David Arioch – Jornalismo Cultural

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O que você pensa sobre as desigualdades sociais?

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Acervo: Escola Kids

Não é muito difícil descobrir ou pelo menos inferir o que uma pessoa pensa sobre as desigualdades sociais. Basta questioná-la sobre o que ela acharia de um mundo baseado em igualdade; onde uns não seriam absurdamente mais ricos do que outros. Até mesmo a hesitação, a expressão, pode dar um indicativo da resposta. Você já pensou sobre isso?

Estaria tudo bem para você não ter mais dinheiro do que os outros? Mais coisas do que os outros? Não poder se exaltar de suas aquisições materiais? E simplesmente porque o que você tem o outro também tem? Ou pelo menos ter o direito de ter se ele quiser. Ou imagine então um mundo onde as pessoas não dariam a mínima para coisas, porque coisas são basicamente o que são – em muitos casos, produtos aos quais atribuímos mais valor pelo que nos custam, pela exceção, pelo distanciamento que existe entre elas e os outros, do que pelo que são em um sentido funcional ou mesmo hedonista.

A ausência de distinção baseada no poder econômico ou no “acúmulo de coisas que não são acessíveis para uma maioria” possivelmente exigiria do ser humano um esforço intelectual para se destacar, levando em conta que platitudes como “o que eu tenho que você não tem” não chamaria mais a atenção, e simplesmente porque o ter, materialmente, talvez fosse relegado à insignificância, ou pelo menos à adiáfora. Nesse contexto o ser precisaria estar em constante evolução, ao contrário do ter, que não exige evolução moral de ninguém, caso a pessoa não queira. Prova disso são pessoas que nascem em um ambiente de grande poder econômico, e de repente, optam por não fazer nada no decorrer da vida, a não ser gastar dinheiro para ocupar o tempo, desconsiderando todo o resto.

Há também pessoas com muito dinheiro que tendem a considerar seus chamados esforços, envolvam eles atividades ilícitas ou não, desrespeito ou não à vida e a dignidade humana e não humana, como sendo únicos, singulares, e por isso devem ser recompensados de forma dissemelhante, mesmo que isso signifique uma diferença do tipo: “O que você jamais ganhará a vida toda eu ganho em uma semana”. “Eu fiz o que você não seria capaz de fazer. Por isso estou onde deveria estar, onde não é o seu lugar.”

“Porque o meu esforço é muito maior que o seu, sou muito mais inteligente que você, então mereço, de fato, ganhar muito mais que você; e a você resta me servir, mesmo que para isso tenhamos que criar um simulacro de evolução para evitar que você ache que sua vida não está melhorando.” Em síntese, uma sutil estagnação oscilante. “Afinal, porque isso é o que cabe à sua limitada competência que está sempre longe de se igualar à minha”, diriam.

Muitas das mazelas que existem no mundo estão intrinsecamente relacionadas ao fato de que muitos daqueles que têm poder encaram sua força e distinção econômica como uma forma de certidão de superioridade, e o mundo diz que eles estão certos, por mais que leis que não valem na prática tentem informar o contrário. Porque leis são fundamentadas na plasticidade. Existem mais para parecer do que para ser.

E a sociedade e o sistema em que estamos imersos manda iterados sinais de que isso é pura vericidade. E o que dificulta qualquer mudança não é a incapacidade de reconhecer que isso não é benéfico para a maioria, mas sim que desde sempre, até mesmo entre os mais miseráveis há aqueles que não gostariam de um mundo justo, de igualdade; logo jamais lutariam por isso se desejam ocupar a posição daqueles que “estão no topo”, sejam eles criminosos ou não. Claro, porque a sua inexistência é uma consequência natural do que você não possui, segundo a perspectiva comum. Então perpetua-se a crença de que existirei à medida do que terei.

