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A mudança de Nelson
Em fevereiro, contei a história de Nelson Ferreira Filho, um ex-construtor da Vila Alta, na periferia de Paranavaí, que se entregou ao álcool e ao crack. À época, consegui uma vaga pra ele em uma das melhores clínicas de reabilitação do Norte do Paraná. No dia em que planejei buscá-lo, ele desistiu, não quis mais saber do internamento. Fiquei desapontado e preocupado com o seu futuro. Mas algo incrível aconteceu.
Hoje, fui até a Vila Alta e o reencontrei. Conversamos um pouco, inclusive com outras testemunhas, e ele me relatou que abandonou o álcool e o crack. Nelson estava sóbrio e bem animado, tanto que voltou a trabalhar depois de anos. Me surpreendi tanto que quero fazer um pedido.
Se você ver o Nelson na rua, se aproxime, fale que conhece sua história, dê um aperto de mão e diga algumas palavras de incentivo, nem que seja um simples “parabéns”. Quem puder, faça uma doação em ferro e materiais recicláveis. A motivação agora é o melhor caminho para evitar que ele tenha algum tipo de recaída. Acredito que há uma grande chance dele se livrar do vício de uma vez por todas.
Seis meses vendendo crack e morando na zona
“Tinha cara que nem ia na zona pra transar. Só queria a mulherada em volta e fumando com ele”
Dantão conheceu a zona por causa de uma mulher. Ela chegou um dia na sua casa na Vila Alta, na periferia de Paranavaí, e o encontrou dormindo depois de cheirar meio litro de cola de sapateiro. Sem ocupação, sem dinheiro e vivendo na miséria, não pensou duas vezes antes de reunir os “trapos” dentro de uma sacola e partir para uma casa de prostituição que funcionava em uma chácara no Jardim São Jorge.Ainda “noiado”, não tinha certeza de onde estava ou o que faria. Apelidado de Monstrão, foi colocado para trabalhar na portaria do bordel. Ganhava R$ 25 por noite e se tornou o xodó da mulherada com seu jeito remansoso e paradoxalmente enérgico de impedir conflitos entre desordeiros. “Eu não era casado, nem nada. Me sentia em casa morando na zona com aquela mulherada avulsa. Se tivesse striptease, eu chegava junto pra não deixar os folgados tocarem nas moças”, conta.
A dona da casa gostou tanto de Dantão que permitiu que ele trouxesse o que quisesse da velha moradia. Depois da meia-noite “trombava” com advogados, juízes, promotores, políticos, médicos e empresários. “Era tudo da alta sociedade. Até dono de usina, agroindustrial. Eu começava às 19h e ia até 7h, 8h da manhã”, afirma. Em dia de grande movimentação, a casa disponibilizava de 25 a 30 moças com faixa etária de 18 a 30 anos. “A maioria dizia que vivia naquela vida porque não conhecia outra coisa. Uma me falou que não via a hora de arrumar um homem sério pra cuidar dela e dos filhos”, relata.
Algumas moças sofriam de depressão e choravam alegando que não aguentavam mais viver se prostituindo. “Dava dó. E eu entendia isso porque sei o que é não ter oportunidade. Quem vem de baixo normalmente passa a vida vendo os outros virando as costas pra você”, declara. Quando havia discussão por causa de mulher, o rapaz entrava no meio e discursava: “Quem tem mais dinheiro fica com a moça. O nome daqui é zona, então leva quem tem mais.”
Após dois meses no prostíbulo, Dantão foi abordado por um traficante. A princípio não quis se envolver, até que o homem o convidou para fumar crack e sugeriu que ele vendesse algumas pedras só para “sentir o gosto da coisa”. Depois de uma nova conversa foi convencido a entrar no negócio.
“A cada cinco pedras vendidas [ao custo de R$ 5 por unidade], o lucro de três pode ficar pra você”, prometeu. Empolgado, Dantão pegava 200 e até 300 pedras nos dias de grande demanda. “Eu só vivia lá dentro. Nunca saía pra nada. Rapidinho fiquei famoso entre os frequentadores da zona que buscavam mais do que sexo. Era tudo nego do dinheiro. Numa noite um dono de usina chegou com R$ 5 mil e foi embora liso”, narra.
No entanto, conforme as vendas aumentavam, a parcela de lucro de Dantão seguia na contramão, caindo. “Arrastava até três mil reais numa noite e o patrão ficava com quase tudo. Pra mim sobrava uns R$ 500, R$ 600. Mas é sempre assim. Patrão não se mata, quem se mata são os laranjas e os mulas. Ele só administra e manda. Quem se fode e corre risco é você”, desabafa.
Para piorar, Dantão conheceu uma loira e ex-detenta que veio de outra cidade para trabalhar na zona. Os dois se envolveram e o rapaz acabou viciado em crack. “Comecei a fumar pedra direto com ela, toda noite. Ela sempre queria fumar com os clientes, até que um dia foi embora e nunca mais a vi”, enfatiza.
Ao longo de oito meses morando na zona e seis meses comercializando crack, Dantão perdeu as contas de quantos homens chegaram pedindo 50 a 60 pedras de crack para fumarem nos quartos. “Tinha cara que nem ia na zona pra transar. Só queria a mulherada em volta e fumando com ele, até porque a pedra corta o tesão do homem. Lembro de um magnata aí pra quem servi 100 pedras numa noite. Ele fumou tudo com algumas moças. E elas não podiam recusar porque mulher na zona acaba tendo que se submeter a tudo”, revela o rapaz que se afastou das drogas e hoje trabalha como servente de pedreiro.
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Nelson desiste do internamento
Uma notícia que considero válida repassar para quem leu a minha reportagem sobre a história do pedreiro Nelson Ferreira Filho que atualmente é alcoólatra e usuário de crack. A própria reportagem deixa claro o desejo que ele tinha de se livrar do vício. Sensibilizado com a situação dele, consegui uma vaga para ele em uma clínica de Rolândia, uma das melhores do Norte do Paraná. Inclusive agendei uma entrevista na clínica para a próxima terça-feira.
