David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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Bob Comis, o relato de um ex-criador de porcos que abandonou a sua principal fonte de renda por respeito aos animais

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Comis: “Depois de cuidar de um grupo de porcos, nunca vou embora nem dirijo o trator sem sorrir ou, muitas vezes, rir em voz alta” (Foto: Reprodução)

São cinco horas da manhã, e temos quinze graus lá fora, e uma tempestade de neve que pode lançar até 16 polegadas sobre nós está a apenas algumas milhas de distância. Lá fora, nesta terra invernal, estão 250 porcos espalhados pelo campo e pelos celeiros da fazenda, aninhados calorosamente em grandes camadas de palha, dormindo profundamente como grandes pilhas suínas, compartilhando o calor do corpo e o conforto social do contato físico. Eles são porcos felizes. Eles são, talvez, tão felizes quanto a felicidade.

Afinal, tudo que eles poderiam querer ou desejar está bem à mão, ou casco, neste caso. Comida, abrigo, água, ar fresco, espaço para vagar, correr, brincar, se aquecer e se enterrar. Eles não desejam mais nada, mesmo no inverno. Ao percorrerem seus campos e celeiros, enfiando seus narizes na neve e ressurgindo do solo gelado, eles mantêm um fluxo constante de sons e grunhidos silenciosos que expressam contentamento, se comunicando com outros porcos no mesmo local onde estão. Os grunhidos silenciosos são partilhados pelos porcos o dia todo. São tão suaves quanto o som das cigarras nas noites de verão.

Alguns dos porcos, aqueles que estão no celeiro, onde é mais quente, e a palha é mais volumosa, pesam apenas 40 libras [18 quilos]. Outros pesam 150 libras [68 quilos]. Os maiores têm em torno de 300 libras [136 quilos]. Os porcos grandes são tão imunes ao frio que quando o dia está com 20 graus e ensolarado, eles mergulham suas cabeças no tanque de água apenas por diversão, tentando lambê-la enquanto desce pelos seus narizes. Suas várias expressões de contentamento, de felicidade, são contagiosas. Depois de cuidar de um grupo de porcos, nunca vou embora nem dirijo o trator sem sorrir ou, muitas vezes, rir em voz alta.

Dez desses maiores porcos vão morrer amanhã, não na minha mão, mas sob o meu pedido. Esta tarde, enquanto eles dormem, os prenderei no celeiro com uma série de painéis. Então retornarei com o trailer de reboque de gado e criarei uma espécie de rampa para arrebanhar os porcos e levá-los para o trailer. Eu levarei aqueles dez porcos, aqueles dez porcos felizes, para o matadouro, onde vou descarregá-los em uma área de confinamento pré-abate. Por causa da tempestade que está chegando, não posso deixá-los lá amanhã, o que eu preferiria. Em vez disso, esses porcos felizes terão que passar a última noite de suas vidas infelizes em uma estranha e malcheirosa prisão de concreto antes de serem reunidos um por um em um pequeno espaço onde serão mortos rapidamente.

Amanhã, antes das nove horas, no momento em que eu remover a neve para que eu possa alimentar e hidratar os porcos felizes, os dez porcos que deixei no matadouro estarão mortos. Eles terão sido baleados na cabeça com uma pistola pneumática que os deixará inconscientes. Então uma faca excepcionalmente afiada terá sido mergulhada em seus corações palpitantes, de forma a fazer toda a sua vida se esvair com o sangue que percorre suas veias e artérias, criando uma densa e dispersa camada vermelha carmesim no chão de concreto cinzento do matadouro.

Vinte minutos depois, eles estarão sem vida, divididos em duas metades e pendurados por cada perna traseira em longos ganchos brilhantes de aço inoxidável, e presos a um trilho por uma roldana, de modo que os porcos possam ser empurrados para dentro do frigorífico; para que seus corpos, suas carcaças ainda quentes das vidas que foram tiradas, estejam em temperatura abaixo de 40 graus para que possamos comer suas carnes, como determinado pelo USDA [Departamento de Agricultura dos Estados Unidos]. Seus olhos, seus olhos muito humanos que ao longo da vida olham para você com óbvia inteligência, estarão tão imóveis e vitrificados quanto o mármore.

Na atual conjuntura discursiva, os porcos felizes são a alternativa ideal para os porcos miseráveis e abusados que são criados nas fazendas industriais. Os porcos felizes se tornam carnes felizes, e a carne feliz é boa. Devemos nos sentir bem comendo carne feliz. Porcos felizes, sério? Sou assombrado pelos fantasmas de quase dois mil porcos.

