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Schopenhauer: “Os animais não são artigos fabricados para o nosso uso”

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Eles acreditam e fazem com que os outros acreditem que a conduta humana para com os animais não tem nada a ver com a moral

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A contribuição de Schopenhauer à discussão dos direitos animais é inegável (Pintura: Reprodução)

Em 1818, o filósofo alemão Arthur Schopenhauer publicou “O Mundo como Vontade e Representação”, consideradas uma das mais importantes obras da filosofia do século 19, e que influenciou o compositor alemão Richard Wagner e o escritor russo Liev Tolstói a se interessarem um pouco mais pelo vegetarianismo e pelos direitos animais.

Embora não haja provas de que Arthur Schopenhauer tenha sido vegetariano, a sua contribuição à discussão dos direitos animais é inegável, ainda mais levando em conta que ele foi um importante filósofo do Ocidente a abordar esses direitos sob a perspectiva da moralidade. Schopenhauer não concordava com a concepção antropocêntrica de que os animais existem simplesmente para servirem aos seres humanos.

Em seu trabalho, esse debate começou a ganhar bastante visibilidade nos livros “Ontologia” e “Ética”, segunda e quarta obra que compõem “O Mundo Como Vontade e Representação”. À época, o filósofo alemão considerou a moralidade cristã extremamente limitada e obtusa por contemplar somente os seres humanos. Sendo assim, pode-se dizer que a moralidade conveniente ao homem não é moralidade, já que a moralidade genuína depende de você não observar somente a si mesmo e as conveniências que envolvem apenas aqueles que são de sua própria espécie.

Schopenhauer também criticou a coisificação dos seres não humanos, o que acabou destacando não apenas a face predominantemente antropocêntrica da moralidade cristã como também de parte da moralidade filosófica, já que a exclusão de outras espécies também encontrou representatividade entre filósofos de seu tempo, o que vem se estendendo até a atualidade, já que muitos filósofos evitam abordar o tema. Esse tipo de conduta era vista por Schopenhauer como um tipo frequente de moralidade de conveniência.

Animais não são meros meios para quaisquer fins. Ao pensarmos que sim, somos coniventes com a violência contra outras espécies e incentivamos a exploração animal em todas as esferas, sendo permissivos inclusive com formas inimagináveis de privação e crueldade. E esse tipo de conduta em detrimento de outros seres vivos leva a um questionamento a respeito da nossa própria moralidade que não contempla ninguém além de nós mesmos. “É uma vergonha essa moralidade digna de párias […], chandalas, mlechchas e que não reconhece a essência eterna que existe em cada coisa viva, e brilha com significado inescrutável em todos os olhos que veem o sol”, escreveu Arthur Schopenhauer na página 173 do livro “O Fundamento da Moral”, publicado em 1840.

Para o escritor Howard Williams, autor do livro “The Ethics of Diet”, de 1883, e considerada uma das obras mais importantes da história do vegetarianismo ocidental, o que distinguia o filósofo alemão da maioria dos pensadores era a sua perspectiva mais singular e abrangente. Ele fez da compaixão o principal, a fonte exclusiva da ação moral. E a sua reivindicação dos direitos das espécies não humanas, em contraste com o silêncio dos moralistas comuns, é o que sempre lhe dará o direito de assumir posição excepcionalmente elevada entre os reformadores dos sistemas éticos, apesar de seus exageros e desvantagens em outros aspectos, segundo Williams na página 287 de “The Ethics of Diet”.

Na página 375 do livro “Parerga and Paralipomena: Short Philosophical Essays – Volume 2”, que reúne uma coleção de ensaios publicados em 1851, Schopenhauer diz que o mundo não é uma peça de maquinaria e os animais não são artigos fabricados para o nosso uso. “Não se contentarão facilmente em contemplar um animal raro e desconhecido; hão de querer também instigá-lo, irritá-lo, fazer-lhe brincadeiras desagradáveis e isto unicamente para se darem o sentimento da ação ou da reação; mas esta necessidade de excitar a vontade se revela, de modo efetivamente especial, […] expressão verdadeira do lado miserável da humanidade”, consta na página 29 do quarto livro, intitulado “Ética”, de “O Mundo Como Vontade e Representação”.

De acordo com Schopenhauer, a compaixão pelos animais está intimamente ligada à bondade de caráter, assim afirmando que quem é cruel com as criaturas vivas não pode ser um bom homem. Além disso, no seu entendimento, tal sentimento flui manifestamente da mesma fonte de onde surgem as virtudes da justiça e da gentileza.

“Os saxões, quando conquistaram a Inglaterra, ainda não eram cristãos. No entanto, a língua inglesa mostra algo análogo no estranho fato de que todos os animais de gênero neutro são citados pelo pronome ‘it’, empregado a eles como se fossem coisas sem vida. Este idioma soa muito censurável, especialmente quando se fala de cachorros, macacos e outros primatas, e é inequivocamente um truque projetado para reduzir os animais ao nível de objetos inanimados”, criticou.

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Para o filósofo alemão, a moralidade conveniente ao homem não é moralidade (Imagem: Reprodução)

Por outro lado, o filósofo citou como contraponto a realidade dos antigos egípcios que dedicavam todos os seus dias à religião e estavam acostumados a colocar um crocodilo, entre outros animais, na mesma abóbada com a múmia humana. “Na Europa, é um crime, uma abominação, enterrar um cão fiel no mesmo local onde repousa seu mestre, embora seja lá que talvez ele, com uma fidelidade e um apego desconhecido pelos filhos dos homens, aguardasse seu próprio fim”, declarou.

