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Memorial do Alto Tietê, um manifesto de tudo que somos
Sem melodrama, Antonio Neto emociona e faz refletir sobre a difícil realidade dos jovens da periferia

Memorial do Alto Tietê é uma obra sobre a vida, a importância de sentir a própria existência (Imagem: Divulgação)
Em Memorial do Alto Tietê, o escritor paulista Antonio Neto, radicado em Santa Maria de Jetibá, no Espírito Santo, é autor e personagem em fragmentos bem estruturados que versam sobre várias etapas da sua vida, mas principalmente a infância. Sem precisar decair para o melodrama, emociona e ao mesmo tempo faz refletir sobre a difícil realidade dos jovens da periferia. A partir de histórias curtas, cândidas e ao mesmo tempo analíticas, o autor desvela a hipocrisia de uma sociedade mergulhada em pré-conceitos e preconceitos.

Em junho de 2015, Antonio Neto me convidou para escrever o prefácio do seu livro de crônicas (Fotos: David Arioch)
E faz tudo isso num misto de criança e adulto norteado pelo requinte literário, descritivo e memorial. O grande diferencial de Antonio Neto subsiste na simplicidade da linguagem, no ato de se lançar como um espírito livre, na apresentação dos acontecimentos e das impressões de que um passado distante não está tão longe assim se o leitor observar o que acontece nas periferias das pequenas e grandes cidades, onde a vida acontece em um ritmo diverso, adverso e peculiar.
A relação de afeto com a família, os amigos e as coisas da nostalgia humana são costuradas sob uma perspectiva que permite uma compreensão universal. O peso de algumas histórias é contrabalanceado com a leveza de outras. O autor também evidencia e celebra a maturidade humana ao olhar para o passado com uma sensibilidade peculiar, sem nutrir rancor, amarguras ou desprezo.
É justo e essencial dizer que Memorial do Alto Tietê é um livro sobre a vida, a importância de sentir a própria existência, se arriscar e aceitar que o ser humano pode tanto ser resultado de um meio quanto da realidade, talvez até onírica, que cativa dentro de si mesmo. Se apresenta como um manifesto de tudo que somos e podemos ser se nos apegarmos ao que nos move e nos comove.
Nas 19 crônicas da obra, Antonio Neto se entrega em extensão, convida o leitor a mergulhar no passado, sentir a própria essência, se enxergar sem melindre, aprender a conviver com as alegrias, as tristezas, as perdas, as realizações e as decepções. Tudo isso se soma num convite atemporal para o ser humano se esforçar em semear a empatia e entender que o que somos hoje não merece ser dissociado do que fomos no passado. A vida deve ser vivida e celebrada em aceitação. O livro está à venda na livraria da Editora Penalux (editorapenalux.com.br/loja) por R$ 32.
Saiba Mais
Em junho de 2015, o premiado escritor Antonio Neto, que conheci durante o bate-papo com autores no Festival de Música e Poesia de Paranavaí (Femup) de 2014, me convidou para escrever o prefácio (disponibilizado integralmente logo acima) de “Memorial do Alto Tietê”. Foi uma grande e feliz surpresa. Afinal, é muito gratificante ser convidado a produzir o texto de abertura de um livro, até porque essa missão só é dada a alguém em quem confiamos a compreensão de nossos sentidos literários. Além disso, o que corrobora mais ainda tal importância é o fato de que é hábito antigo do leitor o ato de ler o prefácio antes de mergulhar na obra. Antonio Neto, muito obrigado pelo convite e confiança!
Os torneios da Games House
Compenetrado e tenso, selecionei Blanka, um personagem improvável e até depreciado
Na minha infância, houve uma época em que eu ia toda semana até a Games House jogar videogame. Nos finais de semana, lá era o ponto de encontro de dezenas de crianças e adolescentes de Paranavaí que participavam de campeonatos de Street Fighter, Mortal Kombat e Fatal Fury. Os melhores jogadores ganhavam locações de cartuchos ou podiam levar para casa por um final de semana algum videogame de sua preferência.
Eu saía de casa cedo nos dias de torneio. Subia a Rua Sílvio Meira e Sá Bezerra, descia a Cândido Berthier Fortes e virava à direita na Manoel Ribas. Caminhava empolgado, saltava e imitava golpes de lutadores como Dhalsim, Scorpion e Joe Higashi. E o sol contribuía, iluminando meus braços por onde eu passasse, me banhando em fantasia e fazendo eu me sentir imponente. Não era tão anormal quanto pareceria hoje, já que esses jogos eram tão populares que muitas vezes as pessoas reconheciam minhas imitações.
Um dia, eu e meu irmão Douglas descemos correndo pelo gramado da Escola Jean Piaget, simulando uma luta entre Guile e Blanka. Um senhor de aproximadamente 50 anos chamou nossa atenção ao ver a cena. “O brasileiro tem que ganhar nessa. Dá um choque nele, filho! Não pode dar mole pra esses americanos”, disse o homem rindo, movimentando uma velha moeda entre os dedos e andando vagarosamente até a Avenida Juscelino Kubitschek.
Quando chegamos à Games House havia bastante gente. A verdade é que era praticamente impossível encontrar a locadora vazia. Mesmo pequena, era um dos locais preferidos de muitos jovens da minha geração. Me sentia inebriado pelo misto de musiquinhas eletrônicas dos jogos, o que mais parecia aos ouvidos treinados um mashup bem cadenciado de variedades oitentistas e noventistas.
Intrigante também era a olência profusa que tomava conta do ambiente. Aromas de hortelã, menta, cereja, melancia, uva e tutti-frutti se enleavam, proporcionando uma experiência sui generis de sensações. Dentro da locadora, esquecíamos completamente do mundo que existia lá fora, já que tínhamos o nosso próprio, formado por uma grande família de amigos, conhecidos e desconhecidos unidos por horas de diversão.
Era difícil circular em meio a tanta movimentação, mas pouco nos importávamos. Era como se a natureza de nossa realidade não pudesse ser menor do que aquela. A beleza subsistia na entropia, na grazinada, no eco de nossas ações que reverberavam a completude da justa desordem das coisas. Falar, rir, gritar, zombar, pular, agachar, sacolejar, dançar – tudo era permitido desde que o respeito não fosse substituído pela alarvaria.
Ao meu redor, eu observava rostos juvenis com expressões absortas, espontâneas, caricatas e difusas; dignas do expressionismo de Lang, Murnau e Wiene. A motivação? Uma luta entre Ken e Zangief. Segurando o controle com paroxismo, Hélio nem piscava sentado em uma cadeira de madeira.
Mantinha os olhos agigantados em direção à tela de um televisor de caixa cinérea de 21 polegadas. Assim que o Zangief de Beto deu um pilão giratório em Ken, quase o eliminando do torneio, Hélio se levantou e levou seu lutador até o canto esquerdo. Respirou fundo, ignorou as bolhas dos polegares e, com mãos trêmulas e suadas, venceu o adversário com uma sequência de hadouken e shoryuken; sim, com punhos flamejantes.
Para comemorar, levantou uma latinha de 7 Up e tomou um gole enquanto recebia congratulações, reclamações, leves tapinhas nas costas e na cabeça. Menos competitivo e mais circunspecto, Beto também foi elogiado, apesar do sarro tradicional. Calmo, se levantou, sorriu e declarou: “Quem não perde, não aprende a viver, diz meu pai.” Então caminhou até um expositor de jogos de Super Nintendo e começou a ler os encartes.
Quando chegou a minha vez de jogar, sentei na mesma cadeira de Beto e observei que o movimento na locadora tinha aumentado ainda mais. Notei a presença de muitas garotas da minha idade, o que não era tão comum em dias de torneio. Compenetrado e tenso, selecionei Blanka, um personagem improvável e até depreciado por uma maioria que o via como um vilão exatamente pelo seu aspecto carrancudo e burlesco. Eu não! Blanka pra mim representava um contraponto, um anti-herói que mais parecia uma versão brasileira do Hulk.
“Putz, pegou logo o Blanka! Vai apanhar fácil…”, comentou Bruno, campeão do último torneio, que selecionou Ryu, o favorito de sete entre dez garotos que frequentavam a Games House. A escolha do personagem já garantia uma plateia cativa que assobiava, ria e motivava o adversário. Eu seguia na contramão da obviedade, com menos torcedores. O fato de ter tanta gente apostando em Ryu aumentava a minha motivação, me fazia querer vencer mais do que nunca. Não me preocupava a ideia de mais tarde ser eliminado do torneio, mas eu precisava provar que o meu personagem não era inferior.
Apanhei bastante no primeiro round, o que fez muita gente crer que a derrota seria iminente. Bruno tinha um estilo de jogo que privilegiava os mesmos dois golpes de sempre, o que entre meus amigos era chamado de “apelão”. Ele inclinava o corpo pra frente, se aproximando mais da tela, emitia sons miméticos com a boca e mudava de posição frequentemente, alegando que o televisor era muito pequeno para projetar seu talento. Bruno era um showman mirim.
Mais reservado, eu jogava calado, mordendo furtivamente os lábios quando me sentia encurralado. No segundo round, o nível de confiança do meu adversário subiu demais e num átimo de epifania descobri como neutralizar seus golpes mais certeiros. Blanka já não apanhava mais e sua defesa se tornara intransponível. De personagem coadjuvante, foi elevado a protagonista da própria luta. Na minha cabeça ecoava de antemão sua frase clássica: “Now you realize the powers I possess!”, seguida por uma eclética sequência de golpes altos e rasteiros que incluíam electric thunder, lightning cannonball e outros três tipos de ataques de rolamento.
Ryu foi castigado nos dois rounds seguintes, ganhando um curioso aspecto toldado e carunchento. Blanka? Não! Parecia mais fornido, refulgente e faustoso, como se renascesse para provar naquele momento o seu valor subestimado pela sua fisionomia grosseira. “Acho que a pele dele agora tá bem mais verde e o cabelo mais laranja”, “Tá enorme! O Ryu ficou franzino perto dele!”, “Que força insana!”, “Louco demais esse Blanka!”, “Parece que tá possuído de tão forte!”, comentavam crianças e adolescentes da plateia.