(Há um mês, tive minha última crise consciência, em uma década de crises de consciência mais ou menos intensas. Tendo abandonado o último vestígio do que parecia ser a justificativa legítima, baseada na felicidade e na rápida morte indolor, me tornei vegetariano. Agora estou no começo do processo complicado de dar um fim à minha vida como criador de porcos.)

Bob Comis é um ex-criador de porcos que em 2014 abandonou a criação de animais para consumo. Suas histórias sobre as suas experiências que revelam a realidade da exploração animal sob a ótica de quem fez parte desse meio por muito tempo, e como ele percebeu que os animais são mais do que produtos ou meios para um fim, já chamaram a atenção de alguns dos mais importantes veículos de comunicação dos Estados Unidos.

Referência

Comis, Bob. Happy pigs make happy meat. The Dodo (fevereiro de 2014).





 

As armadilhas e a perspectiva capciosa do “bem-estar animal”

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Foto: Jo-Anne McArthur/We Animals

Você já percebeu como quando se fala em exploração animal sempre aparece alguém dizendo que há situações em que os animais não sofrem, que eles não são privados de nada, que não há nada de errado nisso? Esse fato tem relação direta com algo que eu chamo de “malícia da produção”. E o que é a malícia da produção?

É quando, por gozarmos de uma inteligência superior a dos animais, manipulamos a inocência não humana visando a lucratividade. Não quero discorrer sobre casos óbvios de crueldade explícita contra animais na produção industrial. Quero versar sobre algo relacionado à “cegueira do justo”, que surge quando somos incapazes de visualizar algo que por uma questão cultural, conveniente e unilateral não nos pareça evidente nem concreto.

Não é incomum alguém que considera o veganismo radical citar o exemplo de uma bela fazenda modelo, onde os animais são supostamente bem tratados. Sei que esses chamados locais existem. Mas essa concepção de bem tratado é definida por quem? Por quem explora ou por quem é explorado?

Se exploro um animal e sou eu que digo se ele é bem tratado ou não, quem define o que é aceitável ou bom para ele sou eu, obviamente, e levando em conta em primeiro lugar o que esse animal tem a me oferecer. Humanos que exploram animais têm sempre uma perspectiva um tanto quanto capciosa do que é o chamado “bem-estar animal”, porque eles entendem que qualquer oposição ao que fazem representa em algum nível um risco aos seus lucros.

Sendo assim, não acho que a única baliza para considerar o que é certo ou errado em relação à nossa intervenção na vida dos animais seja o sofrimento óbvio, a tortura, a crueldade baseada na violência física. Na realidade, existe um ponto que não costuma ser muito considerado, embora seja de suma importância nessa conscientização. Que ponto é esse? É a malícia da produção fundamentada no condicionamento animal.

Caso você seja contra a exploração de animais, em algum momento da sua vida alguém vai querer te apresentar uma “vaca feliz”, um animal supostamente bem-tratado e que dizem nunca ter passado por nenhum tipo de privação. Sim, pode ser que ela não tenha sofrido nenhum tipo de violação que nos pareça óbvia. No entanto, isso não significa que esse animal não tenha sido privado de ser mais do que uma fonte de alimento ou produto. Mas como assim?

Imagine uma situação. Você é criado para ser objetificado, para ser explorado desde o momento em que nasce. Essa é a sua realidade e isso é tudo que você conhece. Então é claro que a menos que você passe por uma situação mais explícita de privação e violência pode ser que você não manifeste contrariedade em relação à forma como vive, mas isso porque te condicionaram a aceitar uma vida para a qual você não deveria ter nascido, porque não diz respeito, de fato, a quem você é, e às suas reais necessidades. Porém, se você está imerso nessa realidade, e isso é tudo que você conhece, como esperar que você veja isso com estranhamento?

Em vários momentos da minha vida, conheci diversos animais criados para consumo que aos meus olhos pareciam ter uma bela qualidade de vida em uma fazenda. Mas por que tive essa impressão? Porque normalmente partimos da constatação mais evidente. Quero dizer, se um animal não está fisicamente ferido, se ele não está visivelmente estressado, se não aparenta precisar de nada, isso significa que está tudo bem. Esse é um exemplo clássico que serve para endossar o discurso comum dos produtores de leite quando alegam que se “suas vacas” não estivessem satisfeitas elas “esconderiam o leite”.

