David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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A criação de animais em regime industrial é um dos piores crimes da humanidade

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A marcha do progresso humano está repleta de animais mortos (Foto: Jo-Anne McArthur/We Animals)

O destino dos animais criados em regime industrial é uma das questões éticas mais urgentes do nosso tempo. Dezenas de bilhões de animais sencientes, cada um com sensações e emoções complexas, vivem e morrem em uma linha de produção. Os animais são as principais vítimas da história, e o tratamento dado em fazendas industriais aos animais domesticados é talvez o pior crime da história.

A marcha do progresso humano está repleta de animais mortos. Há dezenas de milhares de anos, nossos antepassados da idade da pedra já eram responsáveis por uma série de desastres ecológicos. Quando os primeiros humanos chegaram à Austrália há cerca de 45 mil anos, eles rapidamente promoveram a extinção de 90% dos grandes animais. Esse foi o primeiro impacto significativo que o Homo sapiens teve no ecossistema do planeta. E não foi o último.

 Cerca de 15 mil anos atrás os humanos colonizaram a América, eliminando cerca de 75% dos mamíferos. Numerosas outras espécies desapareceram da África, da Eurásia e das miríades de ilhas ao redor de suas costas. O registro arqueológico de país a país conta a mesma triste história. A tragédia se abre com uma primeira cena que mostra uma população rica e diversificada de grandes animais, sem nenhum vestígio do Homo sapiens.

Na segunda cena, humanos aparecem, evidenciados por um osso fossilizado, um lança pontuda e talvez uma fogueira. A terceira cena se segue rapidamente, em que homens e mulheres ocupam o centro do palco e os animais mais grandes, juntamente com muitos pequenos, desaparecem. No total, os sapiens levaram à extinção cerca de 50% de todos os grandes mamíferos terrestres do planeta antes de cultivar o primeiro campo de trigo, moldar a primeira ferramenta de metal, escrever o primeiro texto ou cunhar a primeira moeda.

O próximo marco importante nas relações entre humanos-animais foi a revolução agrícola: o processo pelo qual nos transferimos de nômades caçadores-coletores para agricultores que viviam em assentamentos permanentes. Isso moldou uma forma de vida completamente nova na Terra: a dos animais domesticados. Inicialmente, esse desenvolvimento parece ter sido de menor importância, já que os humanos conseguiram domesticar menos de 20 espécies de mamíferos e aves, em comparação com inúmeras milhares de espécies que permaneceram “selvagens”.

No entanto, com o passar dos séculos essa nova forma de vida tornou-se uma norma. Hoje, mais de 90% de todos os animais grandes são domesticados (“grande” indica alguns animais que pesam pelo menos alguns quilogramas). Considere o frango, por exemplo. Há dez mil anos, era uma ave rara que se limitava a pequenos nichos do sul da Ásia. Hoje, bilhões de frangos vivem em quase todos os continentes e ilhas. O frango domesticado é provavelmente a ave mais difundida nos anais do planeta Terra. Se você medir o sucesso em termos de números, você vai perceber que frangos, bovinos e porcos são os animais mais rentáveis de todos os tempos.

Infelizmente, as espécies domesticadas pagaram pelo incomparável sucesso coletivo com um sofrimento individual sem precedentes. O reino animal conheceu muitos tipos de dor e miséria ao longo de milhões de anos. No entanto, a revolução agrícola criou tipos de sofrimento completamente novos, que só pioraram com o passar das gerações.

À primeira vista, os animais domesticados podem parecer muito melhores do que seus primos e ancestrais selvagens. Os búfalos selvagens gastam seus dias procurando comida, água e abrigo, e são constantemente ameaçados por leões, inundações e secas. O gato domesticado, ao contrário, goza de cuidados e proteção contra predadores e desastres naturais. É verdade que vacas e bezerros mais cedo ou mais tarde serão enviados para matadouros. No entanto, isso torna seu destino pior do que o dos búfalos selvagens? Os dentes do crocodilo são mais gentis do que as lâminas de aço?

O que torna a existência de animais domesticados e criados em fazendas particularmente cruel não é apenas a forma como eles morrem, mas sobretudo como vivem. Dois fatores concorrentes moldaram as condições de vida dos animais de fazenda: por um lado, os seres humanos querem carne, leite, ovos, couro, força animal e entretenimento; por outro, os humanos têm de garantir a sobrevivência e a produção a longo prazo dos animais de fazenda.

Teoricamente, isso deve proteger os animais da crueldade extrema. Se um produtor de leite ordenhar a sua vaca sem oferecer comida e água, a produção de leite cairá, e a própria vaca morrerá rapidamente. Infelizmente, os seres humanos podem causar um tremendo sofrimento para criar animais de outras maneiras, mesmo garantindo sua sobrevivência e reprodução.

A raiz do problema é que os animais domesticados herdaram de seus ancestrais selvagens muitas necessidades físicas, emocionais e sociais que são superabundantes nas fazendas. Os criadores rotineiramente ignoram essas necessidades sem qualquer prejuízo econômico. Eles prendem animais em pequenas gaiolas, mutilam seus chifres e caudas, separam as mães da prole e criam seletivamente monstruosidades. Os animais sofrem muito, mas eles vivem e se multiplicam.

Isso não contradiz os princípios mais básicos da evolução darwiniana? A teoria da evolução sustenta que todos os instintos e movimentos evoluíram a partir do interesse pela sobrevivência e reprodução. Sendo assim, a reprodução contínua de animais criados para consumo provará que todas as suas necessidades reais são atendidas? Como uma vaca pode ter uma “necessidade” que não é realmente essencial para a sobrevivência e reprodução?

Certamente é verdade que todos os instintos e movimentos evoluíram para atender pressões evolutivas de sobrevivência e reprodução. Quando essas pressões desaparecem, no entanto, os instintos e unidades que se formaram não se evaporam instantaneamente. Mesmo que eles não sejam mais instrumentais para a sobrevivência e para a reprodução, eles continuam a moldar as experiências subjetivas do animal. As necessidades físicas, emocionais e sociais das vacas, cães e humanos atualmente não refletem suas condições atuais, mas sim as pressões evolutivas que seus antepassados encontraram há dezenas de milhares de anos.

Por que as pessoas modernas adoram tanto os doces? Não porque no início do século 21 devemos comer vorazmente sorvete e chocolate para sobreviver. Em vez disso, é porque quando nossos antepassados da idade da pedra encontravam frutos doces e amadurecidos, a coisa mais sensata a fazer era comer o maior número possível deles e o mais rápido possível [ponderando o contexto].

Por que os jovens dirigem imprudentemente, envolvem-se em protestos violentos e hackeiam informações confidenciais de sites? Porque eles estão obedecendo antigos decretos genéticos. Há 70 mil anos, um jovem caçador que arriscou sua vida a perseguir um mamute superou todos os seus concorrentes e ganhou a mão da mais bela jovem do lugar – e agora estamos presos aos seus genes.