A minha vitória, a mais importante de Blanka no torneio, foi selada com um choque elétrico que fez o favorito Ryu desfalecer no canto esquerdo da arena de tábuas velhas. Assim que Blanka comemorou com várias cambalhotas no ar, um repentino silêncio tomou conta da locadora. Bruno ficou calado olhando para o televisor, sem acreditar no que aconteceu. Meu irmão Douglas e alguns amigos gritaram: “Blanka! Blanka! Blanka! Blanka!”
Discreto, só me levantei e sorri, sem dizer palavra, enxergando a presença de novos espectadores na entrada da Games House. Eliminado, Bruno coçou os olhos, tentou disfarçar a decepção, mas levou quase um minuto para soltar o controle do Super Nintendo e aceitar a derrota. Foi minha última vitória naquele dia. Eliminado na semifinal por um Dhalsim mais atilado, não lamentei.
Sem grande alarde, comemorei o fim da hegemonia Ryu, Ken e Guile, celebrada com o triunfo de um pachorrento e engenhoso E. Honda comandado por Augusto, garotinho também subestimado que se identificava com a forma física do lutador de sumô. “Hoje eu sou E. Honda e E. Honda sou eu. Só me resta sorrir diante do meu raro apogeu”, poetizou com simplicidade o campeão, um filho de argentinos que adorava ler “Discurso do Urso”, de Julio Cortázar.
A vizinha do Jardim Progresso
Ela gostava de atrair olhares, sentia algum tipo de prazer inominado em ser admirada
Eu tinha 12 anos quando vi pela primeira vez a vizinha do meu amigo Marco Aurélio. O seu nome era Bárbara e ela morava a poucos passos da casa dele no Jardim Progresso. Quando saíamos para brincar na calçada, me recordo que eu sempre a via fazendo alguma coisa para chamar a atenção. Ela gostava de atrair olhares, sentia algum tipo de prazer inominado em ser admirada.
Na rua, eu a observava somente após me certificar de que seus olhos dificilmente encontrariam os meus. Sua beleza era mediterrânea, mas não do tipo comum ou excelsa. Tinha pele oliva, dotada de um fulgor que não esmorecia nem no inverno. Seus olhos eram escuros e redondos como groselhas pretas das mais maduras, o que destoava dos cabelos castanhos que se estendiam até o meio das costas.
Era o tipo de graça reforçada pela personalidade, que existia nas entrelinhas, nos detalhes de suas expressões e na capacidade de conduzir as reações dos garotos ao seu bel-prazer. Até eu, que resistia a ceder aos seus caprichos de me ver inclinado diante de sua presença, desconhecia os meandros e artifícios da malícia e ocasionalmente era fisgado por sua argúcia.
De longe, ela sorria e até ria com frugalidade quando percebia que tinha alcançado seu intento. Uma vez, enquanto estávamos sentados sobre o meio-fio, ela caminhou bem devagarinho trajando um vestido branco que realçava o formato sinuoso do corpo jovial. Mirando o horizonte a olhos ensimesmados, passou os vãos dos dedos entre os cabelos, sobrepondo-os como ondas serenas de fios correntes, e seguiu numa linha reta tão hermética que chegava a ser geométrica.
Seus passos imitavam o som sutil da marcha dos cocos, perfazendo um caminho em que as batidas céleres e harmoniosas de nossos corações cobriam as lacunas deixadas pelo silêncio. Conforme ela se distanciava, e suas panturrilhas se contraíam formando dois diamantes triguenhos, eu assistia o tecido claro, num fortuito diáfano, cingindo seu corpo como um casulo tardio envolvendo uma borboleta.
Bárbara transportava por onde fosse o perfume leve e floral que seu corpo exalava em nossa direção, deixando um rastro invisível e efêmero de provocações que despertavam ideias e sensações. “Você é bonitinho, sabia?”, disse ela um dia apoiando meu queixo entre os seus dedos polegar e médio da mão direita. Observei meu próprio reflexo em suas íris, então maiores do que nunca, e fiquei preocupado se ela poderia ver muito mais do que eu gostaria nas minhas.
Para Bárbara, parecia pouco me ver corar. Em seguida, assoprou graciosamente meus olhos, me trazendo olência adocicada e refrescante de bala de hortelã. Aquilo mexeu tanto comigo que senti arrepiar até os pelos que eu ainda não possuía. Engoli a seco minha saliva tornada rara e senti meu peito chiar, abrasado pelo incompreendido desconhecido. Escondi as mãos trêmulas para que ela não as notasse. Era tarde demais. Bárbara percebeu e me hipnotizou com um sorriso tão esmerado que me deixou embriagado.
Pensei em dizer alguma coisa, uma frase de despedida, só que eu já não sabia mais falar nem pensar em português. As palavras que invadiam meus pensamentos não faziam sentido. Eram confusas, sem significados, um amontoado de letras que se embaralhavam com o alfabeto cirílico que vi pela primeira vez numa coleção de enciclopédias de meu pai. E para piorar, fiz um esforço desmesurado para articular um som complacente, mas só consegui transmitir um nada padecente.
Meus pés estavam tão fixos e hirtos na calçada de mosaico português que pareciam feitos de pedra calcária. O transe chegou ao fim quando sua mãe a chamou para ajudar o irmão caçula em uma das tarefas da escola. Ainda assim, sem esconder o semblante aparvalhado, assisti Bárbara correndo contra a brisa com encanto singelo que fazia inveja às folhas do pé de marmelo. Seus cabelos serpenteavam pelo ar como forças livres de um mundo hedonista. Talvez fossem curvas incertas de uma realidade menos maniqueísta. Antes de fechar o portão, sorriu, mandou beijo e disse de supetão: “Depois a gente continua.”
Fiquei parado por mais alguns instantes, tentando fugir da minha fisionomia encabulada e corada que vi refletida na janela de um Escort estacionado a menos de dois metros. Lhano, eu balançava a cabeça e saracoteava o dorso. Mas o coralino da vergonha era casmurro e não dava brechas para a libertação. Queria me castigar pela ingenuidade que não me permitia compreender sua intenção. “Nossa, olha como tô vermelho! Nem quando planto bananeira por muito tempo fico desse jeito”, pensei, me sentindo como um personagem daquelas canetas vendidas na rodoviária e que traziam mulheres peladas nos tubinhos.
Dias depois, escalando uma árvore em frente à casa de Marco Aurélio, vimos Bárbara chegar acompanhada de um rapaz de pelo menos 18 anos dirigindo um Monza Barcelona. Lá dentro, o sujeito se portava como se guiasse um possante pelas estradas do Arizona. Observamos em sincronia a porta do carro se abrir e seus pés pequenos e delicados encostando no meio-fio, envolvidos por um par de rasteirinha clara, talvez bege. Bárbara usava saia preta evidenciando pernas bronzeadas e bem esculpidas, fazendo nossos olhos saltarem sem a menor polidez.
Pendurado em galhos, assisti a cena numa euforia contida tão impetuosa que tive a impressão de que havia miniaturas minhas gritando e correndo pelos meus órgãos. Num breve momento de delírio, vislumbrei dois David saltando para fora de minhas orelhas, percorrendo os galhos numa velocidade sobrenatural e cutucando meus pés com agulhas de pau. “Vai lá! Vai lá! Vai lá! Você é trouxa? Deixa de ser bocó! O cara já vai embora”, gritavam as réplicas num tom estridente, revezando palavras.
Por azar, assim que Bárbara se despediu do tal sujeito que julguei ser seu namorado, me distraí e caí de cima da árvore como um bufão atarantado. Com o impacto, Marco Aurélio riu ruidosamente, como se aquilo fosse artificio de um demente. Caído sobre o braço esquerdo, num titubeante referto, sentei cabisbaixo na calçada e, sem olhar pra lado algum, amarguei as consequências da patuscada. Comecei a limpar os ralados nos cotovelos e joelhos, ignorando de meus amigos os conselhos.
A vergonha naquele momento tinha cheiro de ipê, sete-copas, hera-de-inverno e pingo-de-ouro. Mal sabia eu qual seria o desdobramento vindouro. “Por favor, não me veja! Por favor, não me veja! Por favor, não me veja!”, repeti com olhos fechados e franzindo a testa, crente de que a vida talvez pudesse imitar a fábula vez ou outra. Não, ela não macaquearia. Aos poucos, ouvi passos, o atrito de calçados leves com as pedrinhas cobertas de piche, e senti o indefectível perfume floral que me fazia mergulhar num sonho frugal.
Estremeci ao ver sua sombra se projetando na calçada. Bárbara estava quase ao meu lado e minha reação já era esperada. Coloquei os cotovelos contra a barriga e cobri os joelhos com pedaços de folhas secas esparramadas aos pés da árvore. Ela achou graça da minha reação, se abaixou e passou a mão direita pelos meus cabelos. “Tadinho! Vamos lá pra casa que vou cuidar dos seus ferimentos”, declarou com voz remansosa e tão melíflua que parecia acariciar os ferimentos do meu corpo. “Muito melhor que Merthiolate!”, teria refletido. Não falei nada, até porque nem conseguiria. Só movimentei a cabeça em concordância, sem saber o que me aguardaria. Àquela altura, nem sentia mais minhas pernas e braços ardendo.
Levantei e andei ao seu lado, evitando observá-la diretamente. Ainda assim, me mantive sobrolho. Caminhando a passos hesitantes, fui invadido por turbilhão de pensamentos. Tentei clarear a mente e logo reconheci que era impossível. Quanta agitação, ansiedade e tensão. Dentro da casa, não havia ninguém; só nós dois diante de um balcão. Ela me levou até o seu quarto e falou pra eu sentar na cama e aguardá-la. Observei tudo ao meu redor. Em segundos, memorizei o cenário e aprendi um pouco sobre seus interesses que incluíam livros, CDs, filmes em VHS e uma coleção de bichos pequenos de pelúcia, inclusive réplicas de gremlins.
Bárbara então retornou com um kit de primeiros socorros, limpou meus ferimentos e fez quatro curativos em meus braços e joelhos. Enquanto suas mãos delicadas, aveludadas e mornas tocavam minha pele, notei que ela era muito mais bonita se observada em profundidade. Tinha algumas pintinhas acastanhadas no busto e uma minúscula cicatriz na cintura. Sua tez bronzeada era tão singular e rutilante que fazia meu coração se projetar com a ressonância de um alto-falante.