Para ser honesto, isso na minha opinião não diz nada. Mas por que? Porque se uma vaca foi criada para ser ordenhada, ela foi condicionada a isso, e você vai usar tudo que sabe sobre ela a seu favor para manter o controle da situação. Você leva vantagem sobre esses animais, e vai usar isso como parâmetro para potencializar a produção de tudo que, aos seus olhos, eles têm a oferecer enquanto fontes de produtos; mesmo que jamais tenham dado tal autorização, já que animais claramente não existem para nos servir, nós que os condicionamos a isso, seja por meio da violência inequívoca ou não.

Ou seja, a intervenção humana iniciada no princípio da vida de uma vaca, por exemplo, leva à normalização de algo que não deveríamos entender como aceitável, e claro que porque estamos falando de um alimento que não existe naturalmente para seres humanos, mas sim para bezerros. Ademais, vamos considerar que vacas sejam, de fato, bem tratadas nesse sistema.

Ela vai ter a chance de envelhecer ao lado do bezerro? Não, porque prioritariamente o leite é destinado aos seres humanos. Ela vai ter a oportunidade de pelo menos envelhecer? Não, e por um fator mercadológico ululante – a drástica queda na produção de leite culmina no envio da vaca para o matadouro, e não raramente o seu destino são as pequenas porções de hambúrgueres dispostas na seção de frios dos mercados.

Não esqueça também que muitas das doenças modernas que acometem esses animais têm relação com o sistema de produção. A verdade é que qualquer doença severa e onerosa já resulta no sacrifício do animal, porque nenhum produtor vai deixar de ponderar a relação entre preservação da vida x lucro. Existe alguma legislação que assegure que um animal não morra nessa circunstância? Não. Então como podemos falar em bem-estar animal quando isso mascara fatos irrefutáveis de que a vida do outro não é uma prioridade?

Creio que o condicionamento animal é uma das maiores barreiras dos direitos animais e do veganismo, porque o condicionamento, tanto humano quanto não humano, endossa a aceitação à exploração animal. Animais criados para consumo estão entre os mais inocentes, ingênuos e previsíveis. Claro, não foi por acaso que seus ancestrais foram domesticados. Com base nesse potencial, a humanidade criou ao longo dos séculos “versões” ainda mais dóceis e facilmente condicionáveis. Afinal, isso explica por que no passado escolhemos criar bois e porcos para consumo e não leões e tigres, não é mesmo?

Se você analisar mesmo que superficialmente a história dos muitos povos escravizados pela humanidade, você verá que entre eles sempre existiram muitos que, em decorrência de terem sido escravizados desde a tenra idade, e tendo pouco ou nenhum contato com outra realidade, não viam isso como uma arbitrariedade, mas apenas um triste destino, uma infelicidade, um desamor proveniente de Deus ou até mesmo uma danação baseada na sua própria condição física ou étnica.

Então, te pergunto: “Se tivemos muitos seres humanos que mesmo sendo ostensivamente e visceralmente privados de qualquer direito ainda se conformavam com isso, por que animais não humanos, que sequer partilham do mesmo código comunicativo que nós, não se conformariam? Ou pelo menos não teriam sua conformação condicionada?” Animais humanos e não humanos têm níveis de resistência equiparáveis em alguns níveis e aspectos, porém toda resistência tem limites.

Animais que já não reagem diante da morte, como o boi que aceita o dardo da pistola pneumática em seu cérebro sem tentar escapar da caixa, o porco que passa horas com o olhar disperso sem mudar de posição em uma fazenda, o frango que deixa de bater as asas durante a viagem ao matadouro dentro de uma gaiola de plástico – nenhum desses são exemplos de que está tudo bem em matar e consumir animais, mas sim de que aproveitamos de suas vulnerabilidades para fazermos o que quisermos com eles. E como somos mais inteligentes, usamos isso a nosso favor, mesmo que em ações notoriamente imorais se partimos da perspectiva de que, mais cedo ou mais tarde, obliteramos a vida de quem não quer morrer, assim que o seu “propósito” de proporcionar lucro for cumprido.

Sim, somos ardilosos quando matamos pintinhos machos porque eles não têm valor comercial; quando fazemos debicagem de aves; quando extraímos ou desbastamos dentes de suínos, tradicionalmente sem anestesia; quando eletrocutamos o gado a caminho do matadouro ou de um navio para exportação de “carga viva”; quando marcamos animais com ferro quente; quando usamos iluminação artificial para enganar o relógio biológico das galinhas poedeiras visando ganho em produtividade; quando alimentamos “muito bem” animais que serão mortos em poucos meses.

