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Dick Gregory: “Galinhas, peixes, porcos e vacas sentem dor, assim como eu e você. Por favor, ajude a acabar com essa injustiça”
Comediante e ativista pelos direitos civis e pelos direitos animais, Dick Gregory começou a ganhar fama nos Estados Unidos no início dos anos 1960 com o seu stand-up livre de tabus. Protestou contra a Guerra do Vietnã e participou de todas as manifestações lideradas pelo reverendo Martin Luther King Jr, incluindo a Marcha Sobre Washington e as Marchas de Selma a Montgomery. Sempre que considerava necessário, Gregory fazia greve de fome para chamar a atenção para alguma causa. Também foi preso inúmeras vezes em protestos.
No artigo “The Circus: “Its Modern Slavery”, de 1998, que faz críticas contundentes à exploração animal, Gregory conta que quando trabalhou com Luther King Jr., ele percebeu que o melhor caminho para se alcançar a justiça é por meios pacíficos: “Sob liderança do Dr. King, me tornei totalmente comprometido com a não violência, e fui convencido que a não violência vai na contramão de qualquer tipo de morte. Acredito que o mandamento ‘Não Matarás’, não diz respeito apenas aos seres humanos em relação à guerra, linchamento, assassinato, mas também aos animais que matamos por comida e esporte. Há passos simples que cada um de nós pode seguir para ajudar a acabar com a exploração de outros seres.”
Nascido em St. Louis, no Missouri, em 12 de outubro de 1932, e falecido em 19 de agosto de 2017 em Washington D.C., Gregory foi um artista muito respeitado no cenário da comédia dos Estados Unidos, chegando a influenciar comediantes como Richard Pryor e Eddie Murphy. Nos anos 1950, quando se apresentava em clubes de comédia de Chicago, ele já se esforçava para tentar diminuir o preconceito e a segregação racial por meio de seus shows.
Em 20 de agosto de 2017, um dia após a sua morte, a Peta publicou um artigo intitulado “Dick Gregory: Animals and humans suffer and die alike”, que fala sobre o empenho do comediante em conscientizar as pessoas sobre a realidade da exploração animal. “Galinhas, peixes, porcos e vacas sentem dor, assim como eu e você. Por favor, ajude a acabar com essa injustiça”, declarou Gregory em uma das citações.
Em uma das campanhas da Peta criticando a KFC, o comediante fala sobre o sofrimento dos animais mortos para rechearem os baldes de frango da rede de fast food. Suas críticas envolvendo exploração animal incluíam desde a debicagem de aves até o desmame forçado estimulado pela indústria de laticínios. “Animais e seres humanos sofrem igualmente. A violência causa a mesma dor, o mesmo derramamento de sangue, o mesmo fedor de morte, a mesma arrogante, cruel e brutal usurpação da vida. Não precisamos fazer parte disso”, defendeu no artigo “The Circus: It’s Modern slavery”, publicado no Marin Independent Journal em 28 de abril de 1998.
No artigo, Dick Gregory também declarou que quando via os animais cativos em circos, logo pensava na escravidão, levando em conta que são enjaulados, presos a grilhões e forçados a trabalharem sob a ordem de um chefe. “Eles nunca têm o gosto da liberdade. Vão da jaula ao picadeiro, e do picadeiro à jaula. Viajam milhares de milhas a cada temporada, o que significa longas horas em vagões ou trailers, sem espaço para se esticar e menos ainda para correr. Não importa o que digam, não há como persuadir um elefante a dançar e um tigre a saltar através de aros sem qualquer tipo de punição ou violência: “Instrutores carregam chicotes, ferramentas afiadas usadas para atingir pontos sensíveis.”
O comediante se recordou da morte de dois animais que excursionavam com o Ringling Bros. and Barnum & Bailey Circus nos Estados Unidos. Um bebê elefante de três anos chamado Kenny, mesmo doente, foi forçado a fazer três shows em um dia. Ao final da terceira apresentação, ele deitou e morreu: “Ele viveria com sua mãe na natureza selvagem por pelo menos 15 anos. Em outra situação, usaram um tigre em uma foto publicitária do Ringling Brothers. Quando o animal atacou um dos treinadores, o outro treinador entrou em cena, o devolveu à jaula, pegou uma arma de fogo e o matou a tiros”, relatou Gregory chocado com a crueldade do homem. Os dois episódios seriam facilmente evitados se os animais não tivessem sido privados de seu habitat.
