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Mirão, um antigo caso de amor ao esporte

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Valdomiro Pereira, o homem que dedicou a maior parte da vida ao esporte de Paranavaí  

Mirão: “Era uma vida difícil. A gente acabava formando time pra jogar fora e repartir o dinheiro” (Foto: David Arioch)

Mirão: “Era uma vida difícil. A gente acabava formando time pra jogar fora e repartir o dinheiro” (Foto: David Arioch)

Em comemoração ao aniversário de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, celebrado no dia 14 de dezembro, nada mais justo que homenagear um dos homens mais importantes do futebol e do futsal de Paranavaí. Valdomiro Pereira, mais conhecido como Mirão, começou a sua história no esporte local em 1960, pouco antes de completar 20 anos.

Para conversar sobre o assunto, Mirão diz que não é preciso agendar horário. “É só chegar”, avisa, me convidando para ir até a sua casa na esquina da Rua Maria Anchieta de Morais. Lá, encontro o pacato e hoje aposentado desportista sentado em uma “cadeira de área”, observando a movimentação tranquila da manhã na Rua do Aeroporto, principal via de acesso ao Jardim Ipê.

Com voz remansosa, o icônico Mirão me cumprimenta e coloca em cima da cadeira uma coleção de publicações sobre a sua trajetória. Em 1955, quando chegou a Paranavaí vindo de São Paulo, um fato lhe chamou a atenção. O Atlético Clube Paranavaí trazia na sua formação seis ou sete titulares paraguaios. “Era interessante isso. Um time do interior do Paraná que tinha mais jogadores estrangeiros do que brasileiros. E eram todos muito bons. Jogavam por amor ao esporte”, afirma.

Em 1959, o desportista fez amizade com os jogadores e a diretoria do ACP. Segundo Mirão, era o tempo dos paraguaios. “Comecei a treinar com eles, mas eu era muito ruim e o Seu Ferreira, um senhor que realizava bingos para arrecadar recursos para o clube, me convidou para ser massagista”, narra. Quando explicou que não entendia nada da profissão, Seu Ferreira argumentou que “tudo se aprende na vida”. “Deixa eu ver sua mão. Sim! Como pensei! Quem tem mão grande serve pra ser massagista”, comentou Ferreira, se valendo de uma crença popular.

À época, Mirão desempenhava qualquer atividade em benefício do clube. Fazia cobranças, ajudava na secretaria e na venda de cartelas. Foi assim até 1976, quando proibiram a realização de bingos. “Lembro que em 1960 fomos disputar o campeonato em Apucarana porque o nosso campo era com cerquinha e a Federação Paranaense de Futebol não aceitava. Então o time treinava no Estádio Natal Francisco [atual Praça dos Pioneiros] e jogava em Apucarana. Daqui a Maringá a estrada era de terra. Imagine só a dificuldade”, relata.

Naquele tempo, como os jogadores e os funcionários do ACP recebiam apenas por quatro ou cinco meses, o jeito era improvisar. “Era uma vida difícil. A gente acabava formando time pra jogar fora e repartir o dinheiro. Alguns conseguiam bons contratos, só que não era fácil. Só uma ou duas firmas colaboravam com o clube e nunca teve isso de alguém se oferecer para pagar um atleta por conta própria”, desabafa.

Nos anos 1960, o que ajudava o atlético a se manter na ativa era o fato de que alguns atletas de Paranavaí jogavam de graça. “Um exemplo era o Lauro Machado. Ele e mais alguns outros trabalhavam em outras áreas porque sabiam que era impossível viver do clube”, confidencia Mirão que considera o ACP de 1960 como um dos melhores de todos os tempos, assim como o de 1968 que conquistou uma vaga na primeira divisão do Campeonato Paranaense. O desportista se queixa apenas que a equipe já era formada em cima da hora, dificilmente se preparando com dois ou três meses de antecedência. “Uma vez contratamos 10 jogadores de um time faltando apenas alguns dias para o campeonato. Infelizmente em cidade pequena é assim, o futebol funciona aos empurrões”, lamenta.

