David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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Os zumbis de Romero

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Night of the Living Dead, o primeiro filme de horror como crítica social

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Filme é um dos baluartes da zombie culture (Foto: Reprodução)

Lançado em 1968, Night of the Living Dead (A Noite dos Mortos-Vivos) é um filme cult de horror do cineasta estadunidense George Romero que apresenta uma crítica social a partir das deficiências de caráter do ser humano em situações de risco.

Em Night of the Living Dead, os mortos voltam à vida por causa da radiação de um meteorito do planeta Vênus. Cientes de que os zumbis se alimentam de carne humana, os vivos fogem em busca de abrigo. A antropofagia no filme é tão direta quanto simbólica; representa a autodestruição do homem e a anulação do que cada um representa na individualidade.

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No clássico, o apocalipse zumbi amplia o caos no universo racional (Foto: Reprodução)

Na obra, alguns sobreviventes se refugiam em um casebre localizado na área rural de Pittsburgh, na Pensilvânia. A partir do confinamento, Romero apresenta a vileza humana através de ações de egoísmo e autopreservação. Em vez de se unirem para tentarem se livrar dos zumbis, os personagens brigam entre si, ampliando o caos em um universo racional, onde o intelecto deveria ser dominante.

O mais curioso é que paralelo a isso, os mortos-vivos que estão fora da residência, mesmo privados de suas funções cerebrais, representando de forma peculiar a essência primitiva e livre do homem aquém dos princípios sociais, agem coletivamente, como uma infantaria. Em Night of the Living Dead, Romero também confronta o preconceito racial ao destinar o papel mais importante do filme a Ben (Duane Jones), um jovem negro que ao contrário dos brancos da história é o personagem mais lúcido, coerente e perspicaz. Há ainda uma cena que faz referência ao ativista Martin Luther King Jr.

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Night of the Living Dead tem como cenário a área rural de Pittsburgh (Foto: Reprodução)

Outro destaque é a previsão quase profética do cineasta ao mostrar a submissão do homem diante da tecnologia. Um grande exemplo é a cena em que os abrigados parecem reféns de um televisor, aparelho usado para preservar algum tipo de relação com o mundo exterior. Aí subsiste uma ironia, pois a TV já era encarada como um instrumento de reafirmação coletiva, condicionamento e uniformidade reflexiva.

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Obra é protagonizada por Duane Jones no papel de Ben (Foto: Reprodução)

Um dos precursores da zombie culture, Night of the Living Dead influenciou centenas de filmes, além de séries televisivas. O clássico está entre os melhores de todos os tempos nas mais importantes listas de grandes obras de horror. É considerado o expoente do splatter film, subgênero que tem como principal característica a violência gráfica que por meio de efeitos especiais ressalta a vulnerabilidade do corpo humano e a teatralização da mutilação.

Embora não se enquadre tanto como splatter film quanto Dawn of the Dead, lançado por Romero em 1978, Night of the Living Dead é um marco e serviu de base para os subgêneros exploitation e slasher. O primeiro diz respeito aos filmes de apelo visual e baixo orçamento. O segundo se refere as obras ao melhor estilo “serial killer à solta”, como os sucessos Halloween, de John Carpenter; Friday The 13th, de Sean S. Cunningham; e Nightmare on Elm Street, de Wes Craven.

Até hoje, Night of the Living Dead surpreende pelo custo de produção de U$ 114 mil, o que garantiu um lucro de U$ 30 milhões em todo o mundo. Em seu livro, Planks of Reason – Essays on the Horror Film, de 2004, o pesquisador estadunidense Barry Keith Grant, define o clássico de Romero como um divisor que transformou o cinema independente norte-americano e apresentou uma fórmula de sucesso aos muitos cineastas que enveredaram pelo horror nos anos 1970 e 1980.

Aluga-se ideologia cinematográfica

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Ex-bancário mantém em Paranavaí uma videolocadora com grande acervo de filmes alternativos 

Téia com alguns de seus títulos do cinema humanista japonês, expressionista alemão e revolucionário soviético (Foto: David Arioch)

Téia com alguns de seus títulos do cinema humanista japonês, expressionista alemão e revolucionário soviético (Foto: David Arioch)

Em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, a videolocadora de José de Arimateia Tavares se destaca, mesmo com a ascensão dos filmes online e de plataformas como Netflix. José de Arimateia não se limita a oferecer ao público somente filmes comerciais. Vai muito além, disponibilizando cultura e educação em DVD e Blu-ray. Em um passeio pelos expositores, geometricamente alinhados, é fácil encontrar as mais importantes correntes artísticas do cinema mundial.

Enamorado pelo cinema alternativo ou cult desde a juventude, na década de 1990 o ex-bancário conhecido como Teia decidiu abrir uma videolocadora idealizada muitos anos antes. Sua missão extracomercial e até pessoal era reunir um acervo com títulos que tanto vislumbrou assistir.

“Tentei comprar esses filmes apenas para apreciação pessoal, mas as produtoras não negociavam com quem não fosse do ramo. Então esse foi o estímulo final para que eu abrisse a locadora”, justifica José de Arimateia.

