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Perica
Quando eu tinha dez anos, meu pai me levou para a casa de seu amigo Perica, um senhor já idoso que há mais de 20 anos vivia sozinho no campo com sua biblioteca e seus tonéis. Cheiro de papel e cheiro de vinho, de um lado, do outro, por todos os lados. Perguntou se eu bebia. Respondi que não, que o álcool é nojento. Ele achou engraçado.
“Mas lê pelo menos?”, Sim, leio, respondi. “Então tudo bem! Não esqueça que a morte precoce acontece quando não alimentamos a vida, e sim nos alimentamos dela”, disse. Certo, comentei. Perica foi meu mentor nas férias de verão. Era um sujeito incomum. Bebia e lia, lia ou bebia, e lia e bebia. Mas nunca o vi bêbado. No último dia antes de voltar para casa, perguntei como era possível ele tomar tanto vinho e nunca ficar bêbado.
“Na realidade, eu não bebo.” Como? “Isso, não bebo.” Mas esse cheiro, esses tonéis, o copo na mão?, questionei. “Eu te induzi a acreditar nisso a partir da sua chegada, da nossa conversa, do primeiro dia. O cenário ajuda, mas o que eu trazia no copo nunca era vinho. Não cheguei a produzir vinho, meus pais sim. O que você acha disso?”
Acho que você está me enganando, comentei. “Não…isso seria desnecessário e imprudente.” Realmente havia um copo na mão de Perica, mas não com vinho, e os tonéis, de fato, traziam aroma de vinho, mas era simplesmente sinestesia. “A minha verdade, a sua verdade, às vezes não é fácil distinguir se a mente se liberta para a realidade ou para a criatividade ou constrói a sua própria grade”, disse Perica.
Acordou
Acordou. Não conseguia ficar de pé nem se mover. “Chamem uma ambulância, a situação é grave!” Só babava e rosnava. Raiva? Cachorro? “Alguém mordeu este homem!”, advertiu o paramédico. Não, não tem nenhum animal aqui, a não ser o próprio paciente. É só ele mesmo, segundo a vizinha. Como pode ser tão pesado? Não aparentava mais de 70 quilos, mas parecia impossível levantá-lo. “Que coisa bizarra, estranha…”
“Pois é…vamos tentar de novo” Não, não! Não vai. Chame mais gente. Quatro homens – dois segurando as pernas e dois segurando os braços. Nada de colocar o sujeito na maca, pesado demais. A baba caía apurada e baça no piso de taco. Escorria e corria. Se tinha vida? Ninguém via ou sabia. Bora de novo! O homem tremia, olhos vermelhos, rajadas de fogo, estrias nervosas na esclerótica. Será que vai? Não, não vai.
“Chame mais gente! Não saio daqui enquanto não levar este homem. Missão dada é missão cumprida!” Dez tentando erguer o sujeito. Ranger de dentes, franzir de testa, carantonhas. Vai! Vai! Vai! Não….não vai! “Não é possível uma coisa dessas!” O homem não parava de babar. O chão enturvecia e logo o esputo sumia. Engasgou, engasgou, e agora? Bate nas costas. Isso, nas costas! “Como? Ninguém consegue virar esse sujeito!” Acamado, num esforço sobressaltado rolou e arroxeou. Cinco batidas.
A boca se abriu e o homem vomitou. Expelia sem parar. Minutos e mais minutos. Nada de comida ou bebida, só ódio, cólera, intemperança, jactância, pedaços cevados de ignorância. Que ar pesado, hein? Mau cheiro medonho! “Caramba! Quanta coisa!” “Tragam um balde! Não, um não, o máximo possível”, pediram. Os baldes não deram conta e alguns começaram a derreter. Chegou um carrinho de mão. A rodinha entortou e o pneu murchou. O homem arrotou, coçou a barriga e se levantou.
Laranjando
Havia um pequeno pé de laranja, onde sempre serenava. Cutucava uma laranja e ela caía rolando sobre o peito. A cheirava, acidoce, e se servia, comia. Antes, raspava as cascas com um punhal e as deitava sobre a terra. Desapareciam com a aragem, ou eram sorvidas pela umidade do solo. Fazia como seu pai, seu avô, seu bisavô. A terra reagia, será que agradecia? Ninguém sabia, mas sempre que anoitecia o solo matizado reluzia, e a terra lavrada persistia insubordinada à luz do dia.