No artigo “Dick Gregory, 50 years a vegan activist dies at 84”, publicado no Animals 24-7 em 25 de agosto de 2017, Merritt Clifton conta que Dick Gregory abandonou o consumo de carne em 1965 e se tornou um frutariano em 1967. “A sua participação no movimento dos direitos civis extinguiu o apetite de Gregory por carne. Ele começou a reconhecer a relação entre a violência contra seres humanos e a violência contra animais não humanos”, escreveu. Mais tarde, o comediante acabou influenciando Dexter Scott King, o segundo filho de Martin Luther King, a tornar-se vegano, e consequentemente Dexter teve influência sobre a mãe Coretta Scott King que viveu os seus últimos 12 anos de vida como vegana.
Em 1973, Gregory publicou o livro “Natural Diets for Folks Who Like to Eat: Cookin’ With Mother Nature”, que de forma bem-humorada apresenta os benefícios da alimentação vegetariana. A obra foi relançada várias vezes e se tornou um best-seller em sua categoria. Outra curiosidade é que em 1975 o comediante participou do 23º Congresso Vegetariano Mundial, realizado pela Organização Vegetariana Internacional (IVU).
“Comediante, ativista dos direitos animais, pacifista, vegetariano e defensor da alimentação natural, Dick Gregory deu aos participantes um testemunho de seu ponto de vista em todos esses campos de atividades”, segundo informações da IVU. Naquele ano, Dick Gregory ajudou a angariar recursos para combater a fome nas Ilhas Britânicas com comida vegetariana.
Referências
https://ivu.org/congress/wvc75/gregory.html
http://www.newsweek.com/dick-gregory-heres-what-you-need-know-about-pioneering-comedian-and-civil-652431
O poder de identificação de Louie
Série de Louie C.K. surpreende ao mostrar um comediante como uma pessoa comum
Há três anos, eu estava procurando uma nova série de comédia e me surpreendi com o que encontrei. Quando li a sinopse pela primeira vez, admito que hesitei, até porque hoje em dia é difícil pensar logo de cara em originalidade ou criatividade quando falamos sobre sitcoms protagonizadas por comediantes de stand up. Ainda mais se você passou a adolescência assistindo séries como Seinfeld, The Cosby Show, The Bob Newhart Show, Home Improvement, Roseanne e só pra citar um exemplo até recente – Everybody Loves Raymond. São programas feitos por artistas que marcaram a história da TV norte-americana ao migrarem das casas de shows para as comédias de situação.
Fizeram a diferença, incrementaram e foram copiados até mesmo por comediantes brasileiros que só não admitem isso porque sabem que a maior parte da população brasileira desconhece esses programas. Mas voltando ao principal, a série que me chamou a atenção é Louie, sobre o estilo de vida e o cotidiano de um comediante de quem eu jamais tinha ouvido falar até 2011. Acho que passei cerca de três meses adiando até o dia de assistir ao primeiro episódio.
Me arrependi de não ter assistido antes. A abreviação do nome do comediante, Louis C.K., é uma brincadeira com o sobrenome húngaro Székely que em português significa guarda da fronteira. É uma palavra até curiosa se levar em conta que Louie, como é mais conhecido, é um estadunidense de origem mexicana com um sobrenome magyar. Além de protagonizar a série lançada em 2010, C.K. é o criador, roteirista e diretor desse programa que se tornou uma das melhores aquisições do canal FX dos últimos anos.
Quando comecei a assistir a primeira temporada da série em 2011, um ano após o lançamento, o primeiro elemento que me chamou a atenção foi a estrutura de obra audiovisual independente e intimista. É interessante ver uma abertura de série em que o protagonista passa despercebido pelas ruas de Nova York, a meca do stand up comedy, em direção a uma pequena casa de shows, um ambiente que moldou e transformou Louie em quem ele é hoje.
O programa foge da glamourização e realça fatos pouco conhecidos sobre o vasto universo do stand up comedy nos Estados Unidos. Usa a ironia para instigar risos e reflexões sobre uma parcela da realidade do universo do entretenimento norte-americano. Na série, Louie não é celebrado como um comediante de sucesso. Muito pelo contrário. Também é um sujeito reservado e bem solitário quando não está acompanhado das duas filhas.
Há situações em que nem mesmo é respeitado. Por um lado, é uma forma de entrar em concordância com uma proposta peculiar de humor negro e satirização. Por outro, evidencia com certa pessoalidade as dificuldades vividas por centenas de comediantes que apenas lutam para se manter na ativa, sobreviver e garantir o sustento familiar.