Como assumi esse compromisso, eu o levaria lá e o acompanharia até ele ser internado. Porém, embora tivesse concordado com tudo, Nelson me avisou agora, depois de tudo acertado, que não quer mais saber de ser internado – uma mudança repentina e inesperada. É uma pena, mas reconheço também que esse é um reflexo da realidade que vivemos. Infelizmente nem todos se esforçam o suficiente para mudar de vida. Resta apenas torcer para que ele consiga sair dessa da forma que ele achar mais viável.
Reportagem: //davidarioch.com/2016/02/10/a-dura-realidade-de-nelson/
A dura realidade de Nelson
Entregue ao vício, pedreiro sonha em se livrar do álcool e do crack
Nelson Ferreira Filho tinha dez anos quando viu a mãe ir embora para nunca mais voltar. Inconformado, seu pai começou a beber pinga todos os dias. “Ele comprava pra tomar no fim da tarde. Só que não percebeu que eu também me sentia abandonado. Então quando ele ia trabalhar eu bebia o litro de pinga inteiro sozinho. Meu pai ficava bravo comigo e eu com ele porque minha mãe sumiu”, narra.
Mais tarde, Nelson conseguiu se afastar do alcoolismo. Porém, retornou ao antigo vício quando a esposa deixou claro que queria a separação. “É a mãe de um de meus filhos. Quando a perdi há 15 anos, mergulhei no álcool de uma maneira que você nem imagina”, admite. Quem o conhece de longa data, relata com pesar a degradação de Ferreira Filho.
No auge da profissão, acostumado a circular pelas ruas da Vila Alta, na periferia de Paranavaí, com motocicletas caras, o pedreiro Nelson chegou a ter quatro casas, dois terrenos e uma boa grana na poupança. “Sou pedreiro bom, tenho tanta ferramenta que a maioria nem sabe para que serve. Trabalhei no ramo por quase 25 anos. Eu era o cara da Vila Alta, o pessoal me via como exemplo de sucesso. Tinha vida boa e gostava de ajudar todo mundo”, garante enquanto chora.
Há sete anos, quando perdeu outra esposa, Nelson encontrou na rua um garoto oferecendo “um negócio de fumar”. “Era crack. Me acostumei com a droga e vendi dois terrenos. Gastei tudo comprando pedra. Rapaz, já fumei até mil reais numa noite. Depois vendi minhas ferramentas de trabalho pra comprar droga”, revela.
Chegou a não se importar mais em ser flagrado fumando crack. Às vezes o desespero de Nelson era tão grande que ele invadia terrenos baldios e matagais para fumar pedra. “Eu fumava muito com um colega. Um cara levava todo dia 50 gramas na casa dele e a gente alucinava. Graças a Deus, ele se livrou da droga. Fico feliz por aquele cara. Ele não vem mais pra cá. Não gosta nem de lembrar. Só o encontro lá pra cima da Vila Operária”, assegura chorando.
A situação de Nelson piorou nos últimos cinco anos, quando se entregou completamente ao alcoolismo. Hoje em dia, o pedreiro acorda às 5h para beber. “A minha vida é essa. Bebo o dia todo se deixar. Tomo fácil dois litros de pinga, então quando quero cortar os efeitos do álcool eu fumo uma pedra de crack. Esta semana fumei quatro, mas o lance é que só fumo quando bebo. Se eu não bebo, eu não uso droga”, confidencia.
Por mês, Ferreira Filho gasta em média R$ 400 em dois bares onde compra pinga. Como a garrafa custa R$ 10, o acesso é fácil. “Muitas vezes o cara ‘tomba’ antes de terminar a garrafa, por isso não é difícil virar alcoólatra. Agora pra quem usa droga, R$ 10 não é nada. Outra facilidade é que toda hora tem gente te oferecendo bebida de graça. O povo bate até na porta de casa pra acordar pra beber. E se não tiver dinheiro, é só vender as coisas pra comprar o ‘goró’”, informa.
As muitas lembranças de Nelson na casa onde viveu com a família o motivou a sair de lá para morar em uma residência alugada. No local, há apenas duas camas, um fogão e uma geladeira. “Lembro de tudo que fiz de errado na minha vida. Seis mulheres que tive moraram lá, além dos meus filhos. E como eu já vivia sozinho, eu quis sair. Hoje fico por aí, pelas ruas. Quando caio bêbado em algum lugar, sempre tem alguém que me puxa pelos braços, me arrasta e me deixa em casa”, destaca.
O estado do pedreiro é tão grave que ele não consegue dormir quando não bebe. O consumo constante de álcool o obrigou a interromper o uso do sedativo Diazepam porque a combinação poderia ser desastrosa. “Já bebi e tomei remédio ao mesmo tempo e me deu um branco daqueles. Fiquei com medo de não acordar mais. Passa muita coisa pela minha cabeça. Quero ver meus netos crescendo. Esses dias uma nora trouxe um pra eu ver. Eu estava sentado em frente ao portão. Amo todos eles”, afirma.
Nelson diz que se sente mal pelo sofrimento que causou à família, sonha em se livrar do vício e em viver novamente com a esposa. “É muito amor. Preciso me curar. Tenho cinco filhos. Três são casados e dois são pequenos”, enfatiza sorrindo e enxugando as lágrimas do rosto.
Ouvia gente cochichando no quintal e corria com foice ou facão
Morador da Vila Alta desde 1986, Nelson Ferreira Filho se orgulha da profissão de pedreiro e também de ter trabalhado como segurança de prefeito. No entanto, quando fala do presente reconhece que a única solução para se livrar do alcoolismo, vício que inclusive o motiva a usar drogas, é o internamento em uma clínica de reabilitação. “Preciso de uma psicóloga pra trabalhar na minha cabeça. Sou explosivo e não quero mais essa vida. Fico perigoso e violento quando bebo demais”, confessa.
Sofrendo de ansiedade e depressão há anos, não se esquece do dia em que subiu na moto e foi a Alto Paraná [a 20 quilômetros de Paranavaí] à toa quatro vezes consecutivas. “Fiz isso na ‘noia’, na ‘pira’. Achei que se ficasse parado iria enlouquecer. Já fiz coisa mais estranha ainda. O crack me dá alucinação, coisa do diabo. Direto eu ouvia gente cochichando no quintal, daí eu corria em volta da casa com foice ou facão e via que não tinha ninguém. Quando decidi parar com a droga, a minha mulher já tinha ido embora. Há pouco tempo mesmo tive alucinação e fiquei três dias sem dormir”, conta Nelson que é aposentado por invalidez.