Exatamente a mesma lógica evolutiva molda a vida de vacas e bezerros em nossas fazendas. Os antigos animais selvagens eram animais sociais. Para sobreviver e se reproduzir, eles precisavam se comunicar, cooperar e efetivamente competir. Como todos os mamíferos sociais, o gado selvagem aprendeu as habilidades sociais necessárias por meio desse jogo. Cachorrinhos, gatinhos, bezerros e crianças gostam de brincar porque a evolução implantou esse impulso neles.

Na natureza selvagem, eles precisavam brincar. Se eles não brincassem, eles não aprenderiam as habilidades sociais vitais para sobreviver e se reproduzir. Se um gatinho ou um bezerro nascesse com alguma mutação rara que os tornasse indiferentes às brincadeiras, eles provavelmente não gozariam de habilidades para sobreviver ou se reproduzir, assim como eles não existiriam se em primeiro lugar os seus antepassados não tivessem adquirido essas habilidades. Da mesma forma, a evolução implantada em cachorros, gatinhos, bezerros e crianças é um desejo irresistível de criar um vínculo com suas mães; uma mutação casual que enfraqueceu o vínculo mãe-bebê foi a sentença de morte.

O que acontece quando os criadores pegam uma novilha, a separam de sua mãe, a colocam em uma pequena gaiola minúscula, a vacinam contra várias doenças, dão-lhe comida e água, e então, quando ela tiver idade o suficiente, a inseminam artificialmente com o esperma de um touro? De uma perspectiva objetiva, essa novilha não precisa mais de vínculos maternos ou de companheiros para sobreviver ou se reproduzir. Todas as suas necessidades estão sendo atendidas por seus mestres humanos. Mas de uma perspectiva subjetiva, a novilha ainda sente um forte desejo de se unir à sua mãe e brincar com os outros bezerros. Se esses impulsos não forem satisfeitos, ela sofrerá muito.

Esta é a lição básica da psicologia evolutiva: uma necessidade formada ao longo de milhares de gerações continua a ser sentida subjetivamente, mesmo que não seja mais necessária para a sobrevivência e para a reprodução no tempo presente. Tragicamente, a revolução agrícola deu aos humanos o poder de garantir a sobrevivência e reprodução de animais domesticados, ignorando suas necessidades subjetivas. Em consequência, os animais domesticados são coletivamente os animais mais bem-sucedidos do mundo e, ao mesmo tempo, são individualmente os animais mais miseráveis que já existiram.

A situação piorou nos últimos séculos, período em que a agricultura tradicional cedeu à agricultura industrial. Nas sociedades tradicionais, como a do Antigo Egito, do Império Romano ou da China Medieval, humanos tinham uma compreensão muito parcial da bioquímica, genética, zoologia e epidemiologia. Consequentemente, seus poderes de controle e manipulação foram limitados. Nas aldeias medievais, as galinhas corriam livremente entre as casas, colhendo sementes e minhocas com o bico, e criando ninhos no celeiro. Se um campesino ambicioso tentasse confinar mil galinhas, mantendo-as em um espaço lotado, uma epidemia mortal de gripe aviária provavelmente teria eliminado todas as galinhas, assim como muitos aldeões.

Nenhum padre, xamã ou feiticeiro poderia ter impedido isso. Mas uma vez que a ciência moderna decifrou os segredos de aves, vírus e antibióticos, os seres humanos começaram a sujeitar os animais a condições de vida extremas. Com a ajuda de vacinas, medicamentos, hormônios, pesticidas, sistemas de ar condicionado e alimentadores automáticos, agora é possível colocar dezenas de milhares de frangos em pequenas gaiolas e produzir carne e ovos com uma eficiência sem precedentes.

O destino dos animais em tais instalações industriais tornou-se uma das questões éticas mais urgentes do nosso tempo, certamente em termos de números. Hoje em dia, a maioria dos grandes animais vive em fazendas industriais. Imaginamos que nosso planeta é povoado por leões, elefantes, baleias e pinguins. Isso pode ser verdade para o canal National Geographic, filmes da Disney e contos de fada infantis, mas já não é verdade para o mundo real. O mundo possui 50 mil leões. Em contraste, há cerca de um bilhão de porcos domesticados, 500 mil elefantes e 1,5 bilhão de bovinos domesticados; 50 milhões de pinguins e 20 bilhões de frangos.

Em 2009, havia 1,6 bilhão de aves selvagens na Europa, contando todas as espécies juntas. No mesmo ano, a indústria europeia de carne e ovos aumentou a produção de frangos para 1,9 bilhão. No total, os animais domesticados do mundo pesam cerca de 700 milhões de toneladas em comparação com 300 milhões de toneladas para humanos e menos de 100 milhões de toneladas para grandes animais selvagens.

É por isso que o destino dos animais de fazenda não é uma questão ética unilateral. Refere-se à maioria das grandes criaturas da Terra: dezenas de bilhões de seres sencientes, cada um com um mundo complexo de sensações e emoções, mas que vivem e morrem em uma linha de produção industrial. Há 40 anos, o filósofo moral Peter Singer publicou o seu livro canônico “Libertação Animal”, que fez muito para mudar a mente das pessoas sobre essa questão. Singer afirmou que a agropecuária é responsável por mais dor e miséria do que todas as guerras da história juntas.

O estudo científico dos animais tem desempenhado um papel sombrio nesta tragédia. A comunidade científica usou seu crescente conhecimento sobre os animais principalmente para manipular suas vidas de forma mais eficiente a serviço da indústria humana. No entanto, esse mesmo conhecimento demonstrou, sem qualquer dúvida razoável, que os animais de fazenda são seres sencientes, com relações sociais intrincadas e padrões psicológicos sofisticados. Eles podem não ser tão inteligentes quanto nós, mas certamente conhecem a dor, o medo e a solidão. Eles também podem sofrer, e eles também podem ser felizes.

Já é tempo de levar essas descobertas científicas ao coração, porque, à medida que o poder humano cresce, a nossa capacidade de prejudicar ou beneficiar outros animais cresce com ela. Por quatro bilhões de anos, a vida na Terra foi governada pela seleção natural. Agora é governada cada vez mais pelo design inteligente. Biotecnologia, nanotecnologia e inteligência artificial permitirão aos seres humanos remodelar os seres vivos a partir de novas formas ainda mais radicais, que redefinirão o próprio significado da vida. Quando chegarmos a projetar esse admirável mundo novo, devemos levar em consideração o bem-estar de todos os seres conscientes, e não apenas do Homo sapiens.