Em menos de dois minutos, me vi imerso num universo silencioso, onde as belezas triviais das ruas inexistiam. Vizinhos não falavam, carros não passavam, pássaros não cantavam e galhos não balouçavam. Eu não ouvia nem enxergava nada para além da porta do quarto de Bárbara. Por um momento, ela se levantou e me lançou um olhar que fez eu me sentir como se estivesse nu. Deslizou vagarosamente o dorso da mão direita pelas minhas maçãs, aproximou seu rosto, segurou o meu com as duas mãos e me beijou vagarosamente.
Seus lábios, quentes como chuva de verão, vinham acompanhados de um sol que principiava a chegada da nova estação. A ansiedade e rigidez de meu corpo se esvaíam como se nunca tivessem me habitado, fazendo-me sentir como um renascido jovem sopitado. E assim, Bárbara, com 15 anos e sua essência medicinal, um dia se mudou para longe depois de mergulhar minha natureza no prazer hominal.
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Briga de rua
Em meio a socos, chutes de peito de pé e hadaka jime, um dia um senhor alto apartou eu e Fabiano

Meu irmão Douglas à frente, Fabiano à esquerda e eu à direita quando brincávamos de lutinha (Foto: Arquivo Familiar)
Eu tinha nove anos, meus punhos estavam cerrados e levantados à altura do meu queixo enquanto meus pés descalços raleavam a terra arenosa do quintal da nossa casa branca na Rua Artur Bernardes. Os movimentos rasteiros faziam a poeira castanha emergir do chão, polvilhando meus tornozelos. Ao redor das jabuticabeiras que neutralizavam a invasão do sol por vários pontos, Mussum latia ocasionalmente, saracoteando de um lado para o outro e tentando retesar o próprio rabo em forma de biscoito.
Preto que chegava a azular, o cãozinho ranheta, com uma barriguinha desnuda em pelos e temido pelos vizinhos, era naquele momento o nosso juiz. À minha frente, Douglas, meu irmão mais velho, também mantinha os punhos firmes e os olhos fixos em minha direção, esperando qualquer investida inesperada. Fabiano, Henrique e Thiaguinho assistiam tudo e faziam provocações, arremessando jabuticabas podres no centro da nossa arena demarcada com gravetos. Rindo, meu irmão me golpeou de leve no peito e eu retribui dando-lhe um soco canhestro na barriga. A cada murro a arena ficava menor. Íamos nos aproximando, arrastando os pés encardidos, até que a luz do sol, mais forte a certa hora, atravessava as jabuticabeiras e queimava nossos ombros nus, deixando marcas disformes que pareciam tatuagens adâmicas dos Homens do Sol.
Em seu esplendor, avisava sem fazer barulho que era hora de findar a distância. Então nos lançávamos um sobre o outro e caíamos na terra, rolando com destemor. Às vezes íamos tão longe que batíamos as costas na base da jabuticabeira, sentindo suas raízes ocultas pela relva nos impulsionando para cima. Cada choque violento na parte mais baixa do tronco chegava à minha mente em forma de frases curtas: “Levante-se, levante-se agora!”, “Você é tonto?” “Quer sair daqui com as costas raladas?” “Depois não adianta resmungar quando deitar na cama com as costas queimando”, “Vamos, moleque!”, me imaginava sendo advertido pelo pé de jabuticaba balouçando seus galhos como as mãos de um sujeito escalafobético.
Os golpes nos causavam pouco ou quase nada, mas as polpas das jabuticabas podres roxeavam nossos corpos depois de esmagadas, criando uma ilusão de ringue sangrento. Parecendo sapos-arlequins da Costa Rica, nos levantávamos rindo, exibindo os dentes brancos de forma caricata. Afinal, era a única parte não colorida pelo intenso violáceo da fruta. E assim a brincadeira continuava. No nosso ritual pós-luta, nos aproximávamos e tirávamos as cascas de jabuticaba que se fixavam nas partes que nossos braços curtos não alcançavam. Um ajudava o outro e apontava os desenhos que surgiam a partir dos diferentes matizes de roxo. Éramos duas telas que a natureza se encarregava de pincelar de acordo com nossas ações, previsíveis ou não.
Através do sol, das árvores e do solo firme como nossa crença de que nada era mais importante que o tempo presente, a natureza enchia meus olhos, apresentando um universo de infinitas possibilidades. O mundo era limitado para quem o via arestado, inclinado sobre um flanco debilitado. Arteiros, subíamos nas jabuticabeiras e esfregávamos o nariz púrpuro entre as flores brancas, pequenas e perfumadas. Sentia minhas narinas tingidas nas bordas como se fossem o botão do floreado.
No alto, com os pés nus escorados em suas curvas finas e medianas, comíamos jabuticaba até alguns galhos ficarem lisos. Mussum, que não aceitava o fato de não saber subir em árvores, girava até estontear e deitava na relva com os olhos já amansados. Era o apoteótico desespero do curvilhão. Vencido, movia a cauda argolada com sutileza contra um punhado de frutas que se esfacelavam no chão, protegidas pelo silêncio da leveza. Seu prêmio de consolação era o rabo roxeado que ele usava como bastonete de tira-gosto. Esfregava a cauda sobre as jabuticabas e a lambia com cuidado e atenção. Só parava quando recobrava o seu negrume natural.
Ocasionalmente, as lutinhas eram realizadas ao ar livre. Ninguém se machucava de verdade, e a encenação proporcionava mais realismo à brincadeira, tanto que passantes paravam e nos observavam, talvez refletindo se deveriam ou não intervir no que estava acontecendo. Em meio a socos, chutes de peito de pé e hadaka jime, um dia um senhor alto e corpulento de pouco mais de 40 anos, recém-chegado ao bairro, apartou eu e Fabiano. Descalço e concentrado sobre a calçada de casa, vi apenas uma grande sombra me cobrindo e bloqueando o sol. Pequeno, me senti diante de um eclipse. “Por que vocês tão brigando?”, disse o vozeirão retumbante que parecia emanado dos céus. Estremeci e pensei até que pudesse ser Deus me repreendendo pelas minhas traquinagens.
“Vocês já sentiram a espora de um galo de combate no calcanhar? Acho que eu não seria capaz de suportar isso, ou a perda de um olho, ou dos dois olhos, e continuar a lutar como os galos de combate. O homem não é tão forte quanto os outros animais”, defendeu, citando Hemingway em “O Velho e o Mar”. “E mesmo que fosse, de que valeria isso se as palavras são sempre mais vigorosas que os braços? O corpo cansa justamente quando a mente descansa. Não se enganem, meus amigos”, advertiu o homem de origem ucraniana que tinha apelido de Polaco. O nariz de Fabiano sangrava e provavelmente aquele homenzarrão pensou que eu fosse o culpado. A verdade era que nosso amigo sofria de epistaxe, um sangramento nasal que o impedia de se expor ao sol nos dias mais quentes. “O forasteiro que ali chegasse, mesmo para breve visita, era praticamente obrigado a tomar logo partido”, escreveu Érico Veríssimo em “Incidente em Antares”, que anos depois me fez rememorar o episódio.
Ex-atleta de levantamento de peso básico, Polaco nos convidou para sentar em um banco de madeira da casa vizinha e relatou com voz pausada como seu irmão caçula morreu em 1991. Conhecido como Mão de Tijolo, Ivan Ferdoska caminhava sozinho pelo centro de Paranavaí quando viu um casal discutindo perto do Restaurante Chapelão, na Rua Manoel Ribas. Em menos de minuto, o homem se lançou sobre a própria namorada e deu-lhe dois murros na cabeça e três chutes nas pernas. Assistindo a cena, Mão de Tijolo não se conteve e acertou um soco em cheio na boca do agressor que caiu no chão desnorteado, ladeado por lascas e pedaços de dentes que voaram sobre a calçada. A mão de Ivan era tão grande e a cabeça do agredido tão pequena que era impossível encontrar uma parte do rosto do rapaz que não estivesse roxa.
Sem dizer palavra, Mão de Tijolo ajeitou a camiseta regata preta e seguiu andando, como se nada tivesse acontecido. Nesse ínterim, o homem deitado no chão e com um olho tão caído quanto o do Quasímodo, de Victor Hugo, sacou uma pistola pequena escondida na botina e disparou, com uma arma mais carregada de cólera do que de balas, três tiros contra Ivan que tombou no chão apoiando-se contra os braços flexionados na calçada de petit-pavé. Entre as pedras brancas e pretas, escorria seu sangue, formando um mapa famigerado do acaso, da poltronaria e da torpeza.
O rapaz morreu três horas depois. Polaco ficou ao lado do irmão na Santa Casa de Paranavaí até o suspiro final, observando-lhe os olhos acinzentados e ternos, a boca levemente entreaberta, a tez pálida e o aspecto sorumbático de quem reconhecia o próprio fim aos 28 anos. Apesar dos olhos marejados, evitou que as lágrimas escorressem pelas maçãs descoradas. Nos últimos minutos de vida, abraçou o irmão e jurou que não estava triste. Mão de Tijolo pediu que Polaco tirasse de seu bolso um bilhete premiado de loteria e revelou:
“Saí pra caminhar e pensar no que fazer com o dinheiro. Eu realmente não sabia, agora já sei. Fique com ele e não lamente por mim. No fim, talvez a vida não seja justa, mas é coerente e equilibrada. Poderia ser aquela moça em meu lugar e isso eu não poderia admitir. Se pra cada morte há um nascimento, acho que não devemos reclamar tanto, somente agradecer pela oportunidade de que mais pessoas tenham a experiência de viver. Pouco ou muito ela sempre vai valer a pena. Ah! Amanhã eu iria buscar minha CBX 750 na oficina depois de tanto tempo sem dinheiro. Tudo bem, que assim seja. Meu irmão, só peço a você que não se vingue pelo acontecido. Se quiser fazer algo por mim, espalhe compreensão por onde for, lute contra a violência. Combata o ódio e qualquer outro sentimento que amargue no coração a morte precoce. Acho que não adianta ser aparentemente pacífico se dentro de você habita a violência. A paz também é aquilo que fazemos dela quando estamos sozinhos.”