S.K. é alvo das suas próprias piadas e das casualidades do cotidiano. Exemplos são os momentos em que é sacaneado por adolescentes e até por prestadores de serviços do prédio onde mora. Quem assiste Louie, percebe que o humor e o riso estão acima de tudo; são prioritários. Se necessário, o autor é capaz de desconstruir a própria imagem para surpreender o público, até porque o ser humano, independente de qualquer coisa, é suscetível à metamorfose. No programa, Louie C.K. se coloca numa posição de homem comum que simplesmente tem como diferencial o fato de ter escolhido trabalhar com a comédia. Tanto que assim como em qualquer profissão vive situações em que é enganado e passado para trás pelas pessoas com quem se relaciona, inclusive colegas de trabalho.
Logo na primeira temporada, Louie brinca que trilhou esse caminho porque provavelmente não saberia fazer outra coisa da vida. A hipocrisia é um tema recorrente nas piadas do comediante e agrada porque não recai na obviedade. Quando decide ser mais crítico e ácido, se volta para as consequências do capitalismo, hipermodernidade, excessos de urbanização, fobias sociais, paroxismos, estereótipos, falhas do american way of life, xenofobia e preconceito contra imigrantes e minorias étnicas. Aborda com criatividade singular a indiferença, apatia, ausência de sensibilidade e de solidariedade.
Em menos de 23 minutos, e ao melhor estilo single-camera, Louie consegue fazer o espectador viajar por situações corriqueiras e insólitas que o fazem rir e refletir sobre as mais simples e imprevisíveis razões. Em uma das cenas de um episódio, o protagonista brinca com a inevitabilidade de envelhecer ao citar um aniversário em que confundiu a própria idade. Em outra, explora uma situação de intimidade com uma garota que tinha fetiche por homens velhos. Para o comediante, não há matéria-prima mais rica do que a própria condição existencial e as experiências do cotidiano.
Na série, o ato de fazer piada de si mesmo não tem uma conotação pejorativa, desrespeitosa ou apelativa. Na realidade, revela uma certa maturidade e até capacidade de aceitação. Quem o faz com sabedoria demonstra autoconhecimento e mais flexibilidade para encarar as dificuldades cotidianas, principalmente se tratando de relações sociais, sejam casuais ou não.
Até uma desconfortável dor nas costas entra para o script de uma cena em que a realidade flerta com o seu potencial inventivo. A situação faz rir porque explora uma perspectiva fantasiosa de um diálogo entre médico e paciente. Na ocasião, o comediante busca amenizar o seu problema. Em vez de apresentar uma solução plausível, o médico diz que o jeito é Louie começar a se locomover na horizontal, já que o homem não foi feito para andar em pé. Cenas como essa fazem parte de uma proposta de humor surreal, baseado na imprevisibilidade. A intenção é subverter as expectativas do público.
Outro exemplo pode ser visto nos minutos iniciais de Back, o primeiro episódio da quarta temporada, iniciada no dia 5 de maio, em que garis passam em frente ao prédio do comediante recolhendo o lixo. Louie não consegue dormir com o barulho. Para piorar, o nível de desconforto sofre uma gradação acelerada. Assim o autor e protagonista explora uma situação de identificação. Ou seja, qualquer espectador já deve ter vivido um momento em que queria dormir, mas o barulho nas imediações era tão incômodo que se tornava cada vez mais extenuante com o passar do tempo.
Louie usa o humor surreal como intensificador. Logo os lixeiros começam a arremessar as latas de lixo e também a batê-las no chão. Quando o espectador pensa que aquele é o ápice da cena, ele é surpreendido de novo. Dessa vez, com a imagem dos garis chutando a janela do comediante, que não fica nos andares mais baixos do edifício, recolhendo objetos do seu quarto, batendo lata e pulando em sua cama. A ideia é materializar a sensação de perturbação através do surrealismo. Afinal, quem nunca pensou em algo como: “Putz, que barulheira! Parece até que estão aqui no quarto comigo!”
A graça está no fato de que Louie C.K. não se coloca numa posição de comediante de aceitação universal, o que deixa tudo mais engraçado. No episódio Model, da quarta temporada, ele é convidado por Jerry Seinfeld, que também aparece na terceira temporada, para fazer uma breve apresentação em um evento beneficente. Em vez de tentar agradar a um público formado por multimilionários, ele faz piada deles, arrancando risos apenas de uma mulher da plateia. Surge uma situação tão desconfortável quanto cômica.
Louie é tão leve quanto denso, reflexo da sua formação heterogênea como um comediante que além de voyeurista por natureza não esconde suas influências que incluem George Carlin, Richard Pryor, Bill Cosby, Steve Martin, Robert Downey e Jerry Seinfeld. Como a maior riqueza do programa são os diálogos, fica impossível não notar as referências a Woody Allen, o que também se estende à qualidade estética minimalista e trilha sonora, já que tanto o cineasta quanto o comediante partilham do mesmo amor pelo jazz, um recurso que reforça o simbolismo nova-iorquino.