O artigo “Industrial farming is one of the worst crimes in history”, de autoria do professor de história israelense Yuval Noah Harari, foi publicado em 25 de setembro de 2015 no jornal britânico “The Guardian”. Harari conquistou fama internacional após a publicação do best-seller “Sapiens: Uma Breve História da Humanidade”, lançado oficialmente em 2014.

Tradução: David Arioch

 




 

Nem todos os jovens que cometem delitos são irrecuperáveis

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Arte: Banksy

Me recordo que na minha adolescência eu e alguns amigos assistíamos aqueles filmes em que professores realizavam trabalhos de recuperação social dos piores estudantes em escolas dos Estados Unidos. Alguns alunos eram usuários de drogas, ladrões, entre outros. Isso emocionava toda a gente.

Achavam lindo ver aquela transformação na telinha. inclusive quando os filmes eram exibidos nas escolas, todo mundo ficava emocionado. Alguns até choravam. As pessoas amavam esse tipo de filme. Será que é porque era apenas ficção e se passava nos Estados Unidos? Quero dizer, se for algo real e próximos de nós, não devemos cogitar a possibilidade de um trabalho de recuperação?

Acredito que podemos sim. E posso citar como exemplo a minha experiência. Frequento a Vila Alta, um dos bairros mais pobres de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, desde 2009, onde tento contribuir como posso, e de forma voluntária. Quero dizer, não ganho nada pra isso. Nunca ganhei. Claro, a não ser satisfação em contribuir. Inclusive fiz reportagens, artigos e documentários sobre essa realidade.

Lá, conheci dezenas de garotos que já cometeram delitos, e muitos são recuperáveis. Posso citar inúmeros que não praticaram mais nenhum crime. Um deles mudou de vida depois que conseguimos uma mochila e uma porção de materiais escolares. Então, sim, em oito anos mantendo contato com jovens que já se envolveram em “coisas erradas”, posso dizer com alguma propriedade que vale a pena acreditar nessa molecada, nem todos estão perdidos. Se você não acredita, que tal se perguntar o que você pode fazer para ajudar a mudar isso?

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June 18th, 2017 at 8:52 pm

Sobre “justiça com as próprias mãos”

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Tatuagem feita como forma de “punição” (Foto: Reprodução)

Sobre o garoto de 17 anos que, após uma tentativa de furto de uma bicicleta, teve a testa tatuada com as palavras “Eu sou ladrão e vacilão”. Sim, sou contra o que fizeram com ele. Acredito que o mundo está se tornando um semeadouro de impaciência, e todos os dias as pessoas perdem um pouco mais de sensibilidade e plasticidade. A cada ano que passa a vida vale um pouco menos. Muitos se consideram aptos a decidir quem merece viver e quem merece morrer.

Mas o problema maior subsiste no fato de que com o crescimento dessa linha de pensamento é inevitável pensar na possibilidade de que o mundo pode se tornar um lugar muito pior. Vejo isso como um retorno ao primitivismo. Já não é mais velado o desejo do retorno da Lei de Talião, do Código de Hamurabi.

A violência insufla as pessoas de um tipo peculiar de medo que faz com que elas matem ou desejem a morte de outrem não porque acham que é a única forma de sobreviver, mas sim porque são alimentadas diariamente pela ideia de que a vida tem pesos diferentes e valores estimáveis.

Há muitas pessoas que não apenas consideram a violência como algo intrínseco à realidade, como acham justo tomar parte nela. É aquela consciência de que se as leis não funcionam corretamente, posso criar as minhas próprias. Ou seja, serei o senhor de meus atos e ninguém terá o direito de me deter, já que rejeito e condeno os mecanismos de justiça da atualidade.

Outro agravante é o fato de que se todos alimentarem um senso de justiça individualista, não há de tardar para as pessoas menosprezarem um pouco mais a vida. Sendo assim, um indivíduo pode achar justo matar alguém porque invadiu sua casa.

Outro pode considerar plausível assassinar uma pessoa porque lhe deve dinheiro ou porque arranhou a pintura do seu carro em um acidente. O justo seria um criminoso aos olhos do injusto e vice-versa. Sendo assim, se seguíssemos nessa direção, não seria tão obtuso acreditar no futuro como o prólogo do fim da humanidade.

Até hoje me recordo do caso de um pai que, por engano, matou o próprio filho a tiros em Joanesburgo, na África do Sul. Em uma madrugada, o garoto foi confundido com um ladrão quando estava atravessando o quintal para entrar dentro de casa.

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June 11th, 2017 at 11:13 pm

Uma tentativa de furto

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Vi um cara de costas tentando abrir a porta do meu carro

No sábado, quando eu estava perto da rodoviária, esqueci meu celular no carro. Quando voltei para buscar, vi um cara de costas tentando abrir a porta do meu carro.

— Cara, o que você está fazendo aí?

— Ô parceiro, foi mal mesmo. Deixei cair algo aqui perto da porta. Perdão…

— É mesmo? Então me mostre aí o que você perdeu.

— Peraí. Tô procurando aqui.

— Não estou vendo nada.

Quando cheguei mais perto, reconheci o sujeito. Era um garoto que conheço há anos.

— Cara, você estava tentando abrir o a porta do meu carro. Sério mesmo que você achou que isso fosse uma boa ideia?

— Ah, mano! Não é nada disso não. Te disse.

— Rapaz, meu carro é legal, pode até render uma grana, mas você acha que ele vale mais do que sua vida? Sua liberdade? Conheço sua família. Seu pai vive em uma cadeira de rodas e sua mãe ganha a vida trabalhando até anoitecer fazendo faxina. São gente boa. Não merecem isso. O que tem de errado contigo?

— Ah, mano! Que se foda! Ninguém dá emprego, então tô arriscando.

— E valeu a pena se arriscar? E se eu fosse um desconhecido armado? Um cara agressivo poderia atirar em você ou te matar a pancadas por causa disso. Não se importa de ser preso também?

— Sei lá, mano! Só vi o carro de longe e colei aqui. Não pensei em nada não. Nem sabia que era seu.

— Não faça isso não, cara. Não sabia que você tinha virado ladrão. Tem quanto tempo isso?

— Tô sem trampo tem meses, doido. E a mulher lá já disse que vai mandar prender se não pagar a pensão da criança de novo. Então prisão por prisão, tá tudo na merda mesmo.

— Você já cometeu outros crimes?

— Só coisa pouca, tipo radinho, duas, três vezes.

— Você tem que idade?

— 21…

— Rapaz, sai dessa vida porque isso vai ficar caro pra você.

— E vou fazer o que?

— O que você sabe fazer? Terminou o ensino médio?

— Terminei sim, mano. Mas só trabalhei como servente de pedreiro até hoje, mas ninguém tá pegando.

