paulistano. Por meio das confusões vivenciadas pelos personagens no interior do prédio, o diretor explora o antagonismo.

Giorgetti também destaca o preconceito e a barreira cultural entre pessoas que compõem a sociedade visível, de significativo poder aquisitivo – personificada pelos funcionários empenhados na realização do comercial, e a invisível – representada pelos personagens marginalizados, naquele contexto, moradores de um edifício que um dia foi símbolo de luxo e mais tarde tornou-se ícone da decadência.

O filme conta com um elenco formado por Otávio Augusto, Maria Padilha, Tom Zé, Giulia Gam, André Abujamra, Jô Soares, Renato Consorte, MAriana Lima, Gianni Ratto, Wandi Doratiotto, Sérgio Viotti e Cláudio Mamberti. Ao longo de 40 anos de carreira, Ugo Giorgetti, que costuma atuar como diretor e roteirista, já produziu 12 filmes. A primeira obra do cineasta foi Bairro dos Campos Elíseos, lançada em 1973. Já Cara ou Coroa, de 2012, é o trabalho mais recente.

Written by David Arioch

January 7th, 2013 at 2:32 pm

Crime e Castigo à brasileira

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Heitor Dhalia e a interpretação moderna da obra de Dostoiévski

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FIlme apresenta um mundo obscurantista e psicodélico (Foto: Reprodução)

Lançado em 2004, Nina foi o filme de estreia do cineasta Heitor Dhalia. A história, que se desenrola a partir da difícil condição psicológica e emocional de uma jovem mulher, é uma livre interpretação moderna da obra literária Crime e Castigo, do existencialista russo Fiódor Dostoiévski.

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Nina é humilhada o tempo todo por Dona Eulália (Foto: Reprodução)

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A protagonista mantém apenas relações superficiais e efêmeras (Foto: Reprodução)

Nina (Guta Stresser) é uma moça que vive em um mundo obscurantista e psicodélico, onde o convívio social se resume à exaltação de emoções efêmeras e superficiais. Ciente de sua condição, se mantém viva por meio da interiorização e do ato de desenhar, atividade explorada por Dhalia com a intenção de evidenciar a sensibilidade da personagem e despertar reações. Há uma clara referência ao expressionismo alemão e ao gekiga.

Do início ao fim, o filme ressalta as negatividades que a modernidade impõe aos humanos extraordinários através dos ordinários, usurpando-lhes a vivacidade. Como consequência, surge uma solidão avassaladora, envolta por uma redoma de sentimentos como humilhação e ausência de autoestima. Tudo isso se soma a uma austera descrença na humanidade.

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Eulália personifica as imperfeições do mundo contemporâneo (Foto: Reprodução)

A personagem principal, uma versão brasileira à imagem de Rodion Românovitch Raskólnikov, protagonista do romance russo Crime e Castigo, se aproxima da sociedade apenas em momentos de embriaguez ou sob efeito de alucinógenos. Aí se materializa o mundo eletrônico, falsamente colorido, onde as dores da alma encontram refúgio em uma artificial luz de néon. É uma plasticidade que representa fuga e reforça a negação da natureza.

A história tem momentos perturbadores, como nas cenas em que a fragilizada Nina, mesmo calada, admite a si mesma a intemperança emocional, o incólume desejo de matar ou se autodestruir. São situações trazidas à tona, na maior parte do tempo, pela antagonista Dona Eulália (Myrian Muniz), de quem a protagonista é inquilina e por isso se submete a muitas humilhações.

A idosa mesquinha, uma versão 2004 da odiosa usurária Aliena Ivánovna, de Dostoiévski, personifica não apenas as imperfeições do mundo contemporâneo, como a imoralidade do capitalismo selvagem ou as injustiças da sociedade de consumo, mas também valores retrógrados como o despotismo.

Com a primazia de uma estética cinematográfica revolucionária, que materializa emoções a partir de peculiares transformações de cenário e cinegrafia dissonante, Dhalia estreou como cineasta ofertando um inesquecível registro sobre um câncer invisível; doença que reside na existência humana, mas não pode ser aniquilada em uma mesa de cirurgia, nem mesmo tratada com quimioterapia ou radioterapia.