Apesar dos problemas com o alcoolismo, Ferreira Filho deixa claro que não tem coragem de ir atrás da família porque tem vergonha da própria situação. “Você tem poucos amigos quando bebe e usa droga. Quase todo mundo se afasta de você. Não me considero mais dependente químico porque chego a ficar até meses sem usar crack”, argumenta e lembra que está devendo R$ 40 reais em uma boca de fumo.
Dois encontros com a morte
Há 20 anos, antes de ser demitido de uma construtora, o pedreiro Nelson Ferreira Filho trabalhou até a noite em uma obra. No dia seguinte, discutiu com o patrão por causa da demissão. Bastante irritado, foi até um bar, comprou uma garrafa de pinga e bebeu tudo sozinho. Depois subiu na moto e dirigiu até as imediações da Serpavi, atual Secretaria Municipal de Infraestrutura, onde foi atropelado por um caminhão da prefeitura que atravessou a preferencial.
“O motorista sumiu de Paranavaí com medo de mim. Não vi nada depois da pancada. Tive uma fratura exposta tão grave que o médico queria amputar minha perna. Aí implorei pra ele não cortar. Fizeram uma gambiarra lá e não perdi a perna, só que ela não levanta mais. Ando mancando, puxando a perna”, relata e exibe uma grande cicatriz que começa no pé e termina quase no joelho. Além disso, perdeu os movimentos de um braço.
O que também afetou muito o estado psicológico e emocional de Ferreira Filho foi a declaração do juiz durante uma audiência para conseguir a aposentadoria por invalidez. “Ele disse que eu não tinha como provar que era inválido. Eu nem andava na época, pra você ter uma ideia. E mesmo assim o juiz falou isso. Quando chove, não consigo caminhar. A outra perna tá boa”, pontua.
O acidente foi o segundo encontro do pedreiro com a morte. O primeiro aconteceu quando ele tinha 20 anos e estava trabalhando como lenhador. Nelson era um dos sete passageiros de um caminhão que retornava de Nova Olímpia, na região de Umuarama, também no Noroeste do Paraná. Antes que o motorista percebesse, o veículo ficou sem freio no trevo perto de Cianorte. “Até uma criança, filho do motorista, estava com a gente. O caminhão foi parar no canavial. Ainda bem que ninguém morreu. Quando saí do hospital, falaram que não sobrou nada do caminhão. Aquele dia foi Deus que abençoou”, comenta.
Frase de Nelson Ferreira Filho
“Tive uma esposa que foi morta na mesa de cirurgia por um médico daqui de Paranavaí. Hoje ele continua trabalhando como se nada tivesse acontecido.”
Lelinho: usuário de drogas, ladrão e possível aidético
Rapaz se tornou refém do narcotráfico com 12 anos e hoje não pode sair às ruas quando quer
Ao longo dos anos, vi muitas vezes na Vila Alta, na periferia de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, um garoto magricela de estatura mediana com as pupilas dilatadas, olhar sempre desconfiado, cabelos desgrenhados, rosto relativamente sujo e pés encardidos, que há muito tempo não recebem outro calçado que não seja um velho par de chinelos surrados. Para preservar sua identidade, o chamo de Lelinho. Hoje, com 18 anos, não gosta de ser observado, apesar de não reclamar, mas há muito tempo deixou de ser sociável. A forma como percorre as ruas do bairro em horários estratégicos denuncia que é procurado por integrantes de uma facção criminosa. Usuário de drogas, Lelinho está devendo, só que nem a camaradagem dos tempos de “laranja” do narcotráfico é capaz de garantir a sua integridade física. De vez em quando chega em casa todo machucado, com hematomas dos pés à cabeça.
Por enquanto o jovem está autorizado a viver. Até quando? Ninguém sabe. Já recebeu inúmeras visitas de homens armados avisando que qualquer dia a dívida vai ser cobrada com muito sangue. Refém do vício em crack, Lelinho já invadiu muitas casas para furtar fiação elétrica. Dava preferência por residências com placas de “aluga-se”. Quando os espólios eram insuficientes para sustentar o vício, apelava aos mais próximos. Chegou a furtar uma coleção de calcinhas novas de uma tia. Também vendeu o chuveiro de casa, as galinhas da avó e as ferramentas de ferraria e marcenaria do pai e do avô. Em síntese, “tudo virava pedra”.
Durante algum tempo trabalhou recolhendo produtos recicláveis. Motivado pela dependência química ainda furtava materiais e ferramentas que encontrava em áreas de construções. Ocasionalmente Lelinho circula de bicicleta por outros bairros e pelo centro de Paranavaí. Não se incomoda com o som ruidoso, o desconforto e os perigos das duas rodas sem pneus. Inclusive usa um rabicho improvisado para arrastar um carrinho barulhento, sem os aros de borracha. Sempre que recebe uma nova ameaça se afasta das ruas e se esconde dentro de casa por pelo menos um mês. Tem o apoio dos avós que se negam a reconhecer que o neto é usuário de drogas.
Um dia o avô pediu a um vizinho para chamar a polícia, alegando que Lelinho teve um surto e estava quebrando tudo dentro de casa. Quando a viatura chegou o idoso sorriu e tentou explicar que era só pra dar um susto no neto. “Não leva ele não, por favor!”, suplicou, se negando a admitir a seriedade da situação. Diariamente, assim que a escuridão toma conta de uma das ruas mal iluminadas da Vila Alta, Lelinho caminha até a entrada da casa de um vizinho, se agacha e recolhe as sobras de alguns cigarros de maconha. Em seguida, pacientemente transforma os restos misturados à fuligem e sujeira em um “baseado”. Depois de acendê-lo, senta sobre uma calçada estreita de cimento e ignora tudo à sua volta, até mesmo a presença de outras pessoas. É surpreendente o seu empenho em se distanciar da realidade.