— Sei, cara. Vou aliviar essa pra você, mas se eu souber que você tem aprontado, não vou deixar quieto não. E vou procurar me informar sobre o que você anda fazendo por aí. Outra coisa, segunda-feira você vai aparecer nesse endereço aqui às 7h30 sem falta. Já vou deixar avisado. Se você der mancada comigo…

Hoje, passei em uma obra no final da tarde para falar com um amigo que é construtor.

— O rapaz realmente leva jeito. Se ele mantiver o ritmo, vamos ver se colocamos ele num curso de pedreiro.

— Boa notícia. Bom saber disso.

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May 30th, 2017 at 1:16 am

Algo não precisa ser ilegal para ser errado

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A Criminal Case, de Honoré Daumier

A materialização imaginativa do crime muitas vezes impede as pessoas de cometerem delitos não porque é errado, mas porque elas têm receio da punição. Justo é quando se reconhece que algo é errado independente de ser considerado ou não ilegal; quando as pessoas mostram com ações que mesmo que algo não seja considerado um crime, ainda assim elas jamais o fariam.

 





Written by David Arioch

May 16th, 2017 at 3:26 am

Posted in Reflexões

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Bandido bom é bandido morto?

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Vocês nunca me verão reproduzindo o discurso “Bandido bom é bandido morto”, até porque penso que toda generalização é equivocada. Acompanho a realidade da periferia de Paranavaí de perto desde 2009. Nesse período, conheci muitas crianças e adolescentes que se afastaram do crime e das drogas graças à intervenção de voluntários, pessoas que decidiram ajudar em vez de criticar. Se ninguém tivesse feito nada, esses jovens teriam morrido, rendidos às drogas ou assassinados por desafetos, já que é mais comum a morte entre eles do que em confrontos com a polícia.

Na periferia de Paranavaí, a polícia costuma atuar de forma bastante consciente e são mais comuns e recorrentes os casos de prisões, não de mortes, o que acredito ser muito positivo. Ademais, falando no geral e baseando-me na minha própria experiência, quero dizer, de alguém que acompanha a realidade da periferia há quase sete anos, inclusive estudando e escrevendo sobre isso, posso dizer que a maioria das crianças e adolescentes que conheci e que se envolveram com o mundo do crime praticavam pequenos delitos. Creio que esse seja o momento mais crucial para fazer um trabalho de recuperação social.

Acredito sim que a mudança ainda é possível. Apostar todas as fichas no exercício máximo da violência, sustentada na premissa de que todo bandido deve ser morto, me parece radical demais, e não contempla todas as variáveis envolvendo a criminalidade no Brasil. Creio que a punição deve ter sempre o respaldo da lei, mesmo que ela ainda seja falha e precise de revisões. Há quem diga que crianças e adolescentes que se tornam bandidos merecem morrer, que entraram nesse caminho porque quiseram, mesmo consciente das implicações.

Bom, eu discordo. Minha contrariedade subsiste no fato de que quase todos os jovens delinquentes que conheci até hoje eram filhos de prostitutas, ladrões, usuários de drogas, traficantes ou foram criados nas ruas, sem família ou qualquer referência moral. Quando converso com jovens em bairros periféricos, percebo que muitas vezes o crime está tão naturalizado no universo deles, que eles têm dificuldade em ver isso como errado, mesmo que o preço a ser pago seja a prisão ou a vida. Eles encaram como uma aventura, um jogo de videogame, e veem suas próprias vidas como tão insignificantes que não se importam em se colocar em situação de alto risco.

“Se eu morrer ou ser preso, provavelmente ninguém vai sentir minha falta, então que assim seja”, já ouvi várias vezes de jovens com idade a partir de dez anos. Há um predomínio amoral, até pela falta de sólidas referências. O que posso dizer sobre isso? Por que não ir até a periferia da sua cidade e tentar contribuir de alguma forma em vez de reproduzir o discurso “bandido bom é bandido morto”? Não tenho dúvida alguma de que a sensação em contribuir para tirar alguém do mundo do crime ou das drogas é muito melhor do que aquela de comemorar a morte de um jovem desconhecido.

Written by David Arioch

November 20th, 2016 at 7:24 pm

A vida de Jero ou fado de um jovem ladrão

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“O maluco me colocou na mira de um traficante, falando que eu estava de olho na boca de fumo do mano”

Na semana passada, fui até a Vila Alta, onde conversei com Jero, garoto alto e magro de 16 anos. Sentado no meio-fio, me convidou para sentar numa cadeira com corda de nylon. Empolgado e sorridente, contou que conseguiu um “bico” que o fez sentir-se útil pela primeira vez em muito tempo. “Tô recebendo pra ajudar na limpeza e organização de uma casa daqui da vila mesmo. Já rodei o centro da cidade em busca de trabalho, mas a resposta é sempre a mesma. Acho que eles têm vagas sim, só que não pra menor de idade”, lamenta.

De bermuda, chinelos e sem camiseta, Jero diz pra esperar um pouco que ele vai buscar “um café”. Logo retorna com uma garrafa térmica e uma caneca plástica. “É pra você! Coloca aí!”, diz naturalmente, sem cerimônia. Não costumo beber café, mas tomo um gole em deferência. Embora muito jovem, Jero tem algumas cicatrizes no corpo que revelam conflitos e violência. É como se sua pele contasse sua própria história. Criado nas ruas, em meio à pobreza, foi preso pela primeira vez há dois anos, depois de roubar um “radinho”, como chama os smartphones.

“Já peguei um lá pelos lados da Praça dos Pioneiros. Era só dar bobeira que eu passava na mão leve”, conta. Por causa de pequenos delitos, Jero ficou preso quatro vezes. Três vezes foi encaminhado para o Centro de Socioeducação (Cense) de Paranavaí. Na quarta, o enviaram para o Cense de Cascavel, no Oeste do Paraná. “Gostei mais de lá porque a galera é mais humilde. Quem tá preso lá é mais de boa. Não tem tanta rivalidade como no Cense daqui. Aqui um fica querendo ferrar o outro. É briga de gangue, mano”, comenta esfregando uma das mãos pelos cabelos descoloridos.

Durante a conversa, em cada frase de Jero há sempre alguma palavra que nunca ouvi. O seu vocabulário é tão incomum que até mesmo quem é da Vila Alta tem dificuldade de entender – a não ser os mais jovens que passam o dia nas ruas. A linguagem de Jero é uma mixórdia de referências popularizadas na periferia, onde neologismos e regionalismos se misturam o tempo todo. Nas vezes em que foi preso por furto e roubo, o garoto não chegou a confrontar a vítima ou agredi-la no ato do crime. Não tem o costume de usar armas. “Só que é sujo isso aí. Não vale a pena. E lá na cadeia você sempre encontra um inimigo. É ruim demais ficar preso”, afirma enquanto acende um cigarro paraguaio e dá uma tragada, assoprando fumaça com o esmero de uma criança desenhando paisagem com o dedo no chão de terra.