A cabeça queimava, mas era a alma que latejava
A cabeça queimava, mas era a alma que latejava. Trazia velhas novas lembranças do que não foi. Poderia, poderia, mas não foi – ecoava. Fechava os olhos, um sonho presente que anestesiava e alimentava – também ludibriava.
Assim vive-se várias vidas, não importando distinção, realidade, ilusão. Movia-se para dentro da consciência, mas cuidadosamente atalhando a razão, porque a razão poderia suplantar a unção pela inação. Torpor, não. Perfume, sons, e a ideia de que tudo que se move morre e desmorre.
“O perfume é mais forte que a voz. Ou a voz é mais forte que o perfume. Depende. O tempo dilui o som que da memória arrebata. Ou o perfume que desvanece na celeridade da contra vontade?” – refletia – não sabia. Achava a vida fascinante, estranha, intrigante. Dependia do dia.
Olhos
Enquanto eu assistia a movimentação na rua, uma moça cutucou-me um dos olhos. Não senti nada, mas o olho sim, que incomodado saltou ao chão e a circulou. Ia de um lado para o outro tentando intimidá-la. Cercava, cercava; pulava como bolinha de pingue-pongue.
A moça recuava, e não recuava. O que fazer? O que não fazer? Eu não sentia nada. Em menos de minuto, onde havia uma cavidade nasceu um novo olho. O outro tentou retornar. Uma olhada no meu nariz, uma olhada na minha testa. Ainda bem que não doeu. O novo olho ameaçava sair. Queria lutar, mas não queria perder o lugar.
Movi a cabeça de um lado para o outro, tentando evitar uma briga de olhos. O olho direito, que não tinha nada a ver com a história, também queria brigar. Mas também não queria perder o lugar. Vibravam, vibravam, meus olhos coçavam. Três olhos e dois lugares. E agora? A moça gargalhou e partiu. O velho olho sumiu.
Yerpakut!
Um jovem chegou a Gjirodrecsande. Ao primeiro homem que o recebeu, ele apenas disse: Yerpakut! O homem deu-lhe um soco, ele se levantou e continuou andando. Ao segundo, repetiu a mesma coisa, mas em tom mais enérgico – recebeu dois socos. O terceiro não demorou. Ouviu somente “Yerpa…” e acertou-lhe uma cotovelada no peito, um soco direto no estômago e uma joelhada nas costas.
Caiu agonizando. Observou a barriga arroxeada. Sem vacilar, levantou-se. Tentando não mancar, percorreu cerca de 200 metros e acenou para uma mulher. Ela retribuiu o aceno cordial e ele balbuciou com a boca sangrando: Yerpakut…” A mulher gritou, uma multidão rodeou o rapaz e o espancou. Ele já não tinha forças para ficar em pé.
Rastejou por alguns metros, e um velho rodeado de gatos se aproximou e o abraçou. O rapaz sorriu e, dolorido, dormiu. Pela manhã, mal conseguia falar. O provecto deu-lhe uma caneta e ele escreveu:
Samo ti? [Só você?]
Da, nažalost, moj sin [Sim, infelizmente, meu filho] – respondeu o velho – meneando a cabeça constrangido.
A segurança da ignorância rejeitava e quebrantava tudo que aveludava.
Yerpakut?
Sigurno, Yerpakut! [Certamente, abrace o novo!] – disse o provecto.
“Você faz mais alguma coisa além de musculação?”
Um dia, na academia, um camarada me perguntou se eu fazia mais alguma coisa além de musculação. Achei a pergunta um tanto quanto estranha, mas tudo bem:
— Sim, eu trabalho.
— Sério mesmo?
— Verdade.
— Você trabalha com que?
— Com jornalismo, sou jornalista.
— Ora, nunca imaginaria.
— É? Por quê?
— Por causa da sua aparência. E também achei que você ficasse horas na academia.
— Não. Na realidade, meu treino tem duração de 40 a 50 minutos, às vezes chegando a uma hora. É o suficiente pra me exercitar e ter um shape razoável.
— Realmente não é muito tempo.
— Sim, o dia tem 24 horas, então me resta um bom tempo pra me ocupar com outras atividades, não?
— É…
“Você não é o Tora-Tora?”