O artista plástico Luiz Carlos Prates já tentou ajudá-lo muitas vezes, só que o rapaz se nega a ouvi-lo. “Entrou num estado profundo de decomposição social e moral. Quando não está se drogando, ele passa muito tempo dormindo. Acorda de madrugada e fica vagando por aí”, lamenta Luiz Carlos. Na época em que comercializava crack, a entrada da casa dos avós virava ponto de venda. Sentado em uma cadeira na calçada, e entre um gole e outro de cachaça, o avô virava o rosto e fingia que não via nada. Ao anoitecer, encostavam carros, motos e bicicletas de vários bairros de Paranavaí. “Parecia um ‘enxame de abelhas’, onde tem droga tem gente. Era aquele desfile. Lá encostava cada carrão”, garante o artista plástico.
Mesmo atuando no narcotráfico, o rapaz nunca conseguiu comprar nada, inclusive se tornou laranja porque ficou devendo para a mulher que lhe deu as primeiras pedras de crack. Em uma rara ocasião o garoto apareceu na casa do artista plástico para mostrar o “presente” que recebeu. Ingênuo e orgulhoso exibiu um telefone celular. Um aparelho velho sem a tampa traseira. “Tu não vê que essa mulher só quer te usar? Ela só lucrando e você aí na merda, se afundando cada vez mais. Te deu essa porcaria pra tu avisar ela quando a polícia chega e te complicar mais ainda. Vai ficar andando todo sujo com esse chinelo de dedo velho até quando?”, disse Prates exaltado e preocupado. Mais tarde, a traficante que o introduziu no mundo das drogas foi expulsa do bairro, o que não o livrou desse caminho porque o garoto começou a trabalhar em outra “boca de fumo”. Hoje não atua mais no narcotráfico, mas ainda é perseguido pelas dívidas que contraiu com o vício.
Ontem o artista conversou com Lelinho e o irmão mais velho do rapaz. Os dois usuários de drogas saíram há poucos dias da prisão por envolvimento com furtos. “O verdadeiro malandro sou eu que estou nesta vida com 85 anos e nunca fui preso, nunca usei drogas, nunca fumei. Tu acha que é malandragem estar preso, sem liberdade pra fazer nada? Perde os melhores anos de sua vida na cadeia, uma luta inglória, não ganha nada!”, aconselhou Luiz Carlos. Para piorar, Lelinho e o irmão tiveram relações sexuais com uma moça do bairro diagnosticada com Aids. Ainda assim o jovem evita falar sobre o assunto e deixa claro o seu desinteresse em procurar ajuda médica. “Está cada vez mais seco e vive fedendo. Quem cuida das roupas dele é uma prima que busca, lava e passa. Faz até compras no mercado pra ele. Segue nessa vida de dependência química há seis anos. Não percebe que isso o destruiu”, destaca o artista plástico.
“Olha, filho da puta, quando eu crescer vou comprar um 22 e te dar um tiro na cara”
Morador da Vila Alta, na periferia de Paranavaí, Lelinho começou a ficar agressivo aos sete anos, quando o pai o levava para a escola. Com o tempo o garotinho não quis mais saber de estudar. Rebelde, corria o máximo que podia, se embrenhando na mata do Bosque Municipal de Paranavaí. Para coibir as fugas, um vizinho se dispôs a ajudar. Ia atrás de bicicleta para segurá-lo, caso corresse.
Em uma das vezes que foi segurado pelo braço e não conseguiu escapar o menino esbravejou: “Olha, filho da puta, quando eu crescer vou comprar um revólver 22 e te dar um tiro na cara.” Apesar das ameaças, até hoje nunca segurou uma arma. Nem mesmo reagiu nas muitas vezes em que foi espancado depois de se tornar usuário de drogas. Quando Lelinho estava com 10 anos, o artista plástico Luiz Carlos Prates o convidou para participar da Oficina do Tio Lú, projeto que ensina crianças e adolescentes a criarem obras de madeira. O garoto concordou. Na realidade, mais do que isso, ficou eufórico. Logo se tornou um dos melhores alunos da oficina, tanto que Luiz Carlos se emociona ao se recordar da dedicação de Lelinho. “Fazia cada coisa linda. Era caprichoso demais”, lembra.
No entanto, houve um período em que o artista plástico precisou interromper a Oficina do Tio Lú para produzir obras a serem comercializadas na ExpoParanavaí. Com o fim da feira agropecuária que exigiu dez dias de dedicação do artista, Luiz Carlos procurou Lelinho e logo ficou receoso por não encontrá-lo. “Um traficante foi preso e a mulher dele assumiu a boca de fumo, então ela começou a iludir crianças e adolescentes para entrarem no esquema. Uma dessas crianças era o meu aluno que na época não tinha completado nem 12 anos”, revela. Lelinho não era mais o mesmo. Não queria mais conversar com Luiz Carlos e adquiriu o hábito de se esconder. Quando passava perto da casa do artista, atravessava a rua ou virava o rosto.
“Tentei falar com os avós do menino, contar que o comportamento dele era de um usuário de drogas. Não quiseram acreditar. Só que não demorou pra ele começar a furtar. Quando eu tentava aconselhar, justificavam que tinha gente tentando incriminar o garoto”, enfatiza Prates que até hoje não desistiu de livrá-lo do mundo das drogas. Outro agravante na vida de Lelinho é a falta de estrutura familiar. A mãe abandonou o filho e o marido para viver com outro homem. Quando o relacionamento não deu certo, o amante encomendou o assassinato da mulher. Para não morrer, ela fugiu para São Paulo e só retornou quando pararam de procurá-la. “O pai dele era um homem bom. Não posso dizer o mesmo da mãe que nunca se importou com o filho e o marido. Hoje ela circula pelo bairro como um farrapo humano e ainda virou traficante. Só anda com drogados. Não sei se está louca ou finge estar”, comenta Luiz Carlos.
