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Desigualdade, empatia, descomedimento e humanidade
A Organização Não Governamental Oxfam International divulgou esta semana uma pesquisa revelando que há grande probabilidade de que até o ano que vem 1% da população mundial assuma o controle de 50% das riquezas do mundo.
Acredito que a ideia da Oxfam seja propor um debate sobre o assunto, claro que já deixando transparecer uma crítica prenunciando os desdobramentos mais severos do que chamam hoje em dia na Europa de bancarrota social, só para ser o mais objetivo possível na minha análise superficial. Daí em redes sociais surgem pessoas com comentários de campina envolvendo meritocracia ou indo um pouco mais além e declarando:
“É isso aí, também quero fazer parte desse 1%”, “Fala mal, mas queria estar no lugar deles” ou “Se não consegue se juntar a eles é porque não tem capacidade pra isso.” São comentários que poderiam simplesmente ser qualificados como individualistas, triunfalistas, egocêntricos, mas não é só isso. Está além disso.
É possível fazer uma observação usando a empatia como exemplo. Sim, ela parece cada vez mais fortuita como mostra a internet, principalmente em mídias sociais como Facebook. Chega a ser digna de abjeção em muitos casos. Diuturnamente, sofre por ser extirpada e privada da própria semântica.
Hoje em dia, na chamada hipermodernidade, é grande o número de pessoas que se colocam numa posição de figura proeminente do digitalismo. Há opinião para tudo e sobre tudo, mesmo sobre aquilo que sequer dedicou alguns minutos de pesquisa. É preciso cultivar um mínimo de senso laborial.
Mídia social se tornou território fértil dos tribunais online. Tudo há de ser julgado com embasamento em senso particularista, “moral” que se confunde muitas vezes com amoral e imoral, e principalmente empirismo inconsistente. Na ausência do confronto físico, é comum o pensamento de que não há motivo para ser educado ou respeitoso. Na realidade, o descomedimento é atroz, “natural” em conceito distorcido e pluralizado.
Quem age de maneira inquisitória ou negligente costuma não ter dúvidas porque nunca teve perguntas. Se contenta com meias certezas, meias verdades de um mundo talvez até plano, como defendia Ptolomeu nos tempos do Renascimento. É alguém que refuta a complexidade, se nega a aceitar o poder da subjetividade, as nuanças que podem travestir mentira de verdade e vice-versa. Esses mesmos indivíduos não acreditam na possibilidade das divergências complementares das forças que regem o pensamento humano.
O Facebook nos prova que há quem prefira o anacronismo de um mundo paralelo e falsamente simplificado. Muitos não permitem discussões construtivas nem críticas. Aprendi na adolescência que crítica se fundamenta em argumento, desde então tomo isso como um referencial do que fazer, mas principalmente do que não fazer.
Numa sociedade tão desnivelada, e ainda fortemente influenciada pelo fatalismo e determinismo, acredito que o ser humano há de continuar perseverando como grande exemplo e símbolo do que eu acho adequado chamar de paradoxo existencial. No entanto, o que mais preocupa é que hoje em dia muita gente ensaia a própria humanidade, pois optou por se despir dela. Sendo assim, cresce a incapacidade humana de verdadeiramente sentir-se humano.
“Sempre vejo os meninos vendendo drogas”
Luiz Carlos Prates fala sobre a realidade dos jovens da Vila Alta
Morador da Vila Alta, um dos bairros mais pobres de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, o artista plástico gaúcho Luiz Carlos Prates há mais de 15 anos acompanha de perto tudo que acontece na comunidade, onde desenvolve um trabalho de recuperação de menores em situação de risco. Para Prates, a única forma de livrar os jovens do narcotráfico é fazendo um intenso trabalho social.
“Seu Luiz”, de 82 anos, como é mais conhecido, costuma circular com frequência pelas ruas da Vila Alta. Só em um sábado à tarde, contabilizou 13 crianças comercializando crack. “Sempre vejo os meninos vendendo drogas. É comum virar passador, bode expiatório, testa de ferro ou laranja. Mas a parte mais triste é que o destino deles nesse caminho é a cadeia ou a morte”, diz. No bairro, há casos de adolescentes com 15 anos que já se envolveram tanto com o narcotráfico que não se imaginam desempenhando outra atividade.
Prates relata com tristeza o exemplo de um adolescente para quem estava dando lições de artesanato. “Em 2011, passei por uma fase difícil e tive que interromper as aulas voluntárias por alguns dias para fazer algumas peças pra vender. Quando retomei a oficina, o menino sumiu. Fui procurar ele e descobri que um ‘traficante já tinha tomado conta’”, lamenta.