Hoje de manhã, enquanto eu estava aguardando a minha vez no banco, um cara se aproximou.
— E aí, rapaz — ele disse.
— E aí — respondi.
— Tudo bem?
— Sim e você?
— Também. Então, por que você não apareceu na Fazenda Santa Efigênia no sábado?
— Acho que está me confundindo, camarada.
— Você não é o Tora-Tora?
— Como?
— Tora-Tora!
— Não, cara. De modo algum. Foi um engano.
— Ah, me desculpe. É que vocês são parecidos. Na realidade, a barba. Não sei falar o nome dele, nome estranho, então demos esse apelido. Veio pra cá pra trabalhar como lenhador.
— Entendo.
— Então me desculpe.
— Sem problema.
— Mas, olhe, você tem cara de quem sabe cortar lenha. Se um dia quiser experimentar.
— Hum…é lenha de reflorestamento? Se não for, minha religião não permite.
— Qual é a sua religião?
— Sou vegano.
— Já ouvi falar disso. É tipo uma seita, né?
— Sim…
O cara riu; eu também. Nos despedimos.
Você é um daqueles verdinhos?
Na fila do mercado, eu, uma camiseta verde do Type O Negative e uma boina. Uma senhorinha se aproximou e se posicionou atrás de mim aguardando a vez. Expliquei que ela não precisava ficar na fila porque pela idade ela tem preferência no caixa especial.
— Não, filho, eu gosto de ficar aqui. Tenho saúde e não tenho pressa.
— Que bom — respondi com o meu típico sorriso tímido.
— Filho, olhei pra você e pra sua cesta, diferente o que vi, admito. Você é um daqueles verdinhos?
— Como?
— Um daqueles verdinhos.
— Me desculpe, mas não sei, senhora. O que é um verdinho?
— Que não come carne, leite, ovo…
— É por aí. Acho que vou um pouquinho além inclusive.
— Olhe só, que honra! Um verdinho de verdade!
— É, acho que sim — comentei, entregue a um sorriso encalistrado.
— Olho esses carrinhos e cestas, só consigo pensar em uma coisa. Você sabia que antigamente não existia toda essa comilança de carne? Muita gente do meu tempo, criada em sítio, chegava a ficar até um ano sem comer carne. E vivia bem, realmente bem, com muita energia, lavourando.
— Isso é bom.
— Papai e mamãe deixaram a Polônia durante a guerra e eles viram tanto sangue e morte naquele lugar que quando chegaram ao Brasil falaram que iriam criar os filhos longe de qualquer tipo de morte. Dito e feito. Tenho 78 anos e não como carne desde os cinco anos quando chegamos aqui em 1944.
— Que história interessante. Se a senhora quiser me contar um dia em detalhes, posso transformar em alguma coisa.
— Quem sabe — ela respondeu sorrindo.
— Seria muito legal — comentei.
— Olhe, o conteúdo da minha cestinha é parecido com o da sua. Estamos apenas em um espectro diferente de gerações, pelo menos nesta vida — disse sem desvanecer o sorriso.
— Não duvido — comentei sorrindo.
— É, sempre enxergo um verdinho de longe.
— Por causa da minha camiseta? — questionei com um sorriso enviesado.
— Não — respondeu rindo.
— Hum…
— Meu pai dizia que os nossos melhores hábitos são sempre translúcidos diante dos nossos olhos e dos olhos dos outros quando existe boa vontade. Claro, desde que nós e os outros queiramos enxergar — explicou a senhora antes da despedida.
“Cara, a Páscoa já foi”
Passei casualmente nas Americanas e vi que havia uma grande quantidade de ovos de Páscoa da Choco Soy de vários sabores. Eles estavam vendendo por R$ 35. Não me importo com ovos de Páscoa, mas por um instante olhei para um funcionário e falei:
— Cara, a Páscoa já foi, vendam por R$ 5 cada ovo que levo todos que sobraram. Me comprometo a distribuir a maior parte para a criançada da Vila Alta.
— Não podemos, amigo. O gerente não está aqui agora, mas acho que pode reduzir o preço nos próximos dias.
— Tudo bem, talvez eu passe aqui depois.
— Mas por que seu interesse nesses ovos? Ah, nem precisa responder. Aposto que você é vegano.
— Por que acha isso?
— Acho que só veganos fazem isso.