Além das excelentes interpretações de Guta Stresser e da memorável Myrian Muniz, Nina ainda conta com a participação de um grande elenco formado por Milhem Cortez, Abrahão Farc, Juliana Galdino, Heitor Goldflus, Ailton Graça, Sabrina Greve, Luiza Marini, Altamiro Martins, Selton Mello, Wagner Moura, Lázaro Ramos, Matheus Nachtergaele, Walter Portela, Renata Sorrah, Eduardo Semerjian, Nivaldo Todaro e Guilherme Weber. A trilha sonora é do renomado compositor Antonio Pinto, filho do famoso cartunista Ziraldo, que já compôs para mais de 30 filmes, entre obras brasileiras e até hollywoodianas.

Deus e o diabo no sertão

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Glauber Rocha conta a história de dois nativos da exclusão social

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Deus e o Diabo na Terra do Sol consagrou Glauber Rocha como expoente do Cinema Novo (Foto: Reprodução)

Lançado em 1964, Deus e o Diabo na Terra do Sol é o filme que consagrou Glauber Rocha como um dos expoentes do Cinema Novo. No clássico, um casal vivendo em condição de miséria, vagando sob o sol escaldante da caatinga, torna-se incapaz de distinguir entre Deus e o diabo.

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Manoel e Rosa se tornam discípulos de um falso profeta (Foto: Reprodução)

Nascidos sob o estigma da pobreza, Manoel (Geraldo Del Rey) e Rosa (Yoná Magalhães) são dois nativos da exclusão social que se tornam intolerantes com a própria realidade. Logo no início do filme, Manoel é encarregado de comprar algumas cabeças de gado; o trato é que o fazendeiro partilhe o lucro das vendas.

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Na história, o casal também segue o cangaceiro Corisco (Foto: Reprodução)

Por azar, mais da metade dos bovinos morre antes de chegar ao destino. Na hora do pagamento, o patrão afirma que não dará nada ao empregado, já que o gado morto, segundo o fazendeiro, pertencia a Manoel. Encolerizado com o desvio de caráter do latifundiário, o rapaz o mata. A cena representa a vitória do escravo do campo sobre o coronelismo.

Com medo, o casal foge e abandona tudo, não apenas pelo temor de serem presos, mas também porque começam a acreditar que a honestidade não vale a pena. Na fuga, a dupla conhece o profeta Sebastião (Lídio Silva), uma falsa personificação messiânica. Sem rumo e desesperados, decidem segui-lo.

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Antonio das Mortes sela o destino da dupla (Foto: Reprodução)

Mesmo com um grande poder de persuasão diante de uma legião de miseráveis e ignorantes, o líder religioso mostra a verdadeira face quando tenta sacrificar uma criança. Rosa impede Sebastião e em seguida o mata. Fica claro o quão tênue é a linha entre o fanatismo religioso e a barbárie motivada pela insanidade.

A experiência contribui para a destruição dos poucos valores que o casal ainda preservava. Honestidade e espiritualidade se esvaem em detrimento da obtusa condição existencial dos personagens. Novamente sozinhos, e cercados pela imensidão desértica, encontram o cangaceiro Corisco (Othon Bastos), um cético justiceiro que, sem grandes esperanças na humanidade, atribui aos burgueses as desgraças vividas pelo povo.

Frio, impiedoso e violento, o fora-da-lei representa o diabo, em uma subjetiva idealização do cineasta. Quando Corisco é assassinado pelo mercenário Antonio das Mortes (Maurício do Valle), Manoel e Rosa se interiorizam ainda mais, crentes de que com a morte simbólica de Deus e do diabo só resta acreditar no homem, na possibilidade de que um dia ele encontre a si mesmo.

Embora pouco valorizado no Brasil, o filme de Glauber Rocha é cultuado em muitos países, principalmente na França e nos Estados Unidos, onde figura entre as obras preferidas de cineastas como Martin Scorsese e Quentin Tarantino. Amigo do cineasta brasileiro, com quem teve contato pela última vez em 1980, Scorsese considera a filmografia de Rocha uma das três mais importantes em sua formação cinematográfica.