Após a morte de Ivan, o solitário Polaco continuou morando perto de mim por mais alguns anos, até que vendeu a própria casa e doou todo o dinheiro. Numa véspera de Natal, visitou alguns bairros pobres de Paranavaí e empurrou por baixo das portas envelopes recheados de dinheiro. Sem se despedir e sem chamar a atenção para si, desapareceu. Não sei até que ponto Polaco me influenciou, mas cresci avesso às brigas, como um Alex De Large, de Burgess, naturalmente reformado.
Com 19 anos, fui colocado à prova num início de noite na Avenida Paraná, em frente à antiga Imobiliária Gaúcha, onde alguns amigos marcaram um encontro. Na realidade, era uma armadilha de jovens ébrios. Chegando lá, um deles inventou histórias a meu respeito. Me provocou em vão, pois não reagi. Em silêncio, observei as atitudes dos três que me instigavam a brigar. Sem mover os pés da calçada, me mantive calmo num ambiente hostil. Ainda assim, um deles se aproximou de mim e acertou um soco na minha boca.
O sangue escorreu pelos meus lábios espessos. Experimentei a queimadura do corte no canto superior direito. Na mesma posição, passei o polegar direito pelos lábios, vi o sangue denso, levantei meu dedo banhado em carmesim e perguntei: “Cara, por que você fez isso? É uma pena…” Meu amigo Edson quis bater no agressor, só que eu o impedi porque nada naquele momento me causava medo. “A Morte tinha desaparecido de sua frente e em seu lugar via a luz”, refleti, lembrando-me de Ivan Ilitch, de Tolstói.
Contrariando todas as expectativas, me calei, lavei minha boca em uma torneira instalada no mesmo local e fui em direção à Praça dos Pioneiros, retornando com a roupa avermelhada em algumas partes. Não senti raiva, apenas um misto de pesar e náuseas. Em casa, o sangue foi lavado com lágrimas pachorrentas que já não se repetiam mais. Observava no espelho a abertura no lábio com olhos grandes, então amiudados, e o palato esbraseado pela nebulosa bonomia. Tudo que era palpável no fundo era impalpável.
Ao longo de 10 anos, assisti cada um dos envolvidos no episódio aparecer no portão de casa pedindo desculpas, fazendo ecoar na minha mente um pequeno fragmento de “Só vim telefonar”, de García Márquez. “Dançou, cantou com os mariachis, abusou da bebida, e num terrível estado de remorsos tardios foi procurar Saturno à meia-noite.”
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Enquanto o ônibus não chega
A rodoviária desapareceu do meu campo de visão e me senti na orla da existência terrena

Fui até o ponto de vendas da Viação Garcia e comprei uma passagem para Nova Esperança (Foto: Reprodução)
Num final de tarde de novembro de 2004, quando eu cursava o penúltimo ano de jornalismo, caminhei a pé da faculdade até a Rodoviária de Maringá, na Avenida Tuiuti. A garoa caía fria, amenizando o calor irradiado pelos meus pés. Chegando lá, fui até o ponto de vendas da Viação Garcia e comprei uma passagem para Nova Esperança. A atendente me disse que o ônibus metropolitano atrasaria uma hora ou uma hora e meia porque um dos carros quebrou perto de Presidente Castelo Branco.
Como eu estava longe de casa desde às 6h, não gostei do que ouvi. Circulei pelo pátio, olhei alguns assentos e me imaginei deitado sobre eles, dormindo até a hora do embarque. A ideia rapidamente foi ofuscada pela franca possibilidade de eu perder o ônibus e ainda ser assaltado. Então fui até o banheiro, onde o zelador que despejava o sabonete líquido dos refis me observou de uma forma que pensei que tivesse algo de muito errado com minha aparência. Me aproximei do espelho e não notei nada. Lancei bastante água fria sobre o rosto, tentando afastar o sono e a letargia que me dominavam. Depois ajeitei os cabelos longos e pretos atrás da orelha e me dirigi até a lanchonete.
Pedi um salgado assado recheado com palmito e uma garrafa de água mineral. Comi tranquilamente, alheio às conversas ao meu redor e também à grande TV em volume alto transmitindo um jogo de futebol pela ESPN. Divagando, me recordei que a Editora Escala ainda comercializava a coleção “Grandes Obras do Pensamento Universal”. Me agradava a ideia de comprar livros feitos com papel reciclado por não mais do que R$ 7, se encaixando no meu orçamento. Caminhei poucos metros até a banca de jornais e revistas e contei pelo menos 10 títulos de meu interesse. Filosofia me apetecia muito à época. Escolhi “Cartas Persas”, de Montesquieu; “A Gaia Ciência”, de Nietzsche; e “Ensaio Sobre a Liberdade”, de Stuart Mill. Gastei menos de R$ 20, guardei meus novos livros na mochila e inquieto percorri todos os cantos do pátio até a estafa me consumir pela segunda vez.
Diante da plataforma, sentei numa poltrona fria e abri a mochila enquanto choros e gritos de crianças ecoavam por todas as direções. Algumas queriam dormir, outras pediam doces e brinquedos das lojas. Fechei os olhos por alguns segundos, restabeleci a serenidade e abri o livro “Demian”, do alemão Hermann Hesse, um de meus autores preferidos de todos os tempos, que dialogava com minha humanidade juvenil, conflituosa e existencialista mais do que qualquer outra pessoa. Exatamente na página 28, assim que li o trecho “O fim daquele suplício e a minha salvação me chegaram de onde menos esperava, e com isso entrou em minha vida algo novo, algo que até hoje continua atuando sobre mim”, uma moça da minha idade, de aproximadamente 1,68m, pele alva e coruscante como as pétalas de uma margarida, cabelos castanho-claros e olhos que fulguravam a beleza e transparência de um topázio amarelo, sentou-se ao meu lado, mantendo sobre o colo um exemplar de “Viagem ao Oriente”, do mesmo autor.
A observei furtivamente e continuei minha leitura por pouco tempo. Perdi a concentração ao sentir que seu corpo exalava um perfume que era um paradoxo em essência, um bálsamo suave de frutos silvestres. Sem saber, ela me conduziu a um bosque etéreo, onde a natureza suspensa de suas ramas me cobria com uma luz morna e serena. “Lá estava o mundo ofertando-se por completo diante dele. Voltava com novas cores, cheios de vida, pertenciam-no e falavam sua linguagem. Tinha o mundo inteiro em seu coração e cada uma das estrelas do céu resplandecia nele e irradiava prazer em toda sua alma”, murmurava minha mente, parafraseando fragmentos da página 132 de “Demian”.
Antes de dizer oi, como se acompanhasse minhas reflexões, a jovem ao meu lado comentou que um novo raio de luz se voltava para ela. “Sinto uma alegria aprazível, patente e sem discórdias, coisas que duram breves minutos ou longas horas”, sussurrou, também citando “Demian”, me surpreendendo a ponto de meus olhos se agigantarem em espavento. A cada palavra, seu sorriso iluminava e aquecia meu rosto, contagiado por satisfação que intrigava e alimentava minha substância. Nos cumprimentamos e perguntei seu nome. Com expressão enigmática, me respondeu que era Gertrude. “Sendo assim, o meu é Kuhn”, declarei com um sorriso enviesado seguido por uma rara gargalhada que atraiu a atenção até de estranhos. Numa brincadeira singela, condutora do desconhecido, nos apresentamos com nomes de personagens indissociáveis da novela Gertrude, de Hesse, transpondo para o mundo material um pouquinho da emoção, espiritualidade e motivação que inebriam os seres humanos imersos na sua ficção.
Não perguntei nem especulei nada sobre sua vida e ela fez o mesmo. Apenas seguimos mergulhados em um mundo totalmente nosso. Em menos de meia hora, eu já pouco enxergava além de seus olhos. A rodoviária desapareceu do meu campo de visão e me senti na orla da existência terrena, sobre uma ponte que vibrava, atraindo meus pés para um quinhão distante, que se projetava para dentro e para fora de mim, fazendo meu coração rufar. Como passatempo, ela sugeriu recriarmos “Gertrude” com base em nossos anseios, desconsiderando o que Hesse teria feito ou pensado. Assim a história renascia através da nossa oralidade. Eu falava por Kuhn e ela por Gertrude. Imaginei mais tarde que ao nosso redor parecíamos dois jovens alucinados, o que não nos incomodava nem um pouco. Nos confortávamos com a completude do momento.
Quando o ônibus chegou, entramos e caminhamos até as últimas poltronas à direita. O veículo estava quase vazio. Ela sentou ao meu lado e tirou algumas folhinhas verdes que se fixaram no meu cabelo como presente de uma brisa. Logo começou a esfriar, e o céu enturvecido fez a noite precoce suplantar o horário de verão. Então tirei uma blusa da minha mochila e ela a vestiu. Sem dizer palavra, escorou a cabeça em meu ombro e assistimos a chuva paulatina escorrer pela janela. Como havia poucos passageiros, ouvíamos até os sons estalados dos pneus do ônibus em atrito com a água. A luz que inexistia lá fora, crescia dentro de nós, iluminando tudo aquilo que a visão ignora na superficialidade. Definitivamente o mundo era um lugar diferente.
Gertrude dormia segurando minha mão esquerda, trazendo no rosto uma expressão maviosa que principiava um sorriso. Seus cabelos claros se misturavam aos meus mais escuros que a noite, por ora, grafitada. Seu perfume atuava sobre mim como um fruitivo calmante que harmonizava o ritmo do meu coração. Em Nova Esperança, a chuva se dissipou. Ela acordou e desembarcamos na rodoviária. Não havia conexão para Paranavaí e tivemos que esperar um ônibus convencional da Garcia que chegaria em 40 a 50 minutos. O lugar estava deserto, tanto que ouvi sons de latões de lixo revirados por andarilhos. Gertrude se aproximou de um cãozinho sujo e lhe acariciou a cabeça e a barriga até que ele deitou no pátio da rodoviária com ar de satisfação e as patas apontadas para cima. “O nome dele poderia ser Knulp. É simples, tem jeito de viajante e tenho certeza que não se importa com nada daquilo que motiva a ganância humana”, brincou Gertrude, citando outro personagem de Hesse, e me abraçando contra uma pilastra.