De acordo com Mirão, inesquecíveis eram as partidas no Estádio Natal Francisco, onde a torcida lotava as arquibancadas de madeira com capacidade para até 10 mil pessoas. “Eu morava no estádio quando era solteiro porque o treino começava às 6h. Alguns jogadores também viviam lá, já que o clube não tinha condições de pagar hospedagem em hotel. Nosso campo somava 110 metros de comprimento e 80 metros de largura. O pessoal era tão fanático por futebol que onde o clube ia a torcida ia atrás”, revela.

Em 1970, a situação financeira do time não era das melhores, tanto que o ACP foi disputar uma partida em Nova Esperança e tiveram de entrar em campo com apenas 10 jogadores porque nem todos atletas estavam registrados. “Ainda assim ganhamos de um a zero. Era muito bom. Participávamos de amistosos em todo o Paraná, além de Presidente Prudente, Marília e cidades de Santa Catarina e Mato Grosso do Sul. Nossa rivalidade maior era com Maringá e Mandaguaçu. Time de fora quase nunca ganhava aqui porque o campo do Natal Francisco era muito grande, uma das nossas armas”, enfatiza Mirão.

Na esteira da falta de recursos, o atlético desde o início contava com trabalho voluntário, principalmente de médico e fisioterapeuta. O time levou alguns anos para conseguir contratar um preparador de goleiros, garantindo mais profissionalismo ao clube. “Se precisasse de alguém pra ir lá na segunda-feira arrancar grama, eu e o Paulinho íamos. Fazíamos o mesmo empenho se fosse necessário ficar com atleta em hotel na véspera do jogo pra fazer massagem. O time ficava em primeiro lugar nas nossas vidas”, declara.

“Eu morava no estádio quando era solteiro porque o treino começava às 6h” (Fotos: David Arioch)

“Eu morava no estádio quando era solteiro porque o treino começava às 6h” (Fotos: David Arioch)

Embora não ganhasse nada para ajudar, o desportista estava sempre disponível ao ACP no período da tarde, quando o treinamento era intensificado. “Uma das minhas recompensas foi pisar duas vezes no Maracanã. Jogamos lá contra o Madureira e o Olaria. Ganhamos um jogo e perdemos o outro. Depois aproveitamos pra assistir uma partida do Atlético Mineiro contra o Flamengo e outra do Fluminense contra a Portuguesa. Nunca imaginei que isso aconteceria”, rememora Mirão emocionado.

O que também motivava Mirão a continuar ajudando o ACP era a solidariedade dos atletas. Nos anos 1960, alguns chegavam a dividir tudo que recebiam com Mirão e Paulinho. “Tínhamos um grande meia-esquerda que foi para o Corinthians. O apelido dele era Paraná. Não ficava com nada do que recebia. Tinha uma situação financeira boa e se preocupava porque via que a gente ganhava uma mixaria. Se tenho alguma coisa hoje foi graças aos conselhos do Paraná, um cara que se preocupava com os menos favorecidos”, pontua.

O desportista não esconde a satisfação ao se recordar das conversas com o icônico Natal Francisco, fundador do Atlético Clube Paranavaí. “Era um velhinho muito bom que construiu o estádio com as próprias mãos. O filho dele, Tonico, jogava bem no ACP. Uma pena que em 1983 mudaram o estádio para o [distrito de] Sumaré. Os jogos eram muito bons, só que a torcida parou de acompanhar tanto o time. Nunca mais foi a mesma coisa”, reclama.

Para o desportista, quem também se tornou um dos nomes mais importantes do clube foi o jogador Chico Venâncio, o Biga, que à época chegou em Paranavaí sem grandes pretensões. “Ele veio pra jogar pelo Atlético e acabou virando treinador. Na realidade o Biga era mais que treinador, era o pai de todo mundo. Gostou tanto de Paranavaí que viveu aqui até os seus últimos dias”, defende. Pela dedicação ao esporte, Mirão recebeu em 2006 uma homenagem da diretoria do Atlético Clube Paranavaí e outra do Rotary Fazenda Brasileira. Além disso, o prêmio maior do Campeonato Amador de Futebol da Liga de Paranavaí leva o nome de Troféu Valdomiro Pereira.

