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A velhinha mais colorida de Paranavaí
Gostava tanto de gente, encontros e desencontros da vida infrequente, que por anos morou em um hotel
Minha avó, Dona Clara, mãe de minha mãe, foi a pessoa mais colorida que conheci. Ela e meu avô já tinham se separado quando nasci. Então cada um começou a viver à sua maneira, de forma independente. Dos tempos de pequenez, ecoam na minha mente lembranças da época em que ela chegava em casa sorridente, ajeitando os cabelos lisos, curtos e claros como milho no verão. Sempre trazia algo na mão, chocolate, doce de abóbora, de banana, ou de feijão. Com uma voz bonançosa, não se irritava com facilidade. Me parecia alheia ao mundo e principalmente à modernidade.
Em casa, falava de sua rotina com um lampejo nos olhos dourados e um regalo recalcitrante que faria o mais autoconfiante sentir-se pouco significante. Relatava suas aventuras ao reencontrar ocasionalmente conhecidos e velhos amigos nas suas andanças que ultrapassavam mais de 10 quilômetros diários. Gostava tanto de gente, encontros e desencontros da vida infrequente, que por anos morou em um hotel no centro de Paranavaí. “Oi, vovóó!”, dizia sempre acenando com a mão esquerda. “Ooooi, Deeeivi!”, respondia ela na satisfação sonora de um riso seminal. Quando criança, achei que minha vó tinha nascido vó. Não tinha a mínima ideia de que um dia ela tivesse sido diferente. Afinal, o mundo reconhecido por mim no meu universo diminuto era aquele que conheci a partir do dia em que nasci.
No sofá, vovó me colocava em seu colo e cantava. Eu segurava suas bochechas rosadas, sutilmente flácidas e macias com as minhas mãos minúsculas e dizia sempre que acabava: “Vamos de novo, vovó!” Ela ria e eu sentia suas contrações abdominais chegando até as solas dos meus pés que vibravam e formigavam a ponto de causarem cócegas. Eu gargalhava junto, até avermelhar, eriçando os pés e tocando o queixo com os joelhos.
A cada intervalo, eu olhava seu rosto níveo e escarmentado com ternura, sem reconhecer rugas, sinais e queimaduras causadas por tanto tempo de exposição ao sol na época em que trabalhava nas roças de café de Paranavaí e Alto Paraná. Suas mãos tinham traços desconhecidos por mim, linhas paralelas que se cruzavam antes do fim. Estava sempre perfumada. Quando eu a abraçava, seu bálsamo me acompanhava. “Que cheiro é esse, David? Onde você tava?”, questionavam meus amigos assim que saíamos às ruas para jogar bola. “É cheiro de vó”, replicava.
Seus pés conheciam Paranavaí de norte a sul. Caminhante que era, chamava a atenção ao longe com alguma longa saia ou vestido colorido. Independente de frio ou calor, o que não podia faltar era o fulgor de uma boa cor. O seu apego à natureza, as flores, trazia no corpo com destreza. Quantas formas de estampas iriantes, combinando com os brincos rutilantes – o mais airoso dos penduricalhos de orelha, a faixa sarapintada na cabeça e uma bolsa grande com rajadas de centelha.
Era vaidosa, sem dúvida, mas de uma vaidade moderada e singela que ocasionalmente a motivava a mudar a cor dos cabelos. “É importante colorir pelo menos até vibrar diante da luz do sol”, dizia ela com um sorriso galhardo enquanto massageava o couro cabeludo com a ponta do dedo sulcado. “Lá vem a Dona Clara…parece que nunca cansa”, uma frase que se repetia dezenas de vezes por tantas ruas da cidade. Aposentada, sempre carregava sua bolsa onde armazenava o que comprava, o que vendia e o que doava. Quando eu a encontrava e oferecia carona, ela gentilmente recusava. Justificava que há uma fase na vida em que passa a ser importante sentir as pedrinhas do asfalto tocando a sola do sapato, ouvir os animais reclamando nos portões, as idas e vindas das pessoas dos rincões.
Não queria perder nada de um dia a dia rasteiro que a motivava. Estar a pé na rua bastava. Com tantas expressões impolutas e dissolutas de gente conhecida e desconhecida, ela se jubilava. “O mundo aqui fora é engraçado porque é feito de caretas”, brincava. A mixórdia de perfumes, a zaragata do tudo e do nada, quanta coisa frugal a cativava. Ainda a ouço abrindo o portão de casa, o som de sua rasteirinha conduzida por passos bailaricos de quem raleia o chão extraindo som cadenciado do piso. Suas inúmeras pulseiras nos braços brandiam com suavidade. “Chegou minha vó, a senhora dos ventos e da liberdade”, concluía. Pela sua natureza, perfil esotérico e exotérico, muitos achavam que a Dona Clara era cigana, uma autêntica romani importada da Romênia. Despreocupada, ela ria, se divertia, crente de que todos tinham o direito de acreditar em coisa qualquer, desde que aquilo não prejudicasse uma pessoa sequer.