Mantendo meu queixo levemente encostado sobre sua cabeça, em meio ao silêncio notívago, eu ouvia sua respiração e ela a minha. Ficamos assim até a chegada do ônibus. Sentamos nas primeiras poltronas e ela voltou a encostar sua cabeça em meu ombro. Lá fora, assistíamos o estoico contraste da miséria humana. Em Alto Paraná, um rapaz acompanhado de três amigos em um Alfa Romeo Visconti arremessava garrafas long neck contra as placas de sinalização. Na mesma avenida, logo atrás, um homem de mais de 80 anos, com um problema de coluna tão severo que suas costas formavam um arco, recolhia as garrafas que caíam inteiras. Antes de chegarmos a Paranavaí, Gertrude já tinha se aninhado em meu peito. Quando passamos pela polícia rodoviária, perguntei onde ela morava e me disse que iria passar a noite em um hotel, retornando para casa pela manhã. Não entendi o motivo, mas respeitei sua decisão. Afinal, não queria ser visto como intrometido. Na Avenida Heitor de Alencar Furtado, contei que eu desceria no cruzamento com a Rua Antenor Grigoli, e apontei com o dedo o meu destino.
Assim que me levantei, Gertrude segurou minha mão e, com olhos vibrantes, pediu que eu a acompanhasse. Descemos na Avenida Paraná e fomos para um hotel na Rua Getúlio Vargas. Por sorte, ainda havia uma suíte disponível. Subimos, tomamos banho e passamos a noite juntos, nos redescobrindo nas nossas particularidades. Minha voz começava onde a dela terminava, e tudo que emanava de sua natureza floreava a minha própria. Antes de sermos vencidos pelo sono, enquanto ela repousava sobre o meu peito, deslizei as pontas dos dedos das minhas duas mãos pelo seu rosto delicado e, observando atentamente seus olhos dourados, falei: “Há que se ver no olhar o reflexo de um mar que corre calmo e se arrebata com o aroma mais sereno trazido pelo ar. Acho que nem tudo na vida precisa de nome ou de definição. Se estamos aqui agora é o que importa, essa existência rara de uma conexão.”
Ela sorriu, tapou meus olhos com uma de suas mãos miúdas e percorreu meus lábios com os dedos da outra. Depois se aconchegou entre meus braços e dormimos. Pela manhã, por volta das 8h, senti o sol invadindo a janela e iluminando o quarto. Gertrude não estava mais lá. Vesti minhas roupas e desci até a recepção. Ela pagou a conta do hotel, partiu e pediu ao recepcionista que me entregasse um envelope. Numa folha de caderno, confidenciou que não tinha parentes em Paranavaí, que sequer conhecia a cidade. Somente quis me acompanhar e passar pelo menos uma noite comigo, entregue a algo que segundo ela era mais verdadeiro do que a própria vida.
“Me pergunto às vezes quantas pessoas vêm e vão sem se calar o suficiente para ouvir o som do próprio coração. Tanta gente impaciente buscando profundidade em águas rasas, forçando a semeadura de frutos em árvores desfalecidas. Amam o que não amam e amargam na própria essência a dor da falta de vigor. Distante das aparências, choram caladas porque escolheram o pouco que se revestia de muito, o desespero que se travestia fortuito. Numa noite, tive com você o que muitas pessoas nunca tiveram ao longo da vida. Isso é amor em forma inominada, livre, isento, sem rótulos, que reafirma a ideia de que a vida vale a pena até na efemeridade das horas. Somos feitos de lembranças, de momentos e experiências, não de coisas, alianças e convenções sociais. Me perdoe, eu queria muito te ver novamente, mas não posso. Só que nunca esqueça que a ti carregarei pra sempre em meu ser”, escreveu.
Meu coração disparou e minhas mãos tremularam. Voltei pra casa e passei meses sentindo o perfume da tão conhecida e tão desconhecida Gertrude em meu corpo. Ocasionalmente sua voz se projetava no horizonte da minha mente, onde sua frase final dulcificava um eterno poente. “Ficava-lhe a consolação de encontrando-se, por assim dizer, do lado de fora da vida, poder apropriar-se dela e absorvê-la toda de um trago. Restava-lhe a singular e livre paixão de contemplar e observar…Seu destino era, pois, seguir sua estrela, que não reconhecia desvios em seu curso”, registrou, em referência ao final de Rosshalde, de Hesse, que também era o nosso próprio fim.
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Uma noite em Paranavaí
Me perdi refletindo sobre como a escuridão também aspira à vida, revela belezas inexistentes à luz do dia
Uma vez, assim como outras, saí à noite para dirigir sem propósito específico ou destino. Era por volta das 22h, e a luz anilada da lua descortinava o meu caminho. Nas imediações, um silêncio singular contrastava com pios de uma pequena coruja com as garras presas ao galho mais robusto de uma flamboyant que repousava em nossa casa, esparramando-se em formas menores que pareciam dedos de mãos disformes. Nas extremidades, o vento a acariciava com suavidade e ela estremecia, fazendo suas vagens se moverem como unhas longas em maturação.
Conhecedora da natureza, a coruja mantinha-se imóvel exatamente na altura em que a brisa era mais deleitosa, eriçando suas penas e a estimulando a inclinar a cabecinha amolgada para trás. Inflamada, observava atentamente o entorno e ajeitava as garras sobre um grande galho verdejante que cobria nosso quintal. Então emitia um canto prolongado que soava como sinal de agradecimento. Naquele dia, não vi muitas estrelas no céu. Bonançosas, as nuvens não tinham intenção de impressionar os mais desatentos. Tudo ao meu redor estava especialmente apolíneo e assim me perdi refletindo sobre como a escuridão também aspira à vida, revela belezas inexistentes à luz do dia, quando a clareza realça mais o perceptível do que o imperceptível.
“Por que relegam à noite tantos sinônimos funestos?”, pensei enquanto observava da entrada de casa a luz amarelada e desbastada sobre um poste do outro lado da rua. O sopro noturno prosseguia e me trazia o aroma orvalhado e fresco das hortelãs que minha mãe sempre plantou no quintal. Sentei no meio-fio por alguns minutos, e Kika, a cachorra mestiça de casa, se aproximou, emitindo sons miméticos que tentavam imitar a fala humana. Em situações de grande excitação, ela nunca latia. Queria uma autorização para ganhar as ruas tranquilas de uma noite acirrante. Concedida, correu empolgada, meneando o rabo torto que oscilava como ponteiro entre as pernas finas. Suas orelhas sacolejavam como pequenas e vigorosas bexigas amendoadas, recheadas de alguma coisa impalpável como um pouquinho de ar sem sê-lo.
Na praça da catedral, Kika manteve a boca aberta e os olhos intumescidos. Escorregou pela grama e fez balizas embaixo dos bancos de concreto. Quando cansou, retornou sem se importar com manchas de cal, punhado de carrapichos fincados no dorso e cheiro acentuado de sarça. Ela não ia longe. Nunca foi. Seu senso de liberdade não exigia mais de 500 metros de distância de casa. Assim que ela retornou, tirei o carro da garagem e fechei o portão. Coloquei um CD do Mogwai e comecei a ouvir “Take Me Somewhere Nice”.
O horizonte da Rua John Kennedy, no Jardim Iguaçu, parecia afunilado, entranhado numa escuridão cerúlea e silenciosa que principiava muito mais do que os olhos são capazes de ver num primeiro momento. Guiei o carro pela descida, observando mais adiante a brisa aproximando as copas das árvores, como se quisesse uni-las num túnel seivoso com uma base forrada de flores matizadas. Iam se amontoando nas ruas e calçadas, sincronizadas com o ritmo plácido e gracioso da música.
A ausência de aspereza era tão solene que as folhas e o floreado afagavam o asfalto ferido pelo descaso, remendando-o com suas figuras e cores que contrastavam com a opacidade da fuligem fedegosa de cana. A noite era dos felinos. Com poucos cães na rua, os gatos reinavam solitários. Brancos, pretos, acinzentados e mesclados atravessavam por todos os lados sem pressa, fazendo da cauda uma bandeira, um chicote e uma antena.
Antes de chegar à Avenida Parigot de Souza, um deles correu na minha frente. Ficou parado me observando com uma expressão cabalística. Depois lambeu o próprio pelo escuro como a noite. O rabo longo serpenteou remansado. As patas pouco se moviam e os olhos afogueados reluziam um vermelho portentoso. Desviei e o bichano continuou lá, imóvel no seu capitólio de piche. Assisti pelo retrovisor o reflexo dos seus rubis acompanhando o movimento das rodas do carro.
No semáforo perto do cruzamento da Avenida Paraná com a Rua Pernambuco, um catador de latinhas sem teto fez reverência medieval e estendeu as mãos calejadas, pedindo contribuição dos motoristas para comprar algo pra comer. A maioria se recusou a ajudar, até que alguém o chamou e estendeu através da janela do carro uma sacola com um lanche embalado e uma lata de refrigerante. Sem velar o sorriso largo, o rapaz agradeceu e caminhou rapidamente até um terreno baldio. Lá, abriu a sacola, retirou o lanche e de pedacinho em pedacinho alimentou uma cadelinha mestiça com as patas enfaixadas que repousava sobre um lençol surrado.
Desci mais um pouco, até as imediações do Terminal Rodoviário, onde três travestis, com cabelos bem escovados e usando saias e sapatos de salto agulha, apontavam as mãos para um homem de meia-idade embriagado e segurando uma faca de cozinha. “Se ele me chamar de corno outra vez, vou enfiar a faca nele!”, gritou cortando o vento com a lâmina apontada para o jovem que gargalhava em tom de deboche. Assistindo a cena e prevendo final trágico, o dono de um bar se aproximou e disse:
“Olha, Afonso, te conheço há muito tempo e sei que ainda não é o suficiente pra entender sua dor, mas se a vida não vale o amor, muito menos ela recompensa o desamor. Desilusão amorosa não destrói ninguém. O que te mata é a inexperiência em ver e sentir além. Perdi duas mulheres na minha vida, uma pra outro homem e outra pra morte. O amor não se trata de azar ou sorte. Não culpo Deus, não culpo ninguém. Aprendi há muito tempo que a vida é sempre maior do que nós. Ela é tão grande que muitas vezes não a enxergamos porque estamos cabisbaixos. Tenho certeza que amanhã cedo você vai perceber isso. Vá pra casa, meu amigo. Suas filhas vão precisar de você mais do que nunca.”