Afinal, não os alimentamos “muito bem” para satisfazê-los, mas simplesmente para obter melhor produtividade. Mas não somente isso. E o que dizer das abelhas? Pequenos animais que têm sua rotina manipulada pela intervenção humana para que possamos garantir uma quantidade de mel considerada aceitável para os nossos padrões. Toda a apicultura é baseada na artificialização da rotina das abelhas. Ou seja, o ser humano aproveitando-se da ingenuidade animal. E nesse processo, quando elas são acometidas por parasitas, matamos até as saudáveis, porque seria muito trabalhoso identificar as enfermas.

Pergunte-se: “Por que abelhas dariam naturalmente mel aos seres humanos se esse alimento é produzido por elas para atender suas necessidades nutricionais quando são incapazes de saírem para buscar mais néctar e pólen?” Seja em situação de adversidade climática, queda de temperatura ou carência de floradas. E mais importante, não se engane, mesmo que um animal criado para consumo pareça extremamente saudável e satisfeito, isso não significa que ele seja ou esteja, e muito menos que isso seja certo. Afinal, o que você está testemunhando é apenas resultado de mais um condicionamento visando aquilo que é sempre prioritário – o lucro.





 

A peste que assolou a Brasileira

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Doença dizimou centenas de porcos na década de 1940

Salatiel Loureiro: “A peste acabou com a minha porcada. Fiquei no zero” (Acervo: Fundação Cultural de Paranavaí)

No início da década de 1940, muitos dos pioneiros que chegavam à Fazenda Brasileira, atual Paranavaí, no Noroeste do Paraná, trouxeram gado, porcos e cabras, visando incrementar renda com a criação de animais. O que ninguém imaginava na época é que alguns anos depois um surto de peste suína dizimaria centenas de porcos.

Em 1944, muitos migrantes e imigrantes que fixaram residência na colônia tiveram a ideia de investir na suinocultura, motivados pela escassez de carne. Um exemplo é o pioneiro paulista Salatiel Loureiro que naquele ano construiu o terceiro rancho da Brasileira.

Logo que fixou residência no povoado, Salatiel Loureiro sentiu falta de comer carne, então decidiu ir a pé até Campo Mourão, no Centro Ocidental Paranaense, comprar animais para criar. Lá, comprou porcos e os tocou a pé até a Brasileira, numa viagem que durou dias. “Vim pela estrada mesmo, não tinha condução”, contou. A via percorrida por Loureiro era um picadão precário envolto por uma mata densa e fechada.

À noite, o pioneiro, acompanhado dos porcos, se abrigava diante de uma fogueira para descansar e também evitar o confronto com animais selvagens. “O ruim era que tinha muito mosquito”, comentou, acrescentando que as agruras eram superadas pelas belezas naturais. Segundo Loureiro, as novas gerações nunca imaginariam como a região de Paranavaí era bonita nos anos 1940.

População local já venerava muitos santos nos anos 1950 (Acervo: Ordem do Carmo)

Em 1947, Salatiel tinha uma das maiores criações de porcos da Fazenda Brasileira, o que era motivo de orgulho para o pioneiro. No entanto, no mesmo ano a peste suína chegou à colônia e dizimou centenas de suínos. “A peste acabou com a minha porcada. Fiquei no zero”, lamentou Loureiro que nunca mais quis saber de investir na suinocultura. Conforme palavras dos pioneiros, a doença vitimava animais todos os dias.

Poucos suínos resistiram à doença. A sobrevivência desses é creditada a uma promessa feita pelos pioneiros. “Eles se juntaram e rezaram. Falaram que se Deus os livrasse da peste suína, eles fariam de São Sebastião o padroeiro da igreja. A peste desapareceu e o povo cumpriu o prometido”, revelou o padre alemão Ulrico Goevert no pequeno livro “Histórias e Memórias de Paranavaí”.

Um dos moradores da Brasileira foi de caminhão até São Paulo, de onde trouxe a estátua de São Sebastião feita em gesso e com 1,30m de comprimento. A imagem doada pelo imigrante italiano Genaro Pienaro foi guardada na residência de um agricultor, pois a igrejinha ainda não tinha telhado. Se chovesse, a estátua corria risco de ser danificada. Não foram poucas as vezes em que o colono recebeu visitas de moradores que pediam autorização para orar em frente ao padroeiro da cidade.

Foi assim até a estátua ser remanejada para a Casa Paroquial. De acordo com Frei Ulrico, quando o telhado da igreja ficou pronto, São Sebastião foi colocado no seu devido lugar. “Durante o período de reformas, as estátuas ficaram desabrigadas, no mais verdadeiro sentido da palavra”, enfatizou o padre alemão que se surpreendeu com o fato da população local venerar tantos santos.