David Arioch – Jornalismo Cultural

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Sobre respeito, tolerância e diálogo

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Arte: Hayley Blanck

Há pessoas que estão sempre buscando salvadores, heróis, gurus ou pessoas que, numa idealização romanesca, concordem com elas em tudo, ou as representem em tudo. Mas ao sinal do primeiro defeito apresentado pelo objeto de reverência, surge uma exasperação por vezes incontrolável fundamentada em um excesso de expectativas que desconsidera a complexidade humana, a sujeição às contrariedades e as falhas naturalmente possíveis. Isso na minha opinião pode ser também um sintoma de uma carência superlativa.

Fala-se muito em tolerância, respeito ao outro, mas muitas vezes até mesmo quem prega esse discurso acaba por fomentar o sectarismo, externar intolerância, intransigência, incapacidade em lidar com opiniões que estão em conflito com a sua ou divergem da sua. Percebo muito isso no cotidiano, felizmente não muito fora da internet, mais frequentemente nas mídias sociais, e inclusive entre pessoas bem-intencionadas.

Há muitos casos em que não se trata apenas de não respeitar a opinião do outro, mas até mesmo odiar ou desprezar uma pessoa que jamais conheceu de fato. Chamar de defeito o fato de alguém não concordar com você não é exatamente defeito, porque a qualificação disso como defeito é uma constatação sua, pessoal, individual, não do outro. Afinal, qual é a baliza que define algo como defeito? Neste caso, a sua concepção de algo, o seu termômetro, e mesmo um ideal fementido e particular de perfeição, mestria, impecabilidade. E se sua defesa de algo é fundamentalmente tão justa, há justiça em atacar o outro?

Por isso parece um desafio na atualidade se abrir para o diálogo sem atacar ou ofender, sem se armar sob as intercessões passionais dos pré-conceitos e preconceitos. As pessoas vivem armadas e pouco racionalizam isso. Se calar para ouvir pode ser um desafio quando as palavras não nos agradam, mas é recompensador porque é a maior prova de que a cachimônia humana não abandonou o ser. Quem busca semelhanças o tempo todo, independente do quão boa seja a intenção, corre o risco de se inclinar sobre si mesmo e não perceber que o outro na realidade é apenas o seu próprio reflexo imutável e pulverizado, como um ouroboros distorcido. Logo sou da opinião de que o amadurecimento demanda diferenças.

Written by David Arioch

September 2nd, 2018 at 2:20 pm

Alguém diz: “Cara, ser vegano é ridículo, colocar os animais em um pedestal enquanto muita gente passa fome”

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Foto: Jo-Anne McArthur/We Animals

Alguém diz:

— Cara, ser vegano é ridículo, colocar os animais em um pedestal enquanto muita gente passa fome.

— Você sabe que nós também somos animais, certo? E não sei até que ponto você se “aprofundou” no veganismo, mas veganismo não tem nada a ver com colocar animais em um pedestal. O cerne da questão é o direito à vida, algo muito simples. Ou seja, se é possível coexistir pacificamente com outras espécies, por que explorá-las, violentá-las, matá-las? Ainda mais levando em conta que ninguém morre por não consumir carne, ovos, laticínios, mel e outros produtos baseados em animais.

— Mesmo assim isso não significa que o veganismo seja tão relevante.

— Bom, não sei o que você qualifica como relevante, mas matamos por ano mais de 60 bilhões de animais terrestres e mais de um trilhão de animais marinhos. Há inclusive estimativas da Fish Count, uma ONG britânica bastante respeitada, que estima que é possível que estejamos matando até 2,7 trilhões de peixes por ano. Sim, só de peixes. Isso parece irrelevante? Além disso, enquanto os seres humanos consomem cerca de 9,5 bilhões de quilos de alimentos por ano, mais de 61 bilhões de alimentos são destinados anualmente aos animais de criação. Isso parece justo e coerente pra você? Levando em conta que são animais que são mortos e reduzidos a produtos. Se me alimento de animais basicamente ajudo a endossar esses valores que realçam com bastante discrepância as nossas prioridades frente à miséria que testemunhamos e ao mesmo tempo ignoramos porque não diz respeito a nós; logo entendemos que não temos qualquer obrigação em relação a isso.

— Ainda acho que veganos não dão a mínima para as pessoas, cara. Eles se preocupam só com os animais.

— Sim, veganismo é sobre os direitos animais, mas não é difícil entender que a partir do momento que enxergamos os animais como sujeitos de uma vida abrimos um precedente para nos aproximarmos um pouco mais de um mundo com mais justiça social. Afinal, que tipo de mensagem essa luta a favor da não violência passa? Essa luta que questiona o lucro baseado na mortandade? A mensagem de que o dinheiro não é mais importante do que a vida. E a partir do momento que entendemos isso, passamos a questionar nossos valores e a caminhar na contramão das mais diversas facetas da exploração e da selvageria.

— Mas legislação a favor dos animais enquanto precisamos de novas leis em benefício da coletividade humana é o cúmulo.