A partir de 1996, com o novo empreendimento, Teia parou de viajar até Curitiba e Londrina para alimentar o amor pela sétima arte. “Fiz isso durante 12 anos. Ia até a capital nos finais de semana e assistia pelo menos sete filmes”, conta.

O empresário se emociona ao se recordar da década de 1970, quando o cinema político do cineasta russo Sergei Eisenstein parecia tão distante da realidade de quem vivia no interior do Paraná. “Pensei que nunca assistiria ‘A Greve’, ‘Outubro’ e ‘Encouraçado Potemkin’”, frisa, referindo-se ao cinema revolucionário que contribuiu para os rumos do socialismo na Rússia.

Dentre os preferidos, José de Arimateia cita também o cinema surrealista e neorrealista do italiano Federico Fellini e os franceses Jean Renoir, expoente do realismo poético, e o controverso Jean-Luc Godard, ícone da Nouvelle Vague. Segundo o empresário, o contato com filmes tão paradoxais, convergentes e divergentes proporciona uma grande coerência de apreciação. “Automaticamente, você começa a selecionar coisas diferentes”, enfatiza.

E o que não falta na videolocadora é variedade. São mais de 700 títulos de filmes que compõem um cosmopolitismo cinematográfico atraente aos olhos de quem busca não apenas entretenimento, mas uma significativa contribuição para a formação humana.

Téia: “Não interessa quem seja o idealizador ou qual é a proposta dele com o filme, a verdade é que ali teremos alguma novidade, algo jamais oferecido por um filme convencional” (Foto: David Arioch)

Téia: “Não interessa quem seja o idealizador ou qual é a proposta dele com o filme, a verdade é que ali teremos alguma novidade, algo jamais oferecido por um filme convencional” (Foto: David Arioch)

Cinema novo, surrealista, expressionista alemão, revolucionário soviético, nouvelle vague são algumas das correntes artísticas que fazem da locadora um subjetivo reduto de estudantes universitários, artistas e intelectuais.

Dos clássicos que não atendem diretamente aos anseios da indústria cultural, Teia adianta que os mais procurados são sempre os filmes de Stanley Kubrick, Steve McQueen, Quentin Tarantino e Alfred Hitchcock.

O ano de produção assusta quem não gosta de arte”

Para quem está acostumado apenas com lançamentos e filmes comerciais, a área cult da locadora de José de Arimateia Tavares pode até despertar atenção em um primeiro momento, mas a curiosidade não ultrapassa os limites da sinopse no estojo do DVD ou Blu-ray. “O ano de produção normalmente assusta quem não gosta de arte”, diz Teia.

Os mais relegados ao ostracismo são os filmes do cinema expressionista alemão e revolucionário soviético. O Gabinete do Dr. Caligari, por exemplo, do realizador alemão Robert Wiene, foi lançado em 1920.

“É algo que não está no âmbito das informações que muitas pessoas têm. Por isso, o cliente apenas olha, mas sem maior profundidade”, pondera José de Arimateia. O empresário atribui a surpresa dos clientes ao fato de que a locadora é a única em Paranavaí que não oferece apenas filmes comerciais.

No entanto, há clientes que valorizam o acervo da videolocadora, normalmente são jovens com pouco mais de 20 anos. “Eles procuram idealizadores como Federico Fellini e Stanley Kubrick. Isso tem relação com a formação cultural adquirida nas universidades”, avalia o empresário.

“Qualquer filme não comercial é interessante”

Como o ser humano vive sob a égide de um plano cartesiano de informações, é impossível que uma pessoa esteja atenta a todos os gêneros cinematográficos, sejam artísticos ou não. O empresário José de Arimateia Tavares admite esse fato, mas ressalta que qualquer filme de gênero não comercial já se torna interessante apenas em existir.

“Não interessa quem seja o idealizador ou qual é a proposta dele com o filme, a verdade é que ali teremos alguma novidade, algo jamais oferecido por um filme convencional”, justifica.

Para Teia, é regozijante ter uma locadora, principalmente pela oportunidade de conhecer a fundo o trabalho de cineastas brasileiros que tardiamente são valorizados. “O Fernando Meirelles é um grande cineasta e o primeiro filme dele que adquiri foi ‘Domésticas’. É uma pena que a maioria só conheça o seu trabalho em ‘Cidade de Deus’”, destaca.

O empresário também reconhece qualidade nos títulos do Cinema Novo que tem Glauber Rocha como um de seus grandes representantes. “Não tenho tanta simpatia por essa corrente cinematográfica, mas alguns filmes realmente são clássicos e de extrema qualidade”, comenta.

O interesse de Teia por filmes não comerciais não significa que ele desmereça os demais. “Não sou preconceituoso com relação a filmes. Por pior que seja o filme, assisto de ponta a ponta para reconhecer alguma qualidade”, assegura.

Alguns realizadores do cinema não convencional que podem ser encontrados na locadora do Teia

Federico Fellini, Ingmar Bergman, Stanley Kubrick, Sergei Eisenstein, Glauber Rocha, Jean-Luc Godard, Jean Renoir, Fritz Lang, Robert Wiene, Luis Buñuel, Ed Wood, Michelangelo Antonioni, Ettore Scola, Friedrich Wilhelm Murnau, Akira Kurosawa, etc.