O pensador alemão também relatou que um dia leu sobre um caçador inglês que depois de matar um macaco não conseguiu mais esquecer o olhar moribundo que a criatura lançava sobre ele. Movido por remorso, jamais atirou em outro animal. “As pessoas de delicada sensibilidade, ao perceberem que em um ataque de mau humor ou raiva, ou sob a influência do vinho, puniram seu cão, seu cavalo ou seu macaco imerecidamente, desnecessariamente ou excessivamente, são apreendidas pelo remorso. Sentem a mesma insatisfação em relação a si mesmos, como quando estão conscientes de terem feito algum mal a um de seus companheiros. A única diferença – puramente nominal – é que, neste último caso, esse remorso, essa insatisfação é chamada de voz da consciência que se ergue em repreensão”, analisou Schopenhauer que qualifica essa reação como a voz da moralidade que surge mais docemente a partir da compaixão.

O britânico William Harris, um dos caçadores mais famosos de seu tempo, contou em sua biografia publicada em Bombaim, na Índia, em 1838, que nos anos de 1836 e 1837 viajou para longe no coração da África com a mera intenção de perseguir animais, algo que ele definia como uma de suas paixões. Em uma passagem, ele descreveu como atirou em seu primeiro elefante, uma fêmea. Na manhã seguinte, indo procurar seu alvo, ele descobriu que todos os elefantes tinham fugido da localidade, exceto um jovem elefante que passou a noite toda ao lado de sua mãe morta.

Vendo os caçadores, ele esqueceu completamente do medo e, com os mais claros e vivos sinais de tristeza desconsolada, caminhou até eles. Então moveu seu minúsculo tronco em direção a eles, como se pedisse ajuda. Sobre o episódio, narrou Harris: “Eu estava cheio do mais verdadeiro remorso pelo que tinha feito e me senti como se eu tivesse cometido um assassinato.” Para o filósofo alemão, reações como essa eram mais comumente encontradas nos ingleses que, segundo ele, eram mais compassivos que os outros povos europeus.

No livreto do Congresso da União Vegetariana Internacional (IVU) de 1957, consta um excerto em que Arthur Schopenhauer assinala que o esquecimento imperdoável ao qual os animais não humanos são relegados pelos moralistas da Europa é bem conhecido. Eles fingem que os animais não têm direitos. Acreditam e fazem com que os outros acreditem que a conduta humana para com os animais não tem nada a ver com a moral, que o ser humano não tem dever algum em relação aos animais.

“Uma doutrina revoltante, grosseira e bárbara. Não conheço oração mais bela do que a que os hindus de outrora usaram para fechar seus espetáculos públicos. Era: ‘Que todos os que têm vida sejam libertos do sofrimento…’”, enfatizou. Observações e reações como essa acompanharam Schopenhauer por toda a sua vida, fazendo com que ele ficasse conhecido como o maior intérprete das ideias budistas e hinduístas na Europa.

Embora não tenha fundado nenhuma escola de filosofia, o filósofo alemão exerceu grande influência sobre o existencialismo e a psicologia, principalmente a partir do quarto livro de “O Mundo como Representação e Vontade”. Na página 409 da obra completa, ele citou que quando Buda, ainda como Bodisatwa, colocou pela última vez uma sela sobre um cavalo para fugir da casa de seu pai em direção ao deserto, ele falou ao animal: “De longa data, tu me auxilias na vida e na morte; mas doravante cessarás de levar-me e de trazer-me. Leve-me daqui ainda uma vez, ó Kantakana, e quando tiver conquistado a lei [ou seja, quando ele for o Buda] não me esquecerei de ti.”

Sob a ótica das crenças do Ocidente e do Oriente, outra referência que realça a distinção no tratamento dado aos animais não humanos é a alusão à transmigração das almas, que fala que todos os sofrimentos que infligimos às outras criaturas devem ser expiados. O filósofo cita na obra “Ética”, do livro “O Mundo como Vontade e Representação”, que sob a perspectiva da metempsicose, a má conduta obriga o ser humano a retornar ao plano terreno sob a forma da criatura sofredora e desprezada, o que pode ser qualquer tipo de ser vivo, humano ou não.

Em 1872, o teólogo e exegeta (intérprete religioso) alemão David Strauss publicou o livro “Der alte und der neue Glaube”, que significa “A Velha e a Nova Fé”. Na obra, ele registrou que a história da violência e da criminalidade mostra que muitos torturadores e assassinos foram antes torturadores de animais. Para Strauss, a forma como uma nação trata outras espécies é um medidor do seu nível real de civilidade. “As raças latinas como sabemos, saem mal neste exame, nós alemães, não muito bem. O budismo fez mais nesta direção do que o cristianismo, e Schopenhauer mais do que todos os filósofos antigos e modernos juntos. Essa serena simpatia pela natureza senciente, que permeia todos os escritos de Schopenhauer, é um dos aspectos mais agradáveis de sua […] filosofia”, escreveu.

Referências

Schopenhauer, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação (1818).

Schopenhauer, Arthur. O Fundamento da Moral (1840).

Schopenhauer, Arthur. Parerga and Paralipomena: Short Philosophical Essays – Volume 2. Clarendon Press (2001).

Williams, Howard. The Ethics of Diet (1883).

Strauss, David. Der alte und der neue Glaube (1872).

http://www.ivu.org/history/europe19b/schopenhauer.html

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