— Bom, eu não vejo razão para colocar seres humanos e não humanos em posição de antagonismo, já que não existe concorrência nesse sentido. Há espaço para as mais diferentes lutas, sem necessidade de rivalidade. Outra coisa, você conhece assassinos veganos? Eu não. Claro, você pode até citar algum vegetariano, e provavelmente tenham existido assassinos vegetarianos, mas não assassinos que sejam adeptos do vegetarianismo ético. Afinal, não existe ética no assassínio. Você já percebeu também como desde sempre muitos assassinos começaram praticando violência contra pequenos animais? Podemos citar agora Richard Chase, que torturou e matou muitos animais, até que em 1977, enjoado de ferir não humanos, assassinou uma mulher grávida e toda a sua família. Imagine se tipos como esse ou seus pais tivessem sido responsabilizados por isso desde cedo. Será que não teríamos evitado problemas? Será realmente que legislação específica contra esse tipo de violência não é necessária? Em um mundo ideal, claro, não deveríamos infligir privação ou dor aos animais sob qualquer circunstância, mas por enquanto infelizmente ainda é preciso trabalhar com as poucas ferramentas à disposição.

— Tudo bem, mas já conheci veganos que odeiam pessoas.

— Se essas pessoas socializam com outras, mesmo que ocasionalmente, elas não odeiam pessoas. No máximo, podem odiar certos tipos de pessoas. Ainda assim isso não é uma prerrogativa do veganismo, mas sim uma prerrogativa individualmente humana. O veganismo não se volta para o ódio; nem poderia, já que se você odiar as pessoas dificilmente você vai conseguir motivá-las a entenderem como o veganismo pode ser realmente positivo para os animais e até mesmo para elas. Sendo assim, que resultado teríamos? Não sou capaz de estimular ninguém a ouvir ou ler o que tenho a informar sobre o veganismo se eu tiver um comportamento ou discurso violento ou odioso. Por outro lado, as pessoas terem momentos de ódio, de cólera, é normal. Isso não significa que elas acordem anotando em um caderninho quem elas planejam exterminar. E se fizessem isso, claro que não teria qualquer relação com o veganismo, já que o veganismo em si não endossa esse tipo de conduta.





 

Written by David Arioch

February 28th, 2018 at 11:36 pm

Por que você não se alimenta de animais?

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— Por que você não se alimenta de animais? O que existe de tão errado nisso?

Foto: Jo-Anne McArthur/We Animals

— Você já viu um boi, uma vaca e um bezerro pastando livremente? Um peixe serpenteando pelas águas? Um porco rolando na relva? Uma galinha ciscando sem pressa?

— Algumas dessas coisas, sim.

— O que você acha disso?

— É divertido, bonito de ver.

— Pois então. Se eu fosse um animal, provavelmente eu não ficaria feliz de ser privado dessas coisas que me trariam algum tipo de satisfação. Se me alimento de animais, não consigo ignorar minha culpa sobre aqueles que são privados de uma vida natural. Eu não gostaria de nascer, viver e morrer para atender supostas necessidades dos outros. Seria como viver sem um propósito próprio.

— Mas animais são criados com essa finalidade. Você não os veria se não fosse por causa da demanda por produtos de origem animal.

— Você tem razão, mas aqueles que vivem merecem gozar de uma vida sem exploração, privação ou sofrimento. Os animais que são reduzidos à comida depreciam a vida bem menos do que nós. Jamais deixariam de lutar diante da iminência da morte. Isso não é um exemplo de vontade de viver? Maior prova disso é que no chamado bem-estarismo os enganamos antes de matá-los. E claro, para parecermos mais humanos aos nossos olhos. Quero dizer, sou um sujeito tão bom que não o mato violentamente, apenas dissimulo uma situação antes do golpe final. Penso que enganar um ser vivo para matá-lo sem que supostamente ele sofra também é triste, porque é uma forma de traição, já que o animal segue seus comandos em confiança. Você já viu um animal oferecer alguma parte do corpo para que você a retalhe? Se um dia eles deixarem de existir, não será algo tão aberrante, penso. E por que seria? A vida deve seguir seu curso natural, e não existe nada de natural, por exemplo, em manipulação genética para atender caprichos humanos. Muitas vezes os animais nem se reconhecem como animais por causa da interferência humana. Tornam-se seres confusos, deslocados de sua própria vocação. Isso não é triste e preocupante?

— É…acho que faz sentido.

— Imagine se alguém o criasse e o colocasse para trabalhar o dobro do que você trabalharia normalmente, em sua capacidade natural. Como você se sentiria?

— Não concordo com essa comparação, é desleal.

— Tudo nos parece desleal quando observamos os outros como se estivessem abaixo dos nossos pés. Nos recusamos a exercer a empatia ou o reconhecimento do valor da vida animal porque isso exige uma revisão de valores. E também porque isso significa mastigar com a boca aberta e olhos esgazeados diante de um espelho convexo que mostra quem somos e o que fazemos; que revela a face que negamos na nossa relação com os animais.