Quem mais se importava com Lelinho era o pai, falecido recentemente em Arapongas, no Norte Central Paranaense, em decorrência de um acidente vascular cerebral (AVC). De acordo com Prates, um homem trabalhador e de boa índole. O problema era o vício em cocaína, mal que o matou com apenas 36 anos. “Apesar de tudo, ainda vejo bondade no Lelinho. Se a família desse uma força, tenho certeza que conseguiriam recuperá-lo. Eles estão em negação, preferem fazer vista grossa. Não percebem que a qualquer momento o menino pode morrer de overdose ou ser morto”, reclama Luiz Carlos Prates.
Frase do artista plástico Luiz Carlos Prates
“Todo viciado é ladrão. Pode ser podre de rico, ainda assim ele sente necessidade de furtar ou roubar.”
Latinha, infância fragmentada pelo crack?
O texto abaixo é o primeiro de uma série de publicações com o tema Personagens do Submundo de Paranavaí em que relato com ênfase na subjetividade humana as experiências de pessoas que mesmo solitárias e marginalizadas conseguiram reencontrar a sua humanidade.
Um garoto que superou abandono, violência, miséria, escravidão, vício e solidão
Latinha, 13, é um garoto de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, que se tornou dependente químico aos seis, época em que foi coagido pela primeira vez a fumar crack em uma lata de refrigerante. Ao longo de cinco anos, viveu sem qualquer perspectiva de futuro, vagando pelas ruas, onde um universo aterrador criado a partir de um caos alucinógeno o afastou da realidade, espoliando sua humanidade.
“Chega uma hora que você vira bicho, rasteja pela sujeira e acha que está no paraíso”
A violência
“Lembro que cheguei em casa e vi meu padrasto batendo outra vez na minha mãe com um porrete que guardava embaixo da cama. Ela sangrava e eu comecei a chorar e pedi pra ele parar”, narra Latinha. Encolerizado, o homem o perseguiu. Não o alcançou, então arremessou o bastão e atingiu a criança pelas costas.
O golpe violento jogou Latinha contra a parede. Sentiu tanta dor que se limitou a chorar, sem conseguir se mexer. “Minha mãe me mandou correr. Nem sei de onde tirei força pra levantar, mas fiz o que mandou. Voltei pra casa no dia seguinte. Não encontrei nada nem ninguém, só umas manchas de sangue no chão e perto da janela”, relata o garoto que era filho único e continuou morando na casa, sem saber o paradeiro da mãe.
A inocência
Latinha tinha cinco anos e estava sozinho no mundo, sem ter o que comer, sem outra roupa para vestir e sentindo muito medo de existir. Então começou a se alimentar dos restos de comida que encontrava em sacos de lixo. Em uma das andanças, conheceu o órfão Naldinho Caneta, 8. Os dois tornaram-se amigos e decidiram morar juntos na residência da mãe de Latinha, um casebre de três cômodos e sem mobília, com as paredes cheias de fissuras.
A dupla dormia sobre um chão forrado de papelão e jornal velho e não se importava em dividir o espaço com invasores como ratos e baratas. Também pegavam animais de rua e levavam para casa. Com a ajuda de Naldinho, latinha abrigou até 27 cães e 15 gatos durante algumas semanas em 2003. Ameaçados pelos vizinhos, os garotos tiveram de encontrar novos tutores para os animais.
O trabalho
Mesmo sem uma fonte de renda fixa, e vivendo às raias da miséria, não tinham o hábito de pedir esmolas. Para sobreviver, investiam na coleta de materiais recicláveis. O lucro era pouco, mas a dupla até que se divertia. “Só era ruim mesmo quando alguém roubava as nossas coisas. Não podia dar bobeira e deixar o carrinho sozinho”, lembra Latinha que em parceria com Caneta trafegava pela Avenida Heitor Alencar Furtado todos os dias.
Até escaparam da morte numa manhã de domingo, quando um motorista embriagado invadiu uma ciclovia próxima a entrada da Vila Operária e jogou o carro sobre a dupla. “Só puxo mesmo pela memória os raspões nas pernas e nos braços. O Naldinho foi jogado sobre uma calçada, mas conseguiu levantar, sem nenhum machucado, apesar de assustado e um pouco tonto. O motorista deu ré e se mandou”, afirma.
O castigo
Após o acidente, Latinha e Naldinho tiveram de mostrar ao proprietário o estado do carrinho usado no transporte de recicláveis. O homem conhecido como Lanterna alugava o veículo por uma diária de R$ 5. Os chamou para conversar no fundo do quintal. Lá, passou a mão em um reio, antes mergulhado num latão que tinha um líquido estranho, ardido e fedido. Ficaram com medo e tentaram correr. Não deu tempo.
Cada um recebeu cerca de 25 chicotadas e nos últimos golpes os garotos desmaiaram sobre o solo arenoso. Latinha acordou com as unhas cheias de sangue porque segurou com muita força no chão. “Sentimos tanta dor que fizemos até xixi e cocô”, revela e em seguida ergue a camiseta para exibir algumas marcas deixadas por Lanterna nas costas e no abdome.
Além da punição, Latinha e Naldinho tiveram de trabalhar de graça por três meses em uma carvoaria clandestina nas imediações de Porto Rico. O serviço era de segunda a segunda, durava umas 18 horas por dia e dormiam lá mesmo, do lado de umas pilhas de lenha e em cima de umas estopas sujas e rasgadas. Só tinham direito a duas refeições, quase sempre virado de feijão, e tudo era controlado.
A cegueira
No último mês de trabalho na carvoaria, empreenderam fuga por uma erma estrada de chão. Só correram algumas centenas de metros até serem alcançados pelo filho de Lanterna. O rapaz os levou de volta até a carvoaria e não revelou o acontecido ao pai. No dia seguinte, se recusaram a trabalhar, então Lanterna decidiu puni-los. Os amarrou e esfregou em seus olhos um punhado de brasa enrolada num pano. Latinha ficou dois dias sem enxergar e chorou dia e noite. Quem sofreu mais foi Naldinho que por ser mais velho recebeu castigo dobrado. Só recuperou a visão depois de cinco dias. Nesse período, Latinha cogitou a possibilidade de serem mortos.