Além do “careta”, Jero também gosta de fumar maconha. Não todos os dias, mas ainda assim com certa regularidade. Relata que conhece todo tipo de droga, só que nunca se interessou em usar nada mais “pesado”. “Crack é pra quem quer virar escravo ou zumbi. Você cai numa noia tão zuada que esquece até quem você é. Deixa o cara louco. Quem vende crack também se lasca porque tem que aguentar gente colando no seu barraco até de madrugada mendigando pedra. Mano, tu acaba com a vida de muita gente e não ganha quase nada. O dinheiro é dos graúdos”, comenta.

Na terceira vez em que foi preso, Jero ficou sabendo que outro adolescente com quem tinha uma querela de longa data também estava no Cense. “O maluco me colocou na mira de um traficante, falando que eu estava de olho na boca de fumo do mano. Armou pra mim. Queria me ferrar. Inventou mais umas histórias”, garante. Crente de que mais cedo ou mais tarde algo aconteceria, Jero se antecipou.

Um dia pegou a própria escova de dente, quebrou a cabeça e começou a afiná-la, deixando-a pontiaguda. A escondeu dentro da bermuda, até que numa ocasião, após a aula, caminhou a passos leves até o seu desafeto. Enraivecido, gritou o nome do inimigo e ocultou sob os dedos o estoque feito com a escova de dentes. Quando o garoto se aproximou, ele o golpeou quatro vezes na barriga. “Ou eu dava nele ou ele dava em mim. Preferi sair na frente. A intenção não era matar. Fiz isso pra mostrar que não tenho medo dele. O papo é um só – se vier, vai levar!”, justifica, baseando-se em um senso de justiça particularista.

O sangue descia e Jero só assistia, até que a vítima foi socorrida e encaminhada à Santa Casa de Paranavaí com vários ferimentos, embora nenhum grave. Depois do ataque, Jero foi transferido para o Cense de Cascavel, onde cumpriu pena. Quando o soltaram, retornou a Paranavaí e decidiu se afastar do crime, opção que pouco pesou na consciência de seus inimigos. “Tem gente querendo me matar ainda. Sei disso”, admite com sorriso dúbio e plangente. De temperamento volátil, Jero foi convencido por alguns “amigos” a participar do furto de um “radinho” e de uma bicicleta.

Na última segunda-feira, fiquei sabendo que ele foi preso novamente. Minha intenção era fazer mais uma entrevista e tirar algumas fotos, mesmo que velando seu rosto. Não deu tempo. Há quem acredite que há males que vêm para o bem. No dia em que Jero retornou à prisão, um detento ganhou a liberdade – um traficante que jurou que o mataria no dia em que fosse solto. Na Vila Alta dizem que Jero se envolveu com a ex-namorada do sujeito. Por enquanto sua salvação está assegurada no ambiente que até então mais desprezava – a cadeia.

Saiba Mais

Jero é um apelido fictício para preservar a identidade do entrevistado.

A Vila Alta fica na periferia de Paranavaí, Noroeste do Paraná.

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O dia em que Pedro Tenório assassinou Alma de Gato e Bartolo no Líder Bar

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Crime aconteceu no centro de Paranavaí no dia 8 de agosto de 1964

Líder Bar (ao fundo), cenário de um dos crimes mais macabros da região na década de 1960 (Acervo: João Carlos Antunes)

Líder Bar (ao fundo), cenário de um dos crimes mais macabros da região na década de 1960 (Acervo: João Carlos Antunes)

No dia 8 de agosto de 1964, um homem bebendo no Líder Bar, na Avenida Paraná, perto do cruzamento com a Rua Getúlio Vargas, no centro de Paranavaí, explicou a um conhecido que estava negociando a venda de uma fazenda que pertencia a uma família de gaúchos em Querência do Norte. “Vou fechar esse negócio, daí pago a minha dívida, né?”, enfatizou o homem, de acordo com Honório Bonfadini, um dos proprietários do Líder Bar na época, que acompanhou a conversa diante do balcão.

Quando chegou a hora de formalizar a venda, o negociante chamado Pedro Tenório se sentiu lesado porque a transação não foi concluída e ele perdeu a chance de ganhar uma boa comissão. Dois dias depois, retornou ao bar por volta do meio-dia. O local estava lotado, tanto que não havia mais cadeiras e mesas disponíveis. Então Tenório se aproximou do balcão e caminhou até dois homens que conversavam. Sem dizer palavra, sacou um revólver de calibre 44, puxou Onofre de Oliveira, mais conhecido como Alma de Gato, pelo braço e deu-lhe um tiro à queima-roupa no peito.

Alma de Gato foi sepultado na gaveta superior e Bartolo na gaveta inferior do Cemitério Municipal de Paranavaí (Foto: David Arioch)

Alma de Gato foi sepultado na gaveta superior e Bartolo na gaveta inferior do Cemitério Municipal de Paranavaí (Foto: David Arioch)

Bartolo Sanches Perez, que estava ao lado do amigo ferido, ficou inerte, com os olhos estalados. Antes que reagisse, também foi alvejado no peito. Os dois caíram lado a lado enquanto o sangue se misturava no chão do bar. Durante a ação, alguns fregueses tremiam assustados e encolhidos embaixo das mesas. Outros ficaram tão desesperados que correram em direção à Avenida Paraná. “Todo mundo saiu de perto quando ouviu o primeiro tiro. O atirador não chegou a quebrar nada. Só furou a parede e o forro”, relata Bonfadini.

Com calma, Tenório abaixou o revólver e saiu do bar da mesma forma que entrou, ou seja, calado. “Havia muito sangue no chão e muito medo nos olhos de quem presenciou esse crime”, relata o pioneiro João Mariano. O atirador caminhou com tranquilidade até a Rua Getúlio Vargas, onde foi abordado pelo tenente Walter Porto, da Polícia Militar. Não resistiu à prisão e ainda confidenciou que sua intenção era ir até outro bar assassinar mais duas pessoas que segundo ele faziam parte do grupo que interferiu em seus negócios. Feridos gravemente, Alma de Gato e Bartolo acabaram falecendo no hospital.

O pioneiro e ex-prefeito Deusdete Ferreira de Cerqueira se recorda que foi procurado por João Tenório para testemunhar a favor de Pedro Tenório. “Ele era de família abastada. Eu me dava bem com esse parente dele. Mas um dia ele passou na minha casa e disse: ‘É sobre o Pedro, sei que você faz parte do júri popular e quero pedir que salve ele’. Aí expliquei: ‘Ô Seu João, pra mim é difícil. A única coisa que você pode fazer é pedir pra me tirar do júri porque se eu for lá eu condeno ele. Tenho minha consciência e meu senso de justiça’”, lembra.