No bairro, é grande a quantidade de crianças e adolescentes fora das escolas. Muitos não têm pais e são criados pelos avós, segundo informações dos moradores da Vila Alta. “Não têm estrutura familiar e ficam disponíveis ao mundo das drogas”, avalia uma das lideranças do bairro, a catadora de recicláveis Maria de Fátima Oliveira que quando caminha pela Vila Alta sempre se depara com restos de drogas nas ruas, principalmente saquinhos de plástico com vestígios de crack.
Seu Luiz, que coordena um grupo de 12 crianças e adolescentes, afirma estar feliz por tê-los livrado do mau caminho, embora ressalte que ainda há muito trabalho a ser feito. “De todas as crianças que cuido hoje, a maioria não tem pai e mãe em casa. Mas o problema maior é que aqui no bairro não são poucos os jovens envolvidos com drogas que são filhos de desempregados, ladrões, prostitutas, traficantes e viciados”, comenta.
Como o bairro é distante da região central, o consumo de narcóticos começou por volta de 1980, de forma discreta e restrita. Mas a situação se agravou, tanto que muitas crianças conhecem a forma e o cheiro da droga. Os 12 alunos do artista plástico são um exemplo. “O meu neto de oito anos também identifica com facilidade quando estão usando alguma coisa”, complementa Maria.
L.F.B, de 10 anos, que em função da alimentação deficiente aparenta ter de sete a oito, já experimentou cola de sapateiro, tiner, éter, maconha, crack e cocaína por influência de falsos amigos. “Quando conheci não sabia nem o nome certo dos produtos. Não ‘tô’ mais nessa onda não, mas conheço muita gente que ‘tá’”, declara enquanto desvia os olhos e ajeita o boné surrado sobre a cabeça.
Seu Luiz se recorda do episódio em que um garoto estava trabalhando em uma cooperativa de recicláveis quando denunciaram ao Conselho Tutelar. “Foram até o local, tiraram o menino de lá e advertiram a cooperativa. Não apresentaram nenhuma solução, tanto que pra ganhar algum dinheiro hoje o garoto vende drogas em frente a própria casa”, relata.
Para as lideranças do bairro, até os anos 1990, a participação do Conselho Tutelar e de outras autoridades era mais efetiva. A criança ou adolescente com problemas era obrigado a assinar um documento em que se comprometia a mudar, recebendo todo o acompanhamento necessário. “Este lugar sempre foi abandonado pelo poder público. Falo da Vila Alta, não da Vila Operária. As pessoas precisam aprender a diferenciar os bairros”, desabafa Luiz Carlos Prates e sugere que o primeiro passo seja educar os moradores da Vila Alta.
O boia-fria Jurandir Oliveira defende que pessoas de outros bairros e cidades costumam cometer crimes e se refugiarem na Vila Alta. “É triste porque fica a impressão de que faz parte da comunidade, o que não é verdade. Nem tudo que acontece de ruim na cidade deve ser atribuído a nós. É injusto”, reclama.
Curiosidade
A Vila Alta tem pouco mais de três mil moradores.
Meirelles e Olival lançam luz sobre “personagens invisíveis”
Lançado em 2001, o filme Domésticas, de Fernando Meirelles e Nando Olival, é uma comédia que nos traz à luz algo mais profundo que a comicidade. Se trata da enfática realidade de cinco empregadas domésticas que têm apenas a profissão em comum. A atividade profissional as tribaliza e as homogeneiza – desde a linguagem até os hábitos culturais. Por serem aquelas que desempenham o serviço que os abastados se negam a fazer, vivem em um universo de preconceitos, desigualdades e invisibilidade.
São dificuldades que também fazem parte do cotidiano dos motoboys, porteiros, vigias, lavadores de carros e entregadores de pizza; pessoas que compõem um mesmo mosaico social. As cinco vidas que dão sustentabilidade ao filme, ao final de cada dia, de algum modo, cedem à resignação de algum infortúnio, mas renascem pela manhã, quando a nova aurora desponta em suas vidas. Embora seja um filme de fácil compreensão, Domésticas não tem começo, meio e fim – nem se sustenta na ideia de um mundo dividido entre bem e mal.
Em referência ao realismo, a obra conta com um elenco formado por atores pouco conhecidos, o que reforça ainda mais a proposta do filme. De forma bem particularista, e até tendenciosa, Meirelles e Olival apresentam pequenos fragmentos que compõem o universo de milhões de brasileiros marginalizados. São pessoas que vemos todos os dias, mas que muitas vezes são esquecidos e condenados à insignificância por fazerem parte de uma classe social da qual se costuma desviar a câmera e a iluminação. E assim o ciclo continua interminavelmente…