Quando perderam a visão, foram isolados em um chiqueiro. Eram alimentados às escondidas pelo filho de Lanterna que não concordava com a conduta do pai e os visitava com certa frequência. De vez em quando, escutavam o algoz reclamando e esbravejando algo como: “Seus lixos, não servem pra nada, nem o diabo vai querer duas pestes como vocês.”
“O presente”
Antes de completarem três meses de trabalho na carvoaria, Lanterna prometeu um presente, algo que chamava de “Disneylândia” e “Terra da Fantasia”. Entregou aos dois um saquinho com pedrinhas que pareciam pedacinhos de rapadura. Falou para fumarem, salientando que dava uma sensação muito boa e espantava tudo de ruim.
Latinha e Naldinho se recusaram a experimentar. Com facão em punho, Lanterna gritou que ninguém sairia da carvoaria sem fumar pelo menos uma pedra. O homem improvisou um cachimbo com uma lata de refrigerante e os forçou a tragar. Na primeira baforada, até acharam que poderia ser bom. “A gente não tinha certeza da aparência do crack, nunca tinha visto de perto”, diz Latinha, argumentando que evitavam qualquer contato com dependentes químicos pelas ruas de Paranavaí.
As primeiras sensações após o uso da droga foram de prazer, bem-estar e ligeira excitação. Logo que fumaram ficaram “ligados” e, com o coração célere, transpiraram e sentiram uma energia diferente. De repente, o mundo infantil se transformou. Naldinho ganhou pupilas dilatadas, mãos trêmulas e uma boca entreaberta. Na mesma noite, foram abandonados ao lado do chiqueiro, num chão ocupado por restolhos, cavacos queimados e fezes de animais. As costas estavam amortecidas por pneus velhos e sujos de graxa com as bordas embebidas em urina humana.
A degradação
Dias depois, retornaram à cidade. Não eram mais os mesmos. Estavam afundados em um universo de degradação. Na primeira semana alimentando o vício, Lanterna forneceu de graça as pedras de crack. Tudo mudou. Era preciso pagar R$ 5 por uma pedrinha minúscula. Então corriam atrás de bicos para continuarem comprando. Se passassem muito tempo sem a droga ficavam nervosos, em um estado que chamam de “noia”.
A princípio, a dupla aceitava qualquer tipo de serviço para ter acesso ao crack, menos participar de atividades criminosas. Mesmo assim, não demorou para trocarem a dignidade pelo vício. Latinha se recorda do episódio em que comeram um par de meias sujas e embebidas em urina e fezes em troca de R$ 10. Deixaram marcar as mãos com ferro em brasa por causa de um “bagulho”. Aceitaram que um rapaz passasse com a moto sobre seus pés em troca de R$ 5 para cada. Quanto mais tempo ficavam longe da droga, mais se tornavam capazes de atos inimagináveis.
Meses depois, a dupla de sete e nove anos foi introduzida como “laranja” no narcotráfico local, transportando pequenas quantidades de drogas entre os bairros. Rodavam toda a cidade, atendiam as bocas de fumo do Jardim São Jorge, Campo Belo, Canadá, Morumbi, Simone, Vila Operária e outras áreas. À época, perceberam que em Paranavaí havia pessoas de grande poder aquisitivo investindo no tráfico de drogas. “Vi gente importante que bota banca de certinho e roda de carrão importado pela cidade envolvida nisso”, comenta.
As alucinações
Latinha teve muitas alucinações quando fumava crack. Algumas remetiam ao passado enquanto outras eram indecifráveis e surreais. Assegura que teve visões com quem perdeu contato há muito tempo, até pessoas falecidas. O garoto gostava de ver um mundo mais colorido e mais vivo. O problema era quando o efeito passava. Ficava tudo preto, embaçado e sem vida, o que os motivava a fazer de tudo para continuarem usufruindo de um estado alucinógeno que chamavam de arco-íris. Divagavam com a ideia de um buraco se abrindo no chão e os puxando para dentro. “Tinha vez que o barato passava e eu me dava conta de que estava agarrado a um poste ou abraçado a uma placa, com o corpo tremendo”, confidencia.
Quando se drogavam, o mundo se fragmentava. Não sabiam se era dia ou noite, se estava frio ou calor. Acordavam em lugares desconhecidos ou dos quais não se recordavam mais. Por vezes, não reconheciam as pessoas e esqueciam até mesmo quem eram. “Chega uma hora que você nem parece gente, rasteja pela sujeira e acha que está no paraíso. Depois começa a viver com medo e sempre que percebe alguém te olhando acha que estão te perseguindo, até mesmo os animais. O cheiro e o sabor das coisas perdem o sentido, deixam de existir. Não sobra nada, só um vazio”, desabafa Latinha enquanto mira o horizonte e ajeita o boné sobre a cabeça.
Ato heroico I
Para Latinha, se não fosse por Naldinho Caneta dificilmente teria sobrevivido a tantas desventuras. A primeira foi em 2004, quando estava dormindo e deixou uma vela cair sobre o chão forrado com papelão. As chamas se alastraram pela casa. O pior foi evitado porque Naldinho tinha saído para procurar comida e retornou antes do esperado. Ao se deparar com o fogo, não pensou duas vezes antes de invadir o casebre. Com apenas oito anos, conseguiu abrir a porta, passou pelas chamas, pegou Latinha no colo e o levou para fora. Quando abandonaram a casa, os bombeiros ainda não tinham chegado. O mais surpreendente é que a dupla teve apenas queimaduras superficiais.
Ato Heroico II
Não foram poucas as vezes que Naldinho se envolveu em brigas para defender Latinha de outros menores de rua que o tentavam roubar e explorar. Aos 11 anos, Caneta colecionava cicatrizes pelo corpo. Eram marcas de pedradas, pauladas, garrafadas, chicotadas, até mesmo facadas. Apesar das dificuldades cotidianas, ainda despontava como um herói do submundo. O aposentado João Bosque da Silva, 78, se recorda de quando foi salvo por Naldinho.
“Recebi a aposentadoria e estava descendo pela Avenida Salvador, perto do Terminal Rodoviário Urbano, daí uma turma de moleques veio pra cima de mim mandando entregar todo o dinheiro. Me recusei e então o maior me mostrou uma faca”, relembra o aposentado. Naldinho Caneta que estava em um terreno baldio ao lado escorou sobre o muro e arremessou pedaços de tijolos contra os garotos.