Deusdete Cerqueira, Honório Bonfadini e João Mariano conheciam Pedro Tenório e as vítimas (Foto: David Arioch)

Deusdete Cerqueira, Honório Bonfadini e João Mariano conheciam Pedro Tenório e as vítimas (Foto: David Arioch)

Após a condenação, Tenório foi transferido para Curitiba. O que o motivou a matar Alma de Gato e Bartolo foi o desejo de vingança e a sensação de impunidade. “Ele tinha amizade com um juiz e um escrivão que se dispuseram a ajudar ele. Ou seja, tudo gente boa”, ironiza Honório Bonfadini, lembrando que era muito comum as pessoas andarem munidas de revólveres de calibre 22 e 38 em 1964.

O duplo homicídio repercutiu tanto que se tornou o assunto mais falado na região por semanas. Inclusive a polícia exigiu que os Bonfadini fechassem o Líder Bar por alguns dias, reabrindo numa segunda-feira. “E tudo isso por causa da corretagem de uma fazenda. Naquele tempo as pessoas matavam facilmente por causa de comissão de terras. Ainda bem que os outros não quiseram se vingar porque senão ia acabar não sobrando ninguém”, pondera Deusdete.

Vizinho de Bartolo Sanches Perez, o pioneiro João Mariano conta que ele era tranquilo e educado. “Uma vez ele passou por uma situação difícil quando o filho dele foi laçar um boi e o animal o arrastou. Levaram o rapaz ao médico e ele se recuperou, mas ficou sem a mão”, confidencia.

Mariano também defende que Alma de Gato, homem alto e magro que conheceu em 1955, não era má pessoa. “Eu era mais novo que o Alma de Gato e tive o primeiro contato com ele em 1953, um ano depois que cheguei em Paranavaí. A propriedade onde moro hoje [Estância Reno] era do pai dele. Tinham uma fazenda enorme, com muito café e mato. Quando comprei, já tinham loteado. O forte deles sempre foi a cafeicultura”, garante Cerqueira.

Curiosidades

Alma de Gato e Bartolo estão sepultados na primeira seção de gavetas do Cemitério Municipal de Paranavaí.

Alma-de-Gato é o nome de um pássaro originário da Amazônia que tem a cauda longa, o peito acinzentado e a plumagem cor de ferrugem.

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Uma manhã de sangue e morte no Bar do Beni

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Traídos por amigos, Canjerana e Macaúba foram assassinados a tiros em 4 de julho de 1955

Manoel Canjerana quando ainda morava em São Paulo nos anos 1930 (Foto: Acervo Familiar)

Manoel Canjerana quando ainda morava em São Paulo nos anos 1930 (Foto: Acervo Familiar)

No dia 4 de julho de 1955, uma segunda-feira, Manoel Rocha, o Macaúba, trajava a sua inseparável capa de gabardine, a mesma usada pelos mafiosos sicilianos da década de 1920, quando passou de manhã na casa de Manoel Alves Canjerana e o convidou para ir até o Bar do Beni, atual Cartório Tomazoni, na Rua Marechal Cândido Rondon, ao lado da Banca do Wiegando. Nem o frio e a chuva que enturveciam Paranavaí, no Noroeste do Paraná, impediu os dois amigos baianos de percorrerem o centro da cidade.

Antes de sair, Canjerana ajeitou a postura, o paletó, o lenço no pescoço e um chapéu de feltro da Casa Ferreira. Chegando ao local, Macaúba entrou no bar e Canjerana ficou do lado de fora, sentado em um banco de madeira enquanto Daniel, um garotinho de não mais que 12 anos, engraxava suas botas. “Ele tinha o costume de ir lá. Só usava botas e gostava de deixar elas brilhando”, conta a filha Nair Alves Silva que estava com 20 anos.

Quando ouviu um tiro, Canjerana, que pela primeira vez saiu desarmado de casa, se levantou rapidamente para checar o que estava acontecendo dentro do bar. Não teve tempo nem de dar alguns passos quando recebeu dois balaços no peito, atravessando o seu pulôver cinza como o céu daquele dia de inverno. Com as costas escoradas sobre as tábuas do boteco, tentou resistir, mas escorregou vagarosamente até cair sentado e cabisbaixo, com o chapéu caído e as pernas entreabertas.

A esposa, Ana, aos 40 anos não imaginava que o marido não retornaria para comer a marmita quentinha que ela preparou e deixou em cima do fogão à lenha, o aguardando. Aos 54 anos, Canjerana estava morto, vitimado por hemorragia interna, transfixação do miocárdio e pulmão, segundo a certidão de óbito. Quando escutou que o seu pai tinha sido alvejado, Jurandir, de 13 anos, correu até o Bar do Beni. Era tarde demais.

Crime aconteceu na Rua Marechal Cândido Rondon, onde é hoje o Cartório Tomazoni (Foto: Acervo Familiar)

Crime aconteceu na Rua Marechal Cândido Rondon, onde é hoje o Cartório Tomazoni (Foto: Acervo Familiar)

Macaúba, de 47 anos, que antes levou um tiro certeiro no ouvido disparado por Pedrinho, um rapaz que também era amigo das vítimas, foi socorrido por quatro homens e carregado com os braços abertos, o rosto mirando o céu e as mãos cobertas pelas mangas longas da capa de gabardine. Ainda com vida, o colocaram sobre a carroceria de um caminhão usado no transporte de madeira, onde dividiu o espaço com o amigo já morto. No Hospital Professor João Cândido Ferreira, atual Praça da Xícara, o homem faleceu.

O autor do assassinato de Canjerana se chamava Napoleão, um rapaz que na noite anterior sentou-se na beira da cama do baiano. “No domingo, meu pai não estava bem e ele veio aqui em casa desejar melhoras. Pegou comida direto do nosso fogão à lenha e comeu com a gente. Meu pai o tratava como um filho”, confidencia Nair. À época, Manoel Canjerana recebeu um convite para trabalhar no Mato Grosso. Recusou porque queria aguardar o nascimento do neto. “Ele achou que seria menino. Tive uma filha que ele nem chegou a ver”, enfatiza.

População cercou o caminhão usado para transportar Canjerana e Macaúba (Foto: Acervo Familiar)

População cercou o caminhão usado para transportar Canjerana e Macaúba (Foto: Acervo Familiar)

Dias após o crime, quando estava preso, Napoleão pediu para a mãe de Nair ir até a delegacia porque ele queria se desculpar. “Minha mãe não foi. Disse que isso não tinha perdão. Pra gente foi uma situação tumultuada porque eu estava grávida da minha primeira filha e passei muito mal, tanto que ela nasceu na outra semana”, revela. A família preferiu esquecer o passado e seguir a vida, até porque dos seis filhos de Canjerana a única adulta era Nair Alves.