Afonso soltou a faca no chão e ela tiniu contra a calçada de mosaico português. Mirando o chão, falou obrigado com a voz embargada e abafada. Levou as mãos ao rosto para esconder as lágrimas, virou as costas e correu arrastando o par de chinelos pela Avenida Salvador, até desaparecer no breu da Rua Serafim Afonso Costa.
Subi pela Rua Paraíba, onde quase em frente ao Shopping Cidade um casal discutia, atraindo curiosidade e comentários até de quem passava a metros de distância. Alguns pareciam esperar e até torcer pelo pior. Não prestei muita atenção na conversa, apenas no momento em que o rapaz puxou a moça para si e a calou, segurando-a pela cintura e dando-lhe um beijo vulcânico que diminuiu até o ritmo do trânsito na Rua Getúlio Vargas.
Depois segui em direção à Avenida Distrito Federal e por um descuido entrei na rotatória sem dar preferência a uma caminhonete que vinha acelerada. Segurando uma lata de cerveja, o motorista buzinou, me ultrapassou na contramão, reduziu a velocidade, abriu o vidro e manteve o dedo médio apontado, aguardando minha reação e me impedindo de passar dos 20 quilômetros por hora. Quando levantei o polegar da mão esquerda, ele simplesmente desapareceu do meu campo de visão, deixando uma rajada de fumaça que em poucos segundos se desvaneceu como sua ira.
Continuei dirigindo, sentindo o vento brando no rosto, o bálsamo volátil das ruas e de tudo que a habita. O tráfego seguia fleumático na entrada do Jardim São Jorge. Acompanhava a lentidão que contagiava um grupo de adolescentes encostados na parede de um prédio comercial abandonado. Bebiam tubão e uns zombavam das tatuagens dos outros, numa brincadeira de ressignificações.
No entorno da Praça dos Expedicionários, um idoso sentado sobre os próprios pés monologava num tom que parecia um exercício de dicção. Quando me viu, se aproximou e me convidou pra descer do carro. “Chega aí, gente fina. Vou te contar uma história”, adiantou. O homem parecia um jovem habitando um corpo de mais de 70 anos. Mantinha a postura ereta e se movia com leveza.
“Não tenho problema na coluna porque a vida toda andei mais inclinado pra cima do que pra baixo. Como você vai enxergar o mundo se não fizer isso?”, ponderou às gargalhadas. Me puxou pelo braço e me levou até o centro da praça, onde as cinzas de seu pai foram lançadas décadas atrás. Em poucos segundos, senti perfume de hortênsia. Quando olhei para o lado, vi aquele homem de quem nunca soube o nome tirando um sem número de pétalas azuis dos bolsos de uma calça larga. Ao caírem no chão, ajudavam a completar um grande círculo apoteótico.
Era uma homenagem ao seu pai, um pracinha que participou da Segunda Guerra Mundial e sobreviveu a um bombardeio em Montese, no Norte da Itália, mas morreu atropelado no mesmo lugar onde a praça foi construída, após salvar um cão abandonado. “Ele continua por aqui. Sei disso porque o mesmo vento que tantas vezes levou suas cinzas para longe daqui as trouxe de volta. Elas vêm e vão, indeléveis, na brincadeira do sopro sul com o sopro norte. A presença do meu velho vem acompanhada do som de um assobio que ele dava sempre que ria. Defendia que a noite era o início, nunca o fim do dia.”
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Benílio, um tipo de Verlaine travestido de Rimbaud
Como se feito de ironias, Benílio era visto por mim como um sujeito vivendo um paradoxo existencial

Benílio, que não aparece na foto, participava das discussões do Projeto Mais Cinema na Casa da Cultura (Foto: Amauri Martineli)
Já passei por situações muito incomuns e estranhas na minha vida e hoje vou relatar uma delas. Em 2008, comecei a coordenar um projeto de cinema na Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade. O público era modesto, mas bastante participativo, tanto que com o tempo estreitei contato com os frequentadores mais assíduos. Afinal, tínhamos em comum o amor pelo cinema e o interesse em discutir sobre o tema. Os encontros ocorriam às quartas-feiras, quando exibíamos algum filme fora do circuito comercial. Ao final, eu fazia uma análise e em seguida abria espaço para o público fazer perguntas. Foi assim até 2013. Era gratificante ver que até pessoas de outras cidades gostavam do projeto.
Em 2010, um rapaz a quem chamo de Benílio, para preservar a sua identidade, compareceu ao Mais Cinema. Na primeira vez em que participou, se mostrou bastante atento ao filme, a discussão e tudo que o cercava. Basicamente, um sujeito tranquilo, questionador, com bons argumentos e um humor sardônico. Algum tempo depois, Benílio começou a sumir e ressurgir durante as sessões de cinema. Parecia agitado e incomodado, o que contrastava com tudo que notei anteriormente sobre seu comportamento. A expressão ponderada, o olhar quiescente, foram substituídos por uma agitação frequente que o fazia se levantar da poltrona como se o estofamento estivesse dominado por percevejos.
Às vezes mudava de poltrona, até que sem observar lado algum abandonava o local com pressa, coçando os olhos com tanto vigor que mesmo ao longe dava a impressão de que o objetivo era esmagar o globo ocular com pontadas de dedo. Apesar disso, Benílio continuou frequentando o projeto. Sorridente e trocista, aparentava ser mais jovem do que realmente era. Andava sempre à vontade; de camiseta, bermuda e tênis ou sandálias. Mas ostentava um olhar amaneirado para compartilhar com pessoas de quem desgostava. Como se feito de ironias e de uma acidez vocabular inconstante, Benílio era visto por mim como um sujeito vivendo um paradoxo existencial.
Assim como na Gioconda de Da Vinci, seus olhos eram como uma antítese do sorriso, o que relevava mais intransparência e ardil do que insegurança. Com naturalidade dúbia, despertava reticência, principalmente sobre suas intenções e elucubrações durante as conversas. Jupiteriano, pouco se importava em transmitir clareza quando não simpatizava com alguém. Na realidade, fazia até questão de minar a conversa para afastar o interlocutor. Afeiçoado à arte clássica, ele desprezava com poucas ressalvas a arte contemporânea.
Por volta dos 20 anos, Benílio abandonou o curso de medicina da Universidade Federal do Paraná, mais tarde sendo relegado à pária por colegas, amigos e até familiares. Não se importava com as convenções sociais e as postulações de um mundo em que se deve viver sob a égide cronológica dos deveres. Parecia-lhe um despautério a ideia de que o ser humano deveria se limitar a estudar o suficiente para conseguir um bom trabalho, se casar, ter filhos, netos e falecer; assim não fazendo mais do que uma formiga obreira que percorre o chão nu transportando alimentos em horários estratégicos.
Seu nível de inteligência e cultura estava muito acima da média, o que era endossado por décadas mergulhado em livros, música e outras formas de arte. Um dia, me relatou alguns de seus conflitos amorosos com uma jovem com quem rompeu relacionamento de longa data. “Eis uma perda de tempo, uma relação que minora a alma em vez de alongá-la”, dizia. Em complemento e observação, citei que todo o nosso saber se reduz a aprender a renunciar nossa existência para podermos existir, segundo um aforismo de Goethe.
Ocasionalmente, Benílio me pedia carona na saída da Casa da Cultura. O deixei algumas vezes no cruzamento da Rua Manoel Ribas com a Avenida Paraná, no centro de Paranavaí. À época, eu dirigia ouvindo uma banda romena de rock chamada Travka que curiosamente falava de conflitos de identidade, do recrudescimento humano e da minoração da sensibilidade. Enfim, existentialisme par l’existentialisme.
Notei mais tarde que o rapaz era emocionalmente inconstante e por isso consumia com frequência medicamentos controlados. Solitário, tinha um pai aventureiro que há muito tempo se mudou para Rondônia. A mãe, com quem também pouco convivia, recebia visitas esporádicas do filho no Jardim Santos Dumont. Benílio morava sozinho em uma velha pensão na Rua Amapá, onde dividia o espaço com os mais diferentes personagens marginalizados. A maioria, pessoas que percorriam sob os ditames da penúria um chão de paralelepípedos tão maciço quanto a dor da invisibilidade velada por um sorriso frugal.
Um dia, eu corria pela Avenida Lázaro Vieira, no Jardim Progresso, quando ouvi Benílio me chamando. Olhei para o lado, ele sorriu e se aproximou de mim. Relatou que estava estudando Programação Neurolinguística (PNL) porque acreditava que as ações humanas são motivadas pelas próprias experiências, não pela realidade em si. “A mente e o corpo formam um sistema que a PNL ajuda a harmonizar, estimulando novas formas de pensar, sentir e agir. É um meio de minimizar conflitos entre o corpo e a mente”, comentou.
Na semana seguinte, após mais uma sessão do projeto Mais Cinema, Benílio pediu que eu o deixasse na Praça dos Pioneiros. Eram quase 23h, ele desceu do carro e começou a caminhar sozinho em torno da praça, sem se enfastiar com a solitude e a frágil iluminação precária e açafroada dos postes que atraíam somente insetos. Andou alguns metros e desapareceu no meio da quadra na outonal escuridão enevoada. Ignorava lados e direções, despreocupado em ser expulso da própria introspecção por sacomanos, ladrões, delinquentes ou vadios.
Como já fazia parte da minha rotina percorrer a cidade a trabalho, vez ou outra eu o via vagando sozinho pelos mais distantes pontos da área urbana. Nunca perguntei o que fazia. De qualquer modo, não era difícil perceber que Benílio não se importava em ignorar pessoas e deixar claro que sentia ojeriza pela superficialidade. Demonstrava grande amor por muitas conquistas humanas. Em contraponto, nutria indiferença e desgosto por tanta gente. Julgava o mundo como tornado doente e usava isso como justificativa da pontual ausência de empatia.
Uma vez, há alguns anos, eu e meu amigo Sobhi Abdallah fomos até a casa da mãe de Benílio, onde ele estava hospedado enquanto ela viajava. O objetivo era conversar sobre o roteiro e a pré-produção de um documentário baseado na vida de um eremita conhecido como Negão do Surucuá. Entre tereré e palavras, a tarde até que rendeu bem. Dias depois, Benílio me ligou avisando que precisávamos discutir novamente sobre o roteiro. Segundo ele, a reunião também havia sido acertada com Abdallah e meu amigo Amauri Martineli.