Enraivecidos, os infratores saltaram para o interior da propriedade. Nem imaginavam que estava lá dentro com um cão rottweiler. João Bosque ouviu o garoto falando para o animal atacar os invasores. Sem demora, Naldinho saltou o muro e correu, sem dar tempo do aposentado agradecê-lo.
A superação
Um dia, a dupla estava vagando pelo Centro de Paranavaí quando Naldinho viu o próprio reflexo em frente a uma vitrine de uma loja de roupas. Tirou de dentro do bolso uma foto um pouco amassada, suja e falou: “Tá vendo, Latinha. A gente é isso aqui e não aquilo ali. Não me vejo naquele vidro. Você se vê? Por que me sinto como se tivesse vivo na foto e morto aqui fora, sendo que todo mundo sabe que não existe vida num pedaço de papel? Que loucura, né? A gente tem que mudar, Latinha, viver aqui fora e não na foto.”
Na imagem tirada antes da dependência química, Latinha, 6, e Naldinho, 8, aparecem descalços, mal vestidos e sujos. A maior diferença é que estão sorridentes e brincando em um lixão na Vila Alta, onde ao fundo se destaca um urubu sobre um sofá velho. Durante toda a entrevista, esse é o único momento em que Latinha treme e chora. Por instantes, se cala, segurando e observando a foto.
Após a autorreflexão em frente à loja, a dupla decidiu se afastar do crack. Nos quatro meses que se seguiram foi muito difícil, um teve de dar apoio ao outro, evitar recaídas. Latinha e Naldinho superaram o vício. Abandonaram tudo que faziam para reconstruir a casa queimada. Saíram pelas ruas da cidade procurando crianças e adolescentes sem-teto.
Reuniram nove menores, entre andarilhos e jovens que sobreviviam se prostituindo. Durante o dia, percorriam as construções, pedindo restos de materiais. Recolhiam as doações com uma carriola velha, descascada e barulhenta, que tinha o pneu careca, já exibindo o arame. Cinco meses depois, terminaram a reconstrução e a ampliação da casa que ganhou três novos cômodos.
Os conflitos
No quintal, fizeram uma horta grande que mais tarde se tornou um negócio rentável. Uma parte da produção era vendida em mercearias e a outra destinada ao comércio ambulante. Logo surgiram conflitos internos, pois nem todos contribuíam. Enquanto alguns se empenhavam em trabalhar e transformar a casa em um ambiente melhor, outros passavam o dia sob a sombra de uma enorme mangueira.
Latinha e Naldinho tentaram resolver a situação. Não houve acordo e pediram que os moradores insatisfeitos deixassem a casa. Neemias, 17, Pardal, 16, e Bota, 16, nem discutiram, apenas observaram Naldinho e Latinha por segundos antes de partirem sem rumo, rindo do acontecido. Na manhã seguinte, quando a dupla estava prestes a sair para fazer as compras da semana, perceberam que todo o dinheiro economizado e guardado nos furos de duas lajotas recostadas ao muro da casa foi levado.
Latinha e os demais quiseram recuperar o dinheiro, mas foram impedidos. Naldinho chamou-lhes a atenção e justificou. “Eles precisam mais do dinheiro. Vamos entender isso como um pagamento pelo que fizeram aqui. Aquela quantia não significa nada perto do que a gente conseguiu.” Todos refletiram a respeito, só que não o suficiente para amenizar a raiva. Só desistiram de ir atrás do trio por causa da interferência de Naldinho.
A covardia
Meses depois, em agosto de 2010, num final de tarde, Caneta empurrava pela Avenida Salvador, em direção ao Terminal Rodoviário Urbano, uma carriola onde levava um pouco de alface, almeirão e couve. Abordado por Neemias, Pardal e Bota, Naldinho encostou o carrinho de mão rente ao meio-fio. De acordo com o comerciante aposentado Geraldino Gonçalo, os três ordenaram que o garoto entregasse todo o dinheiro. Sem discutir, Caneta os observou atentamente e esvaziou os bolsos.
Insatisfeitos, Pardal e Bota tomaram-lhe a carriola, despejaram as hortaliças perto da guia e empurraram o garoto contra um muro branco, bem desgastado. Naldinho ergueu as mãos, sinalizando que não queria brigar, ainda assim Neemias sacou um revólver de calibre 32 que estava preso ao cinto. Disparou três tiros à queima-roupa contra o peito de Caneta que deslizou as costas pelo muro, caindo sentado, deixando um rastro vermelho.
O sangue de Naldinho, que contrastou com a pele bronzeada e a camiseta branca, cobriu de vermelho até o par de chinelinhos de dedo e se esvaiu pela calçada, se misturando à água e aos restos de alface, almeirão e couve que escorriam pela sarjeta. Gonçalo gritou por socorro e se aproximou logo que os garotos fugiram. “Ainda vi um fio de vida nos olhos daquele menino quando me aproximei. Cerrava os dentes cheios de sangue e olhava pro céu como se suplicasse pra não morrer. Lutou muito. Só que a ajuda demorou e ele não suportou. O pior é que eu e outras pessoas apenas assistimos ao acontecido, sem fazer nada. Tive vergonha de mim mesmo”, testemunha Geraldino Gonçalo.
O desespero
Quando soube do acontecido, Latinha entrou em desespero e correu até o local do crime, onde mandou todos se afastarem. Em meio aos curiosos, pediu que alguém o ajudasse a colocar Naldinho sobre a carriola abandonada na esquina. Na versão de Latinha, ninguém o ajudou, então tirou a camiseta, forrou o interior do veículo e sozinho deitou o corpo de Caneta, já sem vida. Empurrou o carrinho de mão até em casa, onde colocou Naldinho sobre a cama e passou a noite acordado, escorado sobre a janela, pensando, sem ter a mínima ideia do que fazer.