 





 

Written by David Arioch

February 5th, 2018 at 2:06 pm

Uma situação que diz muito sobre a nossa política

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coersion

Deputados se apropriando de parte do salário de seus assessores não é prática incomum na Alep (Arte: Reprodução)

Depois de ler uma matéria sobre o secretário estadual acusado de ter mantido dois funcionários fantasmas em seu gabinete na Assembleia Legislativa do Paraná (Alep) em 2014, quando atuava como deputado estadual, lembrei de uma história que um amigo me contou há algum tempo.

A sua prima foi convidada para trabalhar como assessora de um deputado na Alep, só que o que ela não imaginava era que 50% do seu salário teria de ser entregue ao deputado, provavelmente para o “caixinha” da próxima campanha ou talvez para ajudar a financiar o partido.

Constrangida com a situação e também em ser conivente com tal improbidade, ela optou por pedir exoneração do cargo. Não tenho dúvida alguma de que a prática seja muito comum. O problema é que não há tantas notícias sobre o assunto porque muitos ainda são coniventes. Enfim, uma lástima que endossa o fato de que há muita gente capaz de abrir mão da honra e da dignidade por causa de dinheiro.

Casal tenta sobreviver com R$ 280 por mês

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Ivan e Rose moram em um dos poucos barracos que ainda restam na Vila Alta

A entrada do casebre é coberta por materiais recicláveis (Foto: David Arioch

A entrada do casebre é coberta por materiais recicláveis (Foto: David Arioch)

Nos anos 1970 e 1980, quem visitava a Vila do Sossego, atual Vila Alta, em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, se surpreendia com a quantidade de barracos de lona. Cada um, em média, abrigava quatro pessoas. Quando chovia, o desespero tomava conta. Todos tinham de passar a noite acordados e apoiados nas extremidades do barraco para evitar que ficassem descampados.

Com o tempo, o cenário mudou, e hoje o bairro tem poucas pessoas vivendo em situação de pobreza extrema, embora muitos ainda não ganhem o suficiente para viver com dignidade. “Antes a gente reclamava porque não tinha onde morar. Agora cada um pelo menos tem a sua casinha, mesmo que não seja boa”, diz a dona de casa Cristiane Santos França.

Circulando pelo bairro e conversando com os moradores, logo você é informado que muitas moradias só existem porque a comunidade se uniu para construí-las. Ainda assim, é um privilégio que não chegou a todos que vivem no bairro. O casal de catadores de recicláveis Rose Maria Santos e Ivan Cardoso Martins representa bem essa realidade.

Rose Santos: “É difícil porque a casa molha, né? E molha tudo” (Foto: David Arioch)

Rose Santos: “É difícil porque a casa molha, né? E molha tudo” (Foto: David Arioch)

Quem chega em frente ao terreno onde eles moram, nem imagina que ali existe uma “casa” de dois cômodos, com um banheiro improvisado no quintal. A entrada é coberta por materiais recicláveis, o único meio de subsistência de Rose e Ivan que dividem o espaço com cães e gatos, animais que recebem o mesmo tratamento de um filho.

Para entrar no casebre feito à base de materiais descartados na rua, preciso me abaixar para não bater a cabeça no batente fora de medida. O ambiente é escuro e pouco arejado. A luz entra somente por uma pequena janela que dependendo do horário do dia pode ser confundida com uma fresta. No interior do barraco, Rose sorri com timidez e me convida para sentar em uma poltrona bastante judiada, retirada próxima de uma sarjeta.

Nos cumprimentamos e ela me conta que é muito difícil viver nessa situação. Em uma olhadela, percebo que ali não existe nada que algum dia tenham comprado em uma loja. Está tudo muito desgastado. “É difícil porque a casa molha, né? E molha tudo. A gente não tem condições de fazer outra. Molha cozinha, quarto, pinga por tudo”, confidencia Rose visivelmente gripada e enxugando o rosto com um pedaço de pano.