Na cozinha, se aproximava da mesa, abria a bolsa e tirava de dentro algo que trouxe para a minha mãe, para mim e meus irmãos. Os olhos intumesciam na esperança de ver saltar alguma guloseima. E sempre acertava. Perdi as contas de quantas vezes ela levou e meu irmão Douglas numa mercearia sem fachada na Rua Piauí. Era um paraíso recluso para crianças. Íamos lá à noite, uma vez por mês, depois do horário comercial. Seu Luiz, homenzarrão de quase dois metros, abria a porta de acesso dos funcionários e percorríamos todos os corredores numa felicidade tangente e columbina. Havia doces artesanais que já não existem mais, embalados com desvelo num papel cinéreo, o mesmo que usavam para armazenar pão. Se sorríamos, ela sorria. Nos despedíamos do Seu Luiz, trazendo nas mãos e nos bolsos taliscas moderadas embora adocicadas de alegria. Assim que a porta se fechava, desvanecia o feixe de luz que tocava a soleira da mercearia.
Vovó não ignorava o aniversário de ninguém, jamais deixou de presentear alguém. Sabia a data de aniversário de todos os parentes e amigos. Não tinha apego material, tanto que esqueceu as muitas vezes que emprestou dinheiro e nunca recebeu. Narrava esses fatos da vida gargalhando e galhofando. Sequer franzia a testa ou arvorava as sobrancelhas. Mantinha o semblante quiescente, sentada com as pernas cruzadas, a postura perfilada e as mãos sobre o joelho direito em um banco de madeira na varanda de sua casa. “Quer suco? Também tem bolo de laranja, Deivi”, oferecia em tom melífluo nas visitas semanais que eu lhe fazia desde os primeiros anos de vida.
Independente, sempre preferiu morar sozinha. Ninguém conseguia convencê-la do contrário, mesmo após alguns episódios em que supostos amigos furtaram-lhe eletrodomésticos e a modesta aposentadoria. “Não tem problema. No mês que vem recebo e compro de novo”, replicou sem qualquer indício de exaltação. Se comprazia em viver rodeada de gente, principalmente excluídos sociais. Ainda criança, eu via minha vó como a rainha dos marginalizados.
Foi em sua casa que tive o primeiro contato com picaretas, vagamundos, usuários de drogas, viciados em jogatina, estelionatários, cafetões, mendigos, prostitutas, travestis e ex-detentos. Suas portas estavam abertas para todos os tipos. No entanto, quem não respeitasse suas regras não poderia retornar. Um dia, quando a visitei, me deparei com um homem de aproximadamente 30 anos sentado na varanda. Usava uma camisa branca tão surrada que só não expôs sua débil forma física por causa da sujeira e do sangue seco, além de uma calça social cinza esfarrapada.
Estava descalço e a sola do seu pé era tão espessa que parecia calçar alguma coisa. A barba se confundia com os cabelos desgrenhados, carpelados e grisalhos. “Oi, Deivi. Esse é o Gibé. Ele vai ficar aqui até arrumar um emprego ou um lugar pra ficar”, confidenciou depois de servir uma sopa de legumes ao indigente que só meneava a cabeça e sorria expondo alguns dentes vaporosos e amolecidos. O malfadado tinha apanhado na noite anterior quando dormia ao lado do pombal no Terminal Rodoviário Urbano.
A Dona Clara era um desses seres que Nietzsche definiria como espírito livre. Avessa à raiva e ao ódio, tinha mais o que fazer do que guardar rancor ou perder tempo com o que não enobrece a alma ou a vida. Aos 74 anos, adorava dançar. Não perdia um baile no Clube Idade Dourada e no Tênis Clube de Paranavaí, onde fazia amizade em poucos minutos de conversa. Girava pelos salões com um desprendimento transcendental, entregando-se à alegria sem ressalvas, porque a reconhecia na essência como fortuita e passageira.
Com minha vó e minha mãe, eu ia todos os anos ao Cemitério Municipal de Alto Paraná visitar os túmulos de minha bisavó e de meus dois tios-avôs. No dia 2 de novembro de 2008 estávamos perto do túmulo do tio João quando uma brisa solene massageou meu rosto. A Dona Clara se aproximou de mim e comentou: “Deivi, nunca deixe de vir aqui. Eles precisam da nossa lembrança, da nossa presença. Sempre que venho aqui sinto um afago, uma quietação no coração.”
Aquele dia ela chorou diante de cada túmulo, numa despedida não declarada. Em 20 de dezembro do mesmo ano minha avó faleceu em decorrência de um ataque cardíaco. Compareceu tanta gente ao velório que eu não conhecia nem 1/3 do total. Ainda assim reconheci prostitutas, ex-usuários de drogas e andarilhos, pessoas que minha avó ajudou. Quando saí da capela para ficar um pouco sozinho, observei os galhos de uma sibipiruna se movendo com placidez.
Por trás da copa, a lua começou a despontar. Um homem sorriu diante de mim e perguntou se eu o reconhecia. Respondi prontamente que não. Era o Gibé. Parecia bem saudável. Estava corado, bem vestido, com os olhos grandes como duas jabuticabas e tão perfumado que até quem passava na esquina sentia no ar um aroma oriental – amadeirado e apimentado. “Moro em Maringá. Tenho uma empresa de consultoria em commodities”, revelou.
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