Antes do amanhecer, vestiu o amigo com a melhor roupa, enrolou o corpo em lençóis brancos e cuidadosamente o deitou em um buraco no quintal, ao lado de uma jabuticabeira, onde Naldinho e Latinha talharam os próprios nomes meses antes do assassinato. Enquanto suas lágrimas embaçavam a visão e umedeciam o solo, Latinha abriu uma caixa de madeira. Do interior, despejou centenas de canetas das mais variadas cores, tipos e tamanhos sobre o corpo do amigo.
O ritual
Eram itens de uma coleção iniciada anos antes. Naldinho as encontrou em buracos, lixões, tampas de galerias, calçadas, ruas, guias ou apenas descartadas por transeuntes nas lixeiras públicas. A preferida de Naldinho era uma caneta tinteiro Parker verde-nassau, de fabricação estadunidense, que já não funcionava mais, tirada da sarjeta em frente a um escritório de contabilidade. “Muitas vezes, antes de dormir, ele pegava essa caneta e ficava deitado de barriga pra cima dizendo que parecia uma joia de tão bonita. Sonhava em um dia conhecer a fábrica da Parker nos Estados Unidos. Toda caneta que encontrava, Naldinho trazia pra casa”, enfatiza Latinha que antes de enterrar o amigo colocou em sua mão a Parker verde-nassau.
A cada pá de terra jogada sobre Naldinho, Latinha se sentia mais distante. Ao redor do amigo, os outros seis menores que viviam na casa se mantiveram cabisbaixos e calados. Não se pronunciaram nem quando Latinha esfregou contra o rosto e o peito uma ponta solta do lençol branco que cobria Naldinho. Antes de fechar o buraco, cavou com a mão um punhado de terra próximo da cabeça do amigo e o jogou contra o próprio corpo. Após o enterro, sem unção ou qualquer tipo de oração, Latinha se ajoelhou, manteve o rosto contra o solo, fez uma promessa e se levantou.
A decisão
Depois de refletir, previu que não tardaria até a Polícia Militar e o Conselho Tutelar aparecerem na residência. Sugeriu que os outros procurassem uma morada provisória. Sozinho, Latinha foi até a casa de um conhecido que vivia no Jardim São Jorge e lhe devia favores. Pegou emprestado um revólver de calibre 380 e outro de calibre 38. Guardou as armas dentro de uma mochila recheada de munição e saiu noite afora, a pé e solitário, guiado pela escuridão que o inebriava a ponto de não sentir as pedras que se fixavam na sola fina de um velho tênis All Star, presente de Naldinho.
Passou três dias sem dormir, como um errante, carregando nas costas o que chamou de senso de justiça. O “saco de chumbo” o impedia de ter sono. Era o peso da consciência por não ter previsto o que aconteceria com Naldinho. Latinha sentia a mochila leve somente quando imaginava a morte de Neemias, Pardal e Bota.
Se preparando para um banho de sangue, passava o dia todo pensando apenas em ver as vidas dos inimigos se esvaindo diante de seus olhos. “Tudo precisava ser feito bem devagar, na mesma intensidade da dor que causaram. Pra mim, não restava mais nada. Eu tinha todo o tempo do mundo pra dar cabo daqueles vermes”, rememora, reproduzindo o sentimento da época.
Os encontros
Quatro dias depois da morte de Naldinho Caneta, Latinha finalmente encontrou Neemias, Pardal e Bota. Os três estavam deitados em volta do tronco de uma mangueira no fundo de uma casa abandonada no Jardim Ipê. O garoto invadiu o local com cautela. Se aproximou um pouco, abriu a mochila, sacou o revólver de calibre 32 que já estava carregado e o engatilhou. “Meu dedo coçava de vontade de atirar. Ao mesmo tempo, eu tremia e meus olhos pareciam em chamas”, admite.
Prestes a dar o primeiro disparo, Latinha conta que em meio ao clima abafado surgiu uma brisa que o fez sentir calafrios por todas as extremidades do corpo. Repentinamente, abaixou a arma e caminhou em direção a Neemias. Nenhum dos três estava acordado e Latinha percebeu que naquele ambiente apenas os poucos movimentos dos galhos e das folhas da mangueira inspiravam vida. Parte do cal virgem fixado ao tronco da árvore se desprendeu e deslizou com sutileza em direção ao chão, onde repousavam os três garotos.
Quando o cal tocou os primeiros fios de cabelo de Neemias, Pardal e Bota, que pareciam alinhados na mesma posição, Latinha os arrastou um a um até a sombra de uma jabuticabeira livre da caiação, onde ramagens de alfazema perfaziam uma pequena trilha. Àquela altura, o cal já tinha coberto os cachimbos de crack improvisados com tubinhos de caneta que adornavam a mangueira. “Tinha uma poça d’água do lado da árvore com as mesmas cores que formam um arco-íris”, sublinha.
Minutos depois, colocou o revólver de volta na mochila e partiu sem acionar o gatilho nenhuma vez. Devolveu a munição e as armas emprestadas e fez o trajeto de volta para casa. No caminho, quando descia pela Rua Antônio Felipe, reconheceu a fisionomia de um idoso que empurrava um carrinho de frutas. Era o avô com quem perdeu contato aos quatro anos. Latinha ficou um pouco receoso, mas arriscou uma aproximação e se apresentou.
De olhos marejados, o idoso soltou o carrinho e, com mãos trêmulas, abraçou o neto, de quem não tinha notícias desde 2001, ano em que o padrasto de Latinha o ameaçou e exigiu que não os procurasse. “Ele usava a mesma boina cinza de quando o tinha visto pela última vez”, acrescenta o garoto que contou ao avô João Bosque da Silva tudo que passou desde o último contato. Naquele dia, unidos pelo acaso ou destino, os dois partiram juntos na alvorada, sob um auspício de esperança.
Curiosidades
O apelido Latinha surgiu por causa da habilidade como coletor de latinhas.
O sonho de Naldinho era um dia tornar-se escritor, o que justificava o seu carinho e esmero por canetas.
Por algum tempo, a casa de Latinha ainda serviu de abrigo para andarilhos e sem-tetos, até que novos conflitos fizeram com que tomassem a decisão de alugar o imóvel.
Latinha, que é apontado como um dos melhores alunos do colégio onde estuda, nunca mais soube da mãe e até hoje mora com o avô, o seu responsável legal.
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