Ivan Martins: “Quando a crise vem, parece que vou morrer. E pode ser que da próxima vez aconteça mesmo” (Foto: David Arioch)

Ivan Martins: “Quando a crise vem, parece que vou morrer. E pode ser que da próxima vez aconteça mesmo” (Foto: David Arioch)

Os móveis, que jamais seriam aproveitados por uma família de classe média, sofrem com a ação da chuva, se deteriorando rapidamente. Quando chove demais, a água arrasta a lama para dentro do casebre. A história se repete há 15 anos, desde que Rose e Ivan fizeram o barraco. “Tudo aqui foi feito por conta própria, juntando aos poucos”, enfatiza a catadora de recicláveis. Enquanto conversamos, escuto um gemido no quarto, cômodo que fica ao lado da sala-cozinha.

Lá, em meio a roupas velhas e objetos antigos, repousa o “Seu Ivan”, como é mais conhecido. Vítima de mal de Parkinson, passa por crises tão severas que há dias em que não consegue andar. Se obriga sempre a se apoiar em algo para evitar a queda, seja uma muleta, um andador ou o próprio carrinho de recicláveis.

Quando percebe a minha presença, Ivan se levanta de um colchão velho, sem roupa de cama, e com muito esforço consegue chegar até nós. Me cumprimenta, sorri e senta ao lado da mulher. Inicia a conversa informando que só não chove em cima do colchão porque conseguiram cobrir parte do casebre com um pedaço de lona doada. “Aí tem cada buracão de pedra que caiu. O madeiramento tá tudo budocando [embodocando]”, afirma.

Os itens no interior do barraco foram encontrados nas ruas de Paranavaí (Foto: David Arioch)

Os itens no interior do barraco foram encontrados nas ruas de Paranavaí (Foto: David Arioch)

“De vez em quando me dá uma tremedeira que nada segura. Não consigo manter nem o copo na mão”, declara com um olhar miúdo e um tom de voz calmo e pausado. Para minimizar o problema, o medicamento não pode faltar. Cardoso também sofre de hipertensão e tem enfisema pulmonar.

Com 61 anos, o homem foi castigado pelas precárias condições de vida. Quem o vê de perto, pensa que é bem mais velho. Mesmo doente, Ivan, assim como Rose, não pode parar de trabalhar. Juntos, eles saem todos os dias pouco antes das 8h e retornam só depois das 20h. São mais de 12 horas diárias de trabalho para lucrar 70 reais por semana, ou seja, 280 reais por mês.

“É o que a gente consegue quando não perde nenhum dia. Agora se ele ficar muito ruim, o ganho é menor”, garante Rose Santos. Entre uma tosse e outra, lembra que o marido sofreu dois infartos nos últimos oito anos. Nas ruas, nem todos respeitam o trabalho dos catadores de materiais recicláveis. Enquanto alguns contribuem, inclusive separando o material para o casal transportar, outros exigem que para recolhê-los é preciso levar também o lixo.

Seu Ivan se emociona quando se recorda da época em que carregava mais de 100 quilos no carrinho (Foto: David Arioch)

Seu Ivan se emociona quando se recorda da época em que carregava mais de 100 quilos no carrinho (Foto: David Arioch)

“Pegamos papelão, plástico, latinha, mas latinha rende pouco, né? Ferro também. O preço é de 10 centavos por quilo. Então tem que conseguir pelo menos 100 pra ganhar um dinheirinho”, explica Rose. Seu Ivan se emociona quando se recorda da época em que carregava mais de 100 quilos no carrinho. “Agora se você me chamar pra ir até o portão pegar dez quilos, não aguento porque não consigo levantar esse peso. Se colocar na cabeça, caio para o outro lado”, lamenta sem esconder a tristeza e o constrangimento. Com olhos marejados, revela que toma banho sentado ou com a ajuda de Rose.

Ivan Cardoso Martins trabalha desde a infância e até hoje não conseguiu se aposentar, seja por tempo de serviço ou pelas limitações impostas pela doença. Sem dia certo para aparecer, as crises podem acontecer com intervalo de dois dias ou até uma semana. “Quando vem, parece que vou morrer. E pode ser que da próxima vez aconteça mesmo”, comenta.