Um ano depois souberam da libertação de Napoleão e Pedrinho. A soltura foi motivada por influência política. O duplo homicídio teve tanta repercussão no Paraná que jornalistas dos principais veículos de comunicação do estado vieram a Paranavaí. “O que aconteceu foi terrível para as duas famílias. O Macaúba tinha quatro ou cinco filhos”, lamenta Nair Alves Silva, acrescentando que ninguém sabe quais foram os motivos do crime.

Canjerana conheceu Paranavaí em 1949

Nascido em 1900 em Bom Jesus da Lapa, na Bahia, Manoel Alves Canjerana se mudou para São Paulo com Ana Alves em 1930. No mesmo ano, trouxe de Recife, Pernambuco, uma garrafa de pinga de porcelana feita no Engenho São João, um artigo que até hoje está conservado em ótimo estado. “Minha mãe tinha 18 anos quando deixou a Bahia. Eles se casaram em Jabuticabal, São Paulo, e de lá foram para Piquerobi, onde ele trabalhou de guarda-livros, o contador da época”, relata a filha Nair Alves.

Nair Alves com o pulôver usado pelo pai no dia do assassinato (Foto: Amauri Martineli)

Nair Alves com o pulôver usado pelo pai no dia do assassinato (Foto: Amauri Martineli)

Anos depois, se mudaram para Presidente Venceslau, onde Manoel Canjerana atuou como fiscal de colonos em fazendas de café. Só saiu do interior de São Paulo quando o candidato a prefeito que apoiou perdeu a eleição, custando-lhe o emprego. “Ele era doido por política. Saiu procurando serviço, mas não encontrou. Ouviu falar da Fazenda Brasileira [atual Paranavaí] e veio pra cá sozinho em 1949. Em 6 de janeiro de 1951, trouxe todo mundo. Dos seis filhos, eu era a mais velha”, destaca Nair.

A família se surpreendeu ao se deparar com uma “cidadezinha” com casinhas cobertas de tabuinhas. “Ficamos em um hotel perto de onde é hoje os Correios porque não tínhamos arrumado uma casa ainda”, afirma. Na Brasileira, Canjerana começou a atuar como fiscal de peões para um homem de sobrenome Saião. “Depois trabalhou para o comendador Remo Massi”, frisa a filha. Em Paranavaí, conheceu o também baiano Manoel Rocha, o Macaúba, que desempenhava a mesma função. Logo se tornaram vizinhos e amigos.

O baiano fiscalizava uma turma de peões na mata

Em 1954, Manoel Canjerana levava para a mata uma caderneta comprida de capa dura escura em que anotava todas as despesas dos peões. Tudo era cobrado, até mesmo a comida e a enxada usada no serviço de capina. Detalhista, o baiano registrava o máximo possível de informações. Ao final, anotava o valor da dívida e quanto cada peão poderia receber pelo serviço. Alguns chegavam a gastar mais do que ganhavam, o que deixava o trabalhador comprometido com o dono da fazenda.

A filha Nair se recorda das vezes em que viu o caminhão partindo com uma turma de peões e muitos fardos de alimentos, principalmente jabá. Na mata a comida era preparada por uma cozinheira conhecida como Dona Alaíde. Quando retornavam a Paranavaí, após até mais de dois meses longe de casa, a chegada dos peões na madrugada era marcada por grande euforia em cima do caminhão. Do alto da carroceria, o som de uma sanfona, a cantoria e as muitas batidas de pé acordavam dezenas de famílias nas imediações da Avenida Rio Grande do Norte.

Caderneta em que o baiano anotava todas as despesas dos peões (Foto: Amauri Martineli)

Caderneta em que o baiano anotava todas as despesas dos peões (Foto: Amauri Martineli)

De vez em quando Canjerana convidava amigos, colegas de trabalho e autoridades locais para almoçarem em sua residência perto dos Correios. “Não dispensava a carne de jeito nenhum e odiava verduras. Sempre que faço salada lembro que ele dizia que não comia mato”, revela Nair.

“Falavam que meu pai e o Macaúba eram jagunços”

Na década de 1950, Manoel Canjerana e Manoel Macaúba eram nomes que inspiravam muito medo nos moradores de Paranavaí. “Falavam que meu pai e o Macaúba eram jagunços. Sei que eles saíam pra derrubar mato. Alguns diziam que os dois eram chamados para expulsar invasores de fazendas. Se um dia trabalharam para grileiros, isso eu nunca soube”, garante Nair Alves Silva que sempre teve uma imagem bem diferente do pai e também de Macaúba, a quem considerava o amigo mais fiel, educado e cordial de Canjerana.

A filha se recorda das vezes em que viu os dois amigos felizes, cantando música caipira nos bares de Paranavaí. A preferida era “Chico Mineiro”, de autoria de Tonico e Tinoco, um hino caboclo que celebra a amizade. Nair admite que tinha mais liberdade para conversar abertamente sobre qualquer assunto com o pai do que com a mãe. “Ele falava sorrindo: ‘Filha, tô vendo alguém passar ali e não sei não, hein? Acho que ele quer alguma coisa. E já sem graça eu respondia: ‘Ah pai, nem vi!’”, confidencia.

No dia em que o namorado de Nair decidiu pedi-la em casamento, o rapaz ouviu muitas críticas de amigos e conhecidos. “Você tá namorando a filha daquele homem? Aquele sujeito é um perigo!”, narra a filha de Manoel Canjerana. Apesar da campanha contra, o rapaz insistiu. Combinaram um jantar, mas na hora o jovem ficou hesitante. Já impaciente, depois de coçar a barriga algumas vezes, Canjerana falou: “Ué, você não veio falar um negócio aqui comigo? Então fala!” Assim que explicou que queria pedir a mão de Nair em casamento, o baiano comentou: “Então tá falado. Tô dando a mão dela em casamento!” Surpreso com a resposta, o rapaz sorriu e saiu mais do que satisfeito da casa da família Canjerana.

Saiba Mais

Nair Alves Silva nasceu no distrito de Vera Cruz, em Marília, São Paulo, mas foi criada em Pequerobi e Presidente Venceslau.

Foi a filha Nair quem fez o pulôver usado por Canjerana no dia do assassinato.

Outros fiscais que trabalhavam com o baiano eram conhecidos como Preto e Galvão.

Curiosidade

Canjerana e macaúba são nomes de árvores. A primeira possui uma madeira vermelha mais nobre do que o cedro e a segunda é uma palmeira conhecida como o “ouro brasileiro”.