Quando cheguei ao local, estacionei o carro e estranhei que não havia nenhuma movimentação na varanda. De repente, Benílio gritou, pedindo que eu entrasse. Lá dentro, perguntei sobre os outros convidados e ele mentiu afirmando que eles não puderam comparecer. Após minutos, o rapaz se aproximou e me convidou para tomar café. Assim que coloquei os pés na soleira, perguntei o que ele estava preparando. “Não estou preparando nada. O café somos nós dois!”, comentou com naturalidade enquanto penetrava a massa escura de um pão preto com uma longa faca de cozinha. Em seguida, me observou atentamente os olhos, revelando um sorriso narcísico e pela primeira vez naturalmente mórbido.
Me afastei de Benílio, que não reconheci naquela figura tétrica e medonha. Contrariando todas as minhas possibilidades de reação diante de situação tão imprevisível e espantosa, expliquei tranquilamente que iria até o carro buscar o pré-roteiro do documentário. “Já volto. É rapidinho!”, argumentei sem titubear. Ele assentiu com a cabeça e continuou na cozinha. Caminhei a passos curtos e pesados, enojado, sentindo meu olhos queimando e minhas mãos suando. O enorme portão parecia a quilômetros de distância e suspeitei até que Benílio poderia tê-lo trancado. Então me preparei para saltá-lo se necessário. Questionei até se ele não teria deixado ao alcance das mãos uma arma de fogo, caso eu fugisse. Por bem, consegui abri-lo e lá fora senti o sol em todo seu esplendor me revigorando, me banhando com sua energia imperecível.
Por segundos, meus sentidos ficaram mais aguçados do que nunca. Ouvi cães latindo, mãe empurrando carrinho de bebê, homem estacionando carreta e duas crianças brincando de pular corda. Assim que entrei no carro, virei a chave e ouvi o som do motor, meu coração desacelerou. Parti com a sensação de que apesar de tudo o mundo ainda era o mesmo e estava lá para lucilar diante de meus olhos escuros. Nunca mais vi Benílio. Fiquei sabendo apenas que, assim como um tipo peculiar de Verlaine travestido de Rimbaud, foi embora para Rondônia tornar-se desbravador de coisa alguma.
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Um velório animado
Eu assistia tudo como um atento espectador, até que minha tranquilidade foi perturbada por um pinscher

Capela Mortuária de Paranavaí, onde o episódio aconteceu no início da minha adolescência (Foto: David Arioch)
No início da minha adolescência, quando alguém importante para os professores do Colégio Unidade Polo falecia, eles tinham o costume de convocar os alunos para o velório antes da última aula. O objetivo era realizar uma homenagem póstuma, reafirmar a importância do falecido, mesmo que os estudantes não o conhecessem.
Um dia, ao final do intervalo, a orientadora se aproximou da porta da nossa sala, pediu autorização para a professora, e disse que uma senhorinha aposentada, que trabalhou anos como zeladora do colégio, morreu em decorrência de um ataque cardíaco. “Ela está sendo velada na Capela Mortuária, ao lado do cemitério. Então vocês vão sair mais cedo hoje para se despedir dela”, disse. Fiquei um pouco confuso porque eu não sabia quem era a falecida. Eu não estudava lá há tanto tempo e me questionei sobre como iria me despedir de alguém que eu nunca tinha visto. A mesma preocupação foi partilhada por outros colegas de classe. Um deles levantou a mão e gritou: “Ué, sei nem quem é a tiazinha. Como vou dar tchau pra ela assim?”
Muitos dos alunos não conseguiram se conter e gargalharam. O silêncio voltou com o olhar sisudo e reprovador da professora que lançou uma régua contra a mesa, exigindo respeito. “Será que vocês não entendem que uma pessoa morreu? Isso não tem graça! É inconsequente rir de uma situação tão dolorosa”, reclamou depois de amiudar os olhos, franzir a testa e cerrar os dentes. Quando chegou a hora de deixar a sala, a professora explicou que poderíamos levar nossas bolsas e mochilas. Estávamos autorizados a ir embora dez minutos antes do horário normal de encerramento das aulas. Foi o suficiente para que os estudantes se entreolhassem com sorrisos dúbios e maliciosos.
Logo que coloquei os pés no corredor, notei que havia muita gente. Todos os alunos foram convocados para a despedida, mas existia um grande contraste entre os mais jovens e os mais velhos. A notícia, que trazia poucas lembranças aos estudantes do então primeiro grau, consternou principalmente os do segundo grau, que estudavam no colégio há mais tempo. Apesar disso, um intenso burburinho atravessou o pátio central, por onde sons de pisadas ecoavam com a violência de uma marcha descompassada.
“O que você achou daquele filme Homens de Preto?”, “’O Coro Vai Comê’, do Charlie Brown Jr., é dá hora! Saca coé, né, mano?” “Domingo a gente vai chegar lá nos Três Morrinhos de bicicleta, tá a fim de ir?” “Po, véi, queria tá em casa assistindo Carmen Sandiego!” Entre conversas aleatórias, percebi que pouco se falava sobre a falecida. Em meio ao barulho, atravessamos a área descoberta que dividia o nosso pavilhão e a ala administrativa do colégio.
Descemos em direção ao estacionamento, onde os mais endiabrados escorregavam pelo gramado, penduravam nas costas dos amigos e lançavam suas mochilas sobre os colegas. Antes de deixarmos o portão do estacionamento, a algazarra foi contida por três ou quatro professores que repreendiam os baderneiros com palavras de ordem e ameaças de punição. Caminhamos mais uma quadra até chegar à Capela Mortuária Municipal. Na esquina, olhei para trás e vi que a fila se afunilou. Metade dos estudantes foram embora. Parte virou à esquerda da Rua Miljutin Cogei e parte à direita. Outros correram pela Rua Professora Enira Braga de Moraes em direção ao Ginásio Noroestão, um dos territórios preferidos dos matadores de aula.
Eu, desde sempre desabituado a frequentar velórios, recusei o pedido de alguns amigos que me chamaram para ver de perto quem era a falecida. Fiquei do outro lado da Rua Paraíba, com as costas no muro branco observando a movimentação intensa dentro e fora da capela. “E se mandarem a gente falar alguma coisa? Perguntar como a conheci? Pode ser até que algum doido me confunda com um parente e peça pra carregar o caixão. Imagine só, os outros me olhando com estranhamento e raiva, como se eu fosse um impostor? Não quero isso não!”, refleti, preferindo manter-me no anonimato.
Mas o distanciamento não durou muito tempo. Uma professora me viu do outro lado da rua e me levou até a capela. Ainda assim me mantive o mais afastado possível, atrás de uma grande pedra que algumas pessoas usavam como assento. Perto da multidão, eu ouvia cochichos dos mais diversos tipos. Comida, lazer e futebol figuravam entre as pautas comuns. “O que tem pra comer lá na sua casa, Roberta? Será que sua mãe fez bolo?”, perguntou um estudante com sorriso enviesado. Notei que o nível da conversa oscilava de acordo com a distância do caixão. Os mais lamentosos o cercavam enquanto os mais indiferentes mantinham-se afastados, preocupados com as trivialidades cotidianas.
Eu assistia tudo como um atento espectador, até que minha tranquilidade foi perturbada por um pinscher mesclado que se enfiou entre as minhas pernas e começou a uivar. O som era tão agudo e caricato que ninguém pensou na possibilidade de existir um bicho que uivasse com tamanha trampolinagem. Não, nenhuma pessoa fez questão de ver se havia algum cachorro. A atenção, as caretas e as expressões de raiva e desprezo, até por parte de quem pouco se importava com o velório, se voltaram para mim. “Caramba! Tem gente achando que sei dar esses uivos bizarros! Sacanagem!”, me lamentava.
Sem esconder o constrangimento, dei alguns passos para trás, virei o rosto corado, cocei os olhos e reagi com um sorriso amarelo, sem dizer palavra. Um professor se aproximou e disse: “Poxa, David! Você é um cara tão tranquilo. O que tá acontecendo contigo? Quer bater um papo na orientação?” Respondi que não fiz nada e fui ignorado. E para piorar, o bichinho voltou mais três vezes, uivando em intervalos e se afastando. Ninguém via o pinscher porque ele se enfiava entre os arbustos que cresciam livremente na esquina da capela.
Ameacei ir embora, mas seria pior. Como eu provaria que não fiz nada? Então optei por ficar pelo menos mais alguns minutos. De repente, quando algumas pessoas conversavam em torno do ataúde, alguém pisou de mau jeito e caiu sobre o caixão, o derrubando e fazendo a tiazinha rolar pelo piso. Em meio ao alvoroço, o pinscher correu uivando. Agarrou uma das pernas da falecida com as duas patas da frente e começou a roçar freneticamente o seu pênis diminuto.
Os familiares e amigos da zeladora ficaram horrorizados. Os demais se esforçavam para conter os risos. E o bichinho, elevado à protagonista de uma tragicomédia, não hesitava em mostrar os dentes a qualquer um que tentasse afastá-lo daquela perna rechonchuda. Me senti mal pela tiazinha, mas fui embora satisfeito em provar que aquele uivo caricato não era artifício de um adolescente gaiato.
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Anu-preto, o sentinela de cauda cor de canela
Ele saltava e corria com astúcia, mantendo o bico levemente inclinado para cima e os olhos no horizonte
Acredito que tenho sorte de nunca ter sofrido nenhum acidente sério na infância. Nem mesmo quebrei braço, perna ou qualquer outro membro. O que era visto até como anormal na minha rodinha de amigos peraltas. Um dia nos encontramos e cada um disse de que forma já tinha se machucado e quais foram as maiores consequências.
Alguns se orgulhavam de suas cicatrizes e contavam histórias fantasiosas. Na realidade, bem duvidosas. “Ah! Essa aqui na minha perna eu ganhei depois de lutar com um doberman gigante que morava ao lado da casa da minha vó, na Rua Maranhão. Ele me mordeu e eu mordi ele. Ainda fiz dele o meu cavalinho. Hoje, sempre que me vê, ele abaixa o focinho em sinal de respeito”, narrou Henrique com sete anos em 1992.