O jogo mais marcante do Vermelhinho

Para Mirão, o jogo mais marcante da história do Atlético Clube Paranavaí foi contra o Atlético Paranaense em 1968. O ACP venceu por 2 a 1, com dois gols de Aluísio, um jogador do São Paulo que veio a Paranavaí por empréstimo.

“Busquei ele em São José do Rio Preto e depois tive que ir até São Paulo preparar a documentação na Confederação Brasileira de Futebol [CBF]. De lá, fui pra Curitiba entregar em mãos na Federação Paranaense de Futebol [FPF]. Até recebemos dinheiro do Coritiba pela vitória”, confidencia Mirão às gargalhadas.

Aluísio era um dos maiores jogadores da época. No entanto, seu salário era tão caro que conseguiram mantê-lo em Paranavaí somente por um ano. “Tinha mais de 100 pares de sapatos e mais de 100 camisas. Falou que jogaria pra nós, mas não aceitava ficar em república. Reunimos vários apoiadores pra pagar o salário dele”, garante.

Lacerdinha completa 40 anos

O desportista Valdomiro Pereira, o Mirão, que ajudou na construção do Ginásio de Esportes Antônio Lacerda Braga (Lacerdinha), fundado no dia 14 de dezembro de 1975, se recorda com saudosismo dos primeiros jogos há quase 40 anos. “A primeira disputa foi de handebol, nosso cartão de visita. Valeu a pena toda aquela correria, gente trabalhando 24 horas por dia. A prefeitura fez tudo no ‘grito’ e o ginásio ficou pronto em 100 dias. Tivemos o suporte do 8º Batalhão de Polícia Militar. Foi tudo muito bem organizado. Não dá nem pra acreditar que tínhamos ali o Colégio Marins [Alves de Camargo] e depois o [Colégio] Newton Guimarães”, comenta.

No mesmo ano, Mirão foi convidado pelo jornalista Saul Bogoni para coordenar em Paranavaí os Jogos Abertos do Paraná. À época, a cidade tinha uma das melhores seleções de handebol feminino do estado. “Fomos campeões estaduais em 1974 e em 1975. Em Paranavaí, era um esporte até mais popular que o futsal. Fiquei muito feliz em organizar os jogos porque Paranavaí chegou nas finais em quase todas as modalidades. Naquele tempo, só não conseguíamos superar cidades como Londrina e Curitiba. Ficamos em terceiro lugar no geral”, relata e acrescenta que Paranavaí foi a primeira cidade do Paraná a ter os jogos abertos transmitidos pela televisão. A cobertura da TV Tibagi mostrou o desempenho de atletas de 68 cidades.

O melhor time de futsal de Paranavaí

Com a experiência de quem acompanhou a evolução do esporte no Noroeste do Paraná, Mirão defende que o Demafra foi o melhor time de futsal de Paranavaí. “Era um time com boas condições financeiras, dava emprego para jogadores, mas tinha que ser bom. Ninguém passava dificuldade trabalhando para o Demafra. E tinha uma tática interessante que era misturar jogadores de campo e de salão. Não esqueço quando fomos campeões da Taça Tigre em Joinville [Santa Catarina], desbancando grandes equipes de todo o Brasil”, diz Mirão.

Na sequência, o desportista aponta o São Lucas como um bom clube, citando o desempenho da equipe em 2011, quando obteve o segundo lugar no Campeonato Paranaense de Futsal. Em 2006, a equipe ficou em quinto lugar. O clube também traz no currículo conquistas como o vice-campeonato da Taça Paraná em 1982 e o terceiro lugar em 1991. “Gostei muito do time que o São Lucas montou em 1994. É uma pena que não temos condições de segurar bons atletas”, lamenta.