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O homem que sobreviveu a três tentativas de assassinato

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Nebrão: “Dei como certa a minha morte. Ouvi só o barulho acionado pelo gatilho, mas a bala não veio”

Na Vila Alta, quem ingressa no crime precisa de sorte para chegar aos 25 anos (Foto: David Arioch)

Na Vila Alta, quem ingressa no mundo do crime precisa de sorte para chegar aos 25 anos (Foto: David Arioch)

Quem conversa com o pacato Nebrão, de 33 anos, não imagina que ele já foi um dos homens mais perseguidos da Vila Alta, na periferia de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Comunicativo e de fala mansa, hoje se orgulha da vida tranquila e também de ter evitado que crianças e adolescentes entrassem ou continuassem no mundo do crime.

“Saí desse caminho errado graças a Deus. Já fui ladrão sim. Também me envolvi em outras coisas erradas. Não posso negar meu passado, mas me distanciei dessa vida sem futuro”, garante enquanto exibe inúmeras cicatrizes, principalmente marcas de facadas. De origem pobre e sem estrutura familiar, Nebrão é um raro exemplo de sobrevivência, ainda mais levando em conta que no bairro onde foi criado quem se torna criminoso precisa de sorte para chegar aos 25 anos.

O rapaz perdeu muitos amigos de infância e adolescência nos anos 1990, quando uma onda de terror tomou conta do bairro. Naquele tempo, a Vila Alta era conhecida como Vila do Sossego. “Muita gente foi pra debaixo da terra e outro monte pra cadeia. Era bandido matando bandido. É até difícil citar uma rua onde não morreu ninguém na época”, afirma. Os assassinatos no bairro sempre tiveram relação com o narcotráfico ou rixas entre facções do crime organizado. “Aqui é bem tranquilo para quem não se envolve com essas coisas, mas o ‘bicho pega’ se tu seguir a vida do crime e der mancada”, garante e cita o exemplo de um garoto de 13 anos que morreu após levar um tiro na cabeça enquanto estava escorado sobre um tanque, bebendo água da torneira.

Nebrão: "Difícil era citar uma rua onde não morreu ninguém” (Foto: David Arioch)

Os assassinatos no bairro sempre tiveram relação com o narcotráfico ou rixas entre facções do crime organizado (Foto: David Arioch)

O adolescente foi morto porque furtou uma trouxinha de drogas. A tolerância é zero, tanto com quem tenta enganar algum traficante quanto com quem consome e não paga pelo produto. “A quantidade nunca interessa. Pra eles, o mais importante é impor medo e respeito, mostrar que a punição é mortal”, enfatiza. Enquanto converso com Nebrão, ele faz questão de caminhar alguns passos e me mostrar onde três adolescentes foram executados porque “cresceram os olhos” sobre os lucros do chefe. “Quem se envolve com a bandidagem tem que respeitar também a lei do crime”, explica.

Por muito tempo, Nebrão foi conhecido como o maior “ladrão de água e de energia elétrica da Vila Alta”, atividade que depois lhe trouxe problemas com a Companhia Paranaense de Energia (Copel), Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) e polícia militar. Autodidata, se tornou uma espécie de mestre das gambiarras. “Só de olhar, eu sabia o que tinha de fazer. Por R$ 35, eu resolvia o problema de qualquer um. Só ficava sem água ou sem luz quem quisesse”, lembra e acrescenta que já atendeu cerca de 1/3 do bairro.

Famoso pelo serviço rápido, o rapaz desde cedo demonstrou talento em montar e desmontar objetos. Chegou a ser contratado para furtar pontes de córregos. “Dependendo do tamanho, ele não precisava nem de uma hora para desmontar e levar embora”, garante um amigo que entre sorrisos testemunha a conversa. Envolvido com furtos, roubos e receptação de mercadorias desde a adolescência, Nebrão declara que só está vivo porque Deus quis assim. “Quem tem um histórico parecido com o meu não vive muito. Sou um sobrevivente”, garante.

Nebrão falando dos anos 1990: "Difícil era citar uma rua onde não morreu ninguém” (Foto: David Arioch)

Nebrão falando dos anos 1990: “Difícil era citar uma rua onde não morreu ninguém” (Foto: David Arioch)

O rapaz tem motivos para pensar assim. Perdeu as contas de quantas noites dormiu sem saber se acordaria. Uma vez atearam fogo em sua casa de madrugada. Nebrão percebeu o incêndio a tempo e escapou da morte, apesar dos prejuízos materiais. “Comecei a ser perseguido porque um cara delatou dois traficantes e deu o meu nome como se fosse o dele. Ele queria me ‘ferrar’”, revela.

Quando tudo parecia ter voltado à normalidade, Nebrão foi surpreendido na rua por dois homens armados. No momento da execução, apesar da insistência dos atiradores, nenhum dos revólveres disparou. “Dei como certa a minha morte. Ouvi só o barulho acionado pelo gatilho, mas a bala não veio. Corri e vieram no encalço com pedaços de pau. Tentaram me derrubar golpeando minhas pernas. Não caí por milagre e consegui escapar mais uma vez”, confidencia o rapaz que é alto e corpulento, o que também pode ter ajudado na fuga.

As histórias de Nebrão são confirmadas por outros vizinhos que se aproximam para ouvir a conversa. Apesar das tentativas de homicídio, continuou no bairro, próximo da família e dos amigos. Mais tarde, um conhecido apareceu na casa do rapaz e gritou: “Ô, nego, chega aí. Quero falar contigo, é papo reto, coisa rápida.” Em seguida, a irmã de Nebrão disse: “Tenha fé, meu irmão. Deus me disse que hoje você vai amarrar o diabo.”

Quando abriu o portão, o sujeito apontou o revólver para Nebrão que começou a orar enquanto mantinha os olhos fixos sobre o atirador. “Ele abaixou a arma, chorou e disse que não aguentava mais aquela vida. Decidiu se entregar para a polícia”, relata Nebrão que em diversas situações foi perseguido por falsas denúncias de delação de traficantes.

Naquele dia, o homem enviado para matar Nebrão já tinha assassinado cinco pessoas na periferia de Paranavaí. Preocupado com o futuro, Nebrão se distanciou do crime, parou de beber, fumar e se tornou evangélico. Admite que atualmente ganha pouco para sobreviver, mas está feliz por não dever nada a ninguém. “É um dinheiro honesto. Quando a situação aperta, trabalho até na roça nos finais de semana”, assegura.

Hoje, se empenha em fazer alguma diferença na vida de crianças e adolescentes que se tornam ladrões ou ingressam no mundo das drogas. “‘Mando a real’ na molecada. Explico que esse caminho não traz nada de bom. É uma ilusão, e se continuar nele vai morrer sem aproveitar a vida. Aos traficantes e ladrões que conheço, peço pra não oferecer droga nem serviço pra eles. O que posso fazer é aconselhar e pedir”, comenta Nebrão que já conquistou bons resultados com essas ações.

Saiba Mais

Nebrão é um apelido fictício para preservar a identidade do entrevistado.