Ivan e Rose, que são facilmente vistos circulando pelas ruas centrais de Paranavaí, sonham em comprar materiais para construir dois ou três cômodos em frente ao barraco. “Se alguém pudesse ajudar, a gente ficaria muito feliz”, admite Ivan em declaração partilhada por Rose. Sem saneamento básico e energia elétrica, o casal parece alheio à realidade dos vizinhos e principalmente dos moradores do bairro ao lado, a Vila Operária.

O catador de recicláveis sofre de mal de Parkinson, enfisema pulmonar e hipertensão (Foto: David Arioch)

O catador de recicláveis também sofre de enfisema pulmonar e hipertensão (Foto: David Arioch)

Assim que agradeço a cordialidade e me despeço, Seu Ivan faz questão de me acompanhar até a entrada, se apoiando com muito esforço em um andador feito e doado pelo artista plástico Luiz Carlos Prates Lima. Apesar da vida de penúria e da invisibilidade social, o homem ainda preserva a sua fé e se despede com um gesto verbal de benevolência: “Muito obrigado pela visita. Vá com Deus, meu filho.”

Contribuição

Quem quiser contribuir com o casal, pode ligar para a Fundação Cultural de Paranavaí: (44) 3902-1128 ou (44) 9865-1391 e falar com Luiz Carlos.

Quase uma ode ao feio

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Clássico de Scola se pauta na degradação humana

Brutti, sporchi e cattivi

Nino Manfredi interpreta o caolho Giacinto (Foto: Reprodução)

Lançado no Brasil como Feios, Sujos e Malvados, o filme Brutti, Sporti e Cattivi é uma anti-heroica e ácida comédia do cineasta italiano Ettore Scola sobre a degradação humana. No clássico de 1976, o protagonista é o caolho de meia-idade Giacinto (Nino Manfredi) que mora com a mulher, dez filhos e outros parentes em um cortiço romano.

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Filme mostra uma família de miseráveis ociosos e materialistas (Foto: Reprodução)

A trama se desenrola a partir do momento que o homem recebe um milhão de liras em moedas; dinheiro de uma indenização conquistada após sofrer um acidente de trabalho. Interessados na grana de Giacinto, todos tentam encontrar os meios mais sórdidos para enganá-lo.

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Em Feios, Sujos e Malvados tudo inspira a disformidade (Foto: Reprodução)

É difícil não se sentir desconfortável com a ausência de beleza combinada à amoralidade dos personagens e do cenário. Tudo é intencional e inspira a disformidade. Scola explora o feio como um parâmetro neorrealista que flerta com o surrealismo. Exemplo é a cena em que o protagonista, em um ato gentio embora sincero, leva uma amante horrorosa para viver com ele e a enorme família, já estigmatizada pela feiura, num minúsculo barraco. Na obra, o feio é recorrente e ganha status de natural.

Aparentemente, são todos feios, sujos e malvados, mas ao mesmo tempo não há um discurso, mesmo lacônico, sobre a culpa de serem assim. É um filme sobre miseráveis ociosos e materialistas às raias do primitivismo que não se importam em arremessar lixo aos familiares ou fazer sexo na frente de parentes, amigos e conhecidos. Para os personagens, tudo é válido quando não há referência cultural de distinção entre certo e errado.

Estão todos juntos em uma lama social que os aglutina a um cenário de desconhecimento moral e privação de dignidade. Ainda assim, surpreende ver que apesar de tudo não há ódio indiscriminado entre eles, apenas vontade de viver da única forma que aprenderam. Em 1976, Feios, Sujos e Malvados garantiu a Ettore Scola o prêmio de melhor diretor no 29º Festival de Cannes.

Curiosidade

O filme Brutti, Sporti e Cattivi inspirou dezenas de filmes, séries e programas sobre famílias desajustadas.