“A sede da Liga de Paranavaí era dentro da minha Brasília”

No final dos anos 1970, quando tinha um escritório no Ginásio Lacerdinha, o chefe de transportes da Secretaria de Educação da Prefeitura de Paranavaí, Mirão, percebeu que a garotada tinha o costume de invadir o local para praticar vandalismo.

Em vez de repreendê-los ou chamar a polícia, ele usou uma tática diferente. Convidou a molecada a formar times e disponibilizou a eles uma hora diária de uso gratuito do ginásio. “Vou dar a vocês uma missão. Vocês podem jogar aqui, mas em troca peço que cuidem do ginásio. Não deixem ninguém fazer nada de errado aqui, tudo bem?” À época surgiram dois novos times em Paranavaí: o Time dos Engraxates e o Time dos Moradores de Rua.

Naquele tempo, a quadra do Lacerdinha era considerada a melhor do Paraná e Mirão se empenhava para evitar que alguém comprometesse essa imagem. “Eu e o zelador da época não deixávamos ninguém entrar na quadra usando kichute ou sapato. Eu fazia amizade com todo mundo, tanto que nunca mais nenhum garoto jogou pedra no ginásio”, garante. Uma vez Mirão levou ao Lacerdinha o célebre lutador Ted Boy Marino, atraindo um público de milhares de pessoas.

“A sede da Liga de Paranavaí era dentro da minha Brasília. Eu organizava o campeonato e os jogos. Fundei e fui presidente por 26 anos, inclusive hoje ela tem uma sala com meu nome – Valdomiro Pereira”, destaca em tom de orgulho. O desportista foi mesário por muitos anos, tanto no futebol de campo quanto de salão. Como trabalhava para a prefeitura de Paranavaí, muitas vezes atuava na arbitragem em finais de semana e feriados sem receber nada.

“Às vezes ligava gente de Curitiba para a prefeitura pedindo minha liberação para que eu fosse pra lá apitar em algum campeonato juvenil. Era bom porque entrava um bom dinheiro. Nos Jogos Abertos, por exemplo, eu ganhava em um mês o que equivalia a seis meses de salário na prefeitura”, segreda. Outro ponto positivo é que Mirão se divertia bastante. Encarava o trabalho como uma oportunidade de viajar e conhecer outros lugares.

Era um contraponto na rotina atribulada como chefe de transportes. Em Paranavaí, Mirão se responsabilizava pelos 14 ônibus da prefeitura usados no transporte de estudantes. “Tinha de ficar disponível das 4h às 23h. Se desse algo errado, saía com o mecânico atrás do ônibus. A gente cobria uma área de 900 quilômetros de estradas. Muitas vezes vim pra casa dormir lá pelas 11 horas da noite”, ressalta.

Frases de Valdomiro Pereira, o Mirão

“Temos o mau hábito de vender jogadores por preços muito baixos. Os atletas costumam sair daqui quase de graça. Só me lembro de uma exceção em 1968, quando vendemos o Didi para a Portuguesa. Foi uma negociação um pouco mais justa.”

“O São Paulo veio jogar aqui em 1959 e em 1965 foi a vez do Corinthians. Não esqueço também que o Ferroviária, de Araraquara já disputou um torneio em Paranavaí, assim como o Prudentina, de Presidente Prudente. Foi uma época inesquecível.”

“Com 16 anos eu jogava no time do Mário de Souza. Tinha bons jogadores. Aí fomos jogar contra o ACP e perdemos. Então decidimos acabar com o time.”

“Uma vez o treinador Muca encheu uma Kombi com jogadores de um time de Lins [no interior paulista] e trouxe pra cá porque o campeonato estava prestes a começar e o Atlético não tinha jogadores.”

“Sempre ajudei todos os esportes de Paranavaí. Não priorizava mais um ou outro. Só diminui o ritmo quando me aposentei depois de 32 anos trabalhando na prefeitura.”