Naquele ano, Júlio chamou eu e meu irmão Douglas para irmos à sua casa na Avenida Juscelino Kubitschek brincar de pega-pega. Numa das fugas, comecei a circular em torno de uma lixeira presa à calçada. Por descuido, bati a cabeça na quina de ferro e senti a astenia tomando conta do meu corpo. A visão ficou ligeiramente turva e o sangue escorreu pelos meus cabelos, rosto e blusa de moletom.
A poucos metros de distância, no cruzamento com a Rua Chozo Kamitami, enquanto o Seu Roberto, pai de Júlio, tirava o carro da garagem para me levar ao Hospital São Lucas, notei um anu-preto me observando e soltando um pio sibilante. As penas de sua cauda lustrosa se abriam e se fechavam. Quando saímos, olhei pela janela e ele ainda continuava lá, mas já não emitia nenhum som.
No hospital, deitei numa cama e tive a minha primeira experiência com a sutura. Em 15 dias, logo que os poucos pontos foram retirados, fiquei passando a mão, sentindo a lombadinha ainda sensível. Era a minha mais importante cicatriz e todos podiam ver a pequena área raspada com navalha. Curiosos, meus amigos pediam para que os deixasse encostar o dedo. “Que massa, David! Eu nunca tinha visto uma cicatriz na cabeça!”, comentou Thiaguinho.
Durante a minha recuperação, nos reuníamos todos os dias de manhã na Rua Artur Bernardes, no Jardim Progresso, perto da Sanepar. Sentávamos no meio-fio em frente de casa e assistíamos a revoada de um grupo de anus-pretos, moradores de um enorme terreno coberto por matagal. Havia tanta vegetação que nem o muro de quase dois metros de altura impedia que o verde se esforçasse para ultrapassar os limites do cercado de lajotas. Meu avô dizia que a família de anus estava lá antes do surgimento do bairro.
“Esses aí são descendentes dos primeiros que já viviam aqui quando tudo isso era floresta. Eles continuam morando aí porque é onde se sentem mais seguros”, contou. Às vezes eu pendurava sobre o muro para observá-los. Rapidamente notavam minha presença e se aninhavam, protegendo as fêmeas e seus ovos azuis-esverdeados. Suas penugens não eram simplesmente pretas e uniformes. Tinham tons amendoados por causa da terra que pincelava o capim-melado e por consequência suas penas em dia de chuva intensa.
O líder do bando possuía cauda cor de canela, e foi assim que o reconheci como o anu-preto que piou em minha direção no dia em que me machuquei. Ele não era o maior, mas nas muitas vezes que o assisti sempre me pareceu o mais observador. Os outros companheiros nem se incomodavam quando ele saltava e corria com astúcia sobre eles, mantendo o bico curvado levemente inclinado para cima e os olhos no horizonte.
Sempre que algum pássaro estranho ou outro bando de anu invadia o terreno, ele emitia um sinal sonoro curto e estrídulo, preparando os companheiros para uma ofensiva. Ao se deparar com até 15 anus-pretos em estado de alerta, o invasor, em grupo ou sozinho, normalmente não ficava mais de um minuto no terreno, um pedacinho de bosque que contrastava com a urbanidade ainda plácida das quatro vias que o cercava.
Não foram poucas as ocasiões em que vi os anus empoleirados sobre uma árvore se comunicando como se estivessem conversando. Suas vozes mudavam com tanta frequência que eu tinha a impressão de que faziam pilhérias. À tarde, sempre que o sol se lançava sobre os galhos e ramagens de uma sete copas, facilmente observada da janela da sala de casa, eu via três ou quatro anus-pretos se banhando com a luz solar.
Ocasionalmente levantavam a cabeça, abriam as asas e as chacoalhavam. As penas lucilavam com tanta graça que eles reconheciam o seu esplendor ao verem o próprio reflexo no bico reluzente do companheiro mais próximo. Daí estufavam o peito e cantavam em sequência, cobrindo as lacunas de silêncio deixadas pela ausência do vento. Só partiam quando a brisa se intensificava ou o sol se distanciava.
Mais tarde, mudamos para a Rua Sílvio Meira e Sá Bezerra. A minha nova rotina me impedia de ver os anus-pretos com frequência, tanto que cheguei a ficar quase um mês sem visitar o lugar. Num sábado, retornei ao terreno, subi em uma ripa e pendurei sobre o muro. Tive uma grande surpresa. Não havia nenhum anu-preto ou vegetação, apenas um enorme vazio que marcava o fim de uma história iniciada antes da chegada do primeiro pioneiro àquela área.
Percorri as ruas do Jardim Progresso e Jardim Paulista até ser vencido pela estafa. Queria encontrar o bando de Marrom, apelido que dei ao líder dos anus-pretos por causa da sua cauda acanelada. Não encontrei nenhuma pista. Era como se eles nunca tivessem vivido naquele lugar. Fiquei confuso e não me conformei com o fato de que nunca mais ouviria seus cantos maviosos ou veria seus olhos negros – ora escabreados, ora complacentes.
Bati palmas em algumas casas das redondezas para pedir informações. A maioria não se importava ou não fazia questão de me ajudar. “Isso aí traz coisa ruim, mau agouro, morte. Não é coisa de Deus. Foi bom que sumiram daqui”, declarou uma senhora que morava numa casa branca na esquina da Rua Artur Bernardes.
Meses depois, em uma tarde, escorreguei no piso molhado e bati a cabeça no chão quando minha mãe e minha tia Paula estavam lavando a garagem. Levantei estonteado, só que tive a impressão de que estava tudo bem apesar da pancada. Ledo engano. Coloquei a mão na cabeça e senti o sangue fluindo aos pouquinhos. Então chamaram meu pai, abriram o portão e me levaram ao Pronto Socorro.
Curativo feito, retornei para casa e sentei na calçada com as costas escoradas no portão. De repente, ouvi um canto curto e intervalado vindo de uma árvore do outro lado da rua. Olhei para o alto e vi Marrom. Me aproximei e notei que seu bico estava levemente deformado, mas cicatrizado, como se tivesse sido ferido há bastante tempo.
Cheguei mais perto e estendi a mão direita. No mesmo instante o pássaro abriu o bico e me lançou um coquinho que caiu na palma da minha mão. A fechei e desci da árvore. Continuei lá um bom tempo enquanto Marrom estufava o peito e cantava sozinho para o seu único espectador. Me contentava em saber que ele estava vivo, mesmo que eu estivesse imerso no desconhecimento de seu destino.
Antes de partir, emitiu um último som agudo que fez algumas folhas vibrarem e voou. Cada vez mais alto, se afastou do meu diminuto campo de visão. E sua cauda acanelada pelo capim-gordura, banhado em água de chuva e solo arenoso, desapareceu na esquina da Rua Sílvio Meira e Sá Bezerra, onde Marrom foi visto pela última vez.
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25 minutos na fila do hipermercado
Na minha frente um homem jocoso de não mais que 40 anos aproveitava a lentidão
Em uma das minhas idas ao hipermercado, deixei o carro a quase 100 metros de distância da entrada. Tudo bem, afinal eram quase 18h de sábado. Ainda assim o estacionamento cheio já prenunciava uma curiosa exaustão de ânimos. Logo na entrada, um rapaz empurrando um carrinho em minha direção tentou disputar um estreito espaço entre dois carros com um senhor mais à frente. O resultado foi um choque de carrinhos que lançou ao chão pacotes, frascos, potes, sacolas e garrafas.
“Que isso, meu amigo! Pra que essa sangria desatada?”, questionou o homem de meia-idade. Por sorte, nada quebrou, mas nem por isso o jovem escapou de ouvir uma reprimenda daquelas que os pais dão nos filhos mais encapetados. Acuado pela vergonha, o rapaz abaixou a cabeça, levou as mãos ao rosto, se desculpou e ajudou o homem a recolher as compras e colocá-las no porta-malas.
No interior do hipermercado havia tanta gente entre algumas gôndolas que até hoje não sei se as pessoas se acotovelavam sem querer ou se queriam extravasar a raiva por causa dos preços nas etiquetas. Perto da seção de doces, uma criança risonha de não mais que sete anos aproveitou a distração dos pais para esconder um pacote de paçoca embaixo de um pacote de macarrão parafuso.
Depois que comprei tudo que precisava, caminhei até a seção de hortifruti, onde vi uma fila enorme para o caixa rápido à minha direita. Em forma de L, quase encostava na padaria. Ao longe se ouvia resmungos que pareciam zumbidos de abelha. “Isso aqui promete. Mas sem problema, é sábado mesmo”, pensei, mesmo ciente de que eu era uma exceção diante de uma maioria que interpretava aquilo como um desrespeito ao consumidor – e com razão.
Na minha frente um homem jocoso de não mais que 40 anos aproveitava a lentidão da fila e pedia ao filho de nove ou dez anos que buscasse alguns produtos. Numa dessas demandas, falou ao menino para ver o preço do limão-taiti a poucos metros de distância, à nossa esquerda. Perdido, o garoto não notou a placa diante de seus olhos e o pai disse: “Po, menino! Tá na sua frente aí o negócio! Olha pra cima!” Ainda confuso, o garoto de sorriso amarelo rodopiou e nada, atraindo risos abafados dos clientes. Até que se aproximou da placa e visualizou o valor.
“Pode trazer três desse aí”, avisou o pai após saber o preço. Com a demora e a fome, o garoto começou a percorrer as bancas com os olhos. Algumas frutas mais suculentas que outras instigavam sua imaginação. “Que delícia!”, dizia ele lambendo os beiços e admirando uma caixinha que trazia um modesto cachinho de uva niágara. Contente, se aproximou do pai, estendeu as mãos e mostrou o seu achado. “Pelo amor de Deus, você tá louco? 12 reais por um cachinho que dá pra engolir numa bocada? Nãããoooo, pode devolver!”, sentenciou. A reprovação do pai foi tão enfática que desvaneceu até a vontade de comer uva.
Então o garotinho apostou em duas mangas Tommy que o pai aceitou com um sorriso maroto quando soube que era dia de promoção. A criança também recebeu um olhar beneplácito ao depositar na cesta uma bandejinha de morango ao preço de R$ 2,99. “Agora esse menino tá aprendendo a viver e a não ser enganado”, suponho que refletiu o homem quando deu dois tapinhas no ombro do filho. Nos 25 minutos que fiquei na fila do caixa rápido, o pai que antes transportava uma cestinha já estava carregando duas. E assim a gerência do hipermercado agradece.
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