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Fargo, poesia audiovisual do absurdo
Uma série de TV sangrenta com requinte satírico de tragédia grega
Para quem gosta de séries de anti-heróis, e que misturam drama, suspense e humor mórbido, vale a pena conhecer a série Fargo, da FX, que estreou em 2014. Melhor ainda para quem já assistiu ao filme homônimo dos Irmãos Coen, lançado nos Estados Unidos em 1996. Vale a pena investir algumas horas na série e no filme, já que como a storyline é diferente, assim como atores e personagens, um se soma ao outro nas suas mais diversas perspectivas.
Intrigante e envolvente, a primeira temporada da série tem como ponto alto um elenco composto por atores de séries como Sherlock, Breaking Bad e Dexter, além do tarimbado Billy Bob Thornton no papel de um mercenário enigmático, metódico, idealista e desdenhoso. Quem assiste ao primeiro episódio já fica na ânsia de acompanhar os demais.
Na segunda temporada, de 2015, Fargo recomeçou com um novo elenco e sem qualquer associação com o desenvolvimento da primeira temporada. Após um acidente fatal provocado pela esposa Peggy Blumquist (Kirsten Dunst), o incauto assistente de açougueiro Ed Blumquist (Jesse Plemons), o Todd de Breaking Bad, se vê às voltas com a máfia. Sem se dar conta das próprias ações, causa uma guerra entre mafiosos. A situação só não se torna pior do que já é porque tem como atenuante o policial Lou Solverson (Patrick Wilson) e o xerife Hank Larsson (Ted Danson).
Embora as histórias das duas temporadas sejam completamente distintas, alguns padrões são mantidos. Por exemplo, sempre há a moral, o imoral e o amoral, além de personagens que banalizam a vida e se colocam acima da lei para alcançar qualquer objetivo. Outras similaridades entre os personagens incluem prevaricação, comportamento sociopata e negação dos fatos e da realidade, além de anseios eversivos e autodestrutivos.
E o mais curioso é que tudo isso se mistura também à ingenuidade, irreflexão e descomedimento. Excessos de confiança e de profissionalismo também são apresentados como nocivos. São características que cegam os personagens para as falhas e vulnerabilidades percebidas apenas por quem não compõe aquele cenário ou contexto belicoso.
Um exemplo é a cena em que Hanzee Dent (Zahn McClarnon) planeja executar o casal Blumquist, crente de que, por serem pessoas comuns, eles não mostrariam nenhum tipo de resistência. É cômico reconhecer que a experiência também pode levar à tolice e à subestimação, e o que deveria ser uma vantagem se torna uma desvantagem.
Por pior que seja, a ideia da morte em Fargo não chega ao espectador de forma pesarosa, a não ser a de Betsy Solverson (Cristin Miloti), a esposa do oficial Solverson que sofre de câncer. No mais, o passamento parece inevitável e até incentivado como um recurso maior. Ele reforça os desdobramentos meândricos e tresloucados de uma obra cruenta com requinte satírico de tragédia grega.
A desgraça é apresentada em Fargo como uma poesia do absurdo, do tout est possible, mergulhada numa estética carmesim. E nela quase tudo de significante ou insignificante soa mais valoroso que a própria vida – quase relegada a recurso de figuração em meio a um caos de degenerescências.
Entre a cruz e a espada
O Informante, de Michael Mann, apresenta o dilema de um executivo de uma indústria tabagista
Lançado em 1999, o filme O Informante (The Insider), do cineasta estadunidense Michael Mann, apresenta o dilema do executivo Jeffrey Wigand (Russell Crowe), demitido por não concordar com a conduta da empresa tabagista em que trabalha. O drama controverso e documental foi inspirado no artigo The Man Who Knew Too Much, de Marie Brenner, publicado na revista Vanity Fair.
No momento em que Jeffrey Wigand é demitido, o produtor do programa jornalístico 60 Minutes, da CBS, Lowell Bergman (Al Pacino) recebe informações comprometedoras sobre o insondável mundo dos grandes fabricantes de cigarros. A partir daí, Bergman procura uma fonte confiável para se aprofundar no assunto e acaba conhecendo Wigand.
Na mesma esteira, há um jornalista e um executivo preocupados em denunciar uma substância cancerígena que acelera a dependência química e psicológica. Para Bergman, isso também significa marcar para sempre a história da indústria tabagista. Passando por séria crise financeira, Jeffrey Wigand decide contribuir com o produtor, mas muda de ideia quando o presidente da indústria tabagista onde trabalhava o pressiona através de um acordo de confidencialidade.
Após muita insistência, Wigand acaba concedendo a primeira entrevista ao 60 Minutes. Logo ele vê sua vida se complicar. A influência da indústria é tão grande que seu mundo desaba. O executivo perde a família e fica em uma situação que parece irresolúvel. É punido por seguir os princípios éticos de um cidadão, não de uma empresa ou instituição. Preocupado com as incertezas do futuro, não sabe como reagir aos acontecimentos.
Apesar disso, acredita que a justiça há de ser feita e arrisca a própria liberdade ao dizer tudo o que sabe durante o julgamento contra a empresa. Wigand também concorda em conceder uma entrevista mais reveladora ao 60 Minutes. Porém, o produtor Lowell Bergman é traído pelos próprios superiores que se negam a veicular o conteúdo. Em contra-ataque, a indústria tabagista cria factoides sobre a vida de Wigand e os lança na mídia com a intenção de acabar com a sua credibilidade e torná-lo um pária.
“Vale a pena arriscar a própria vida por uma verdade que não foi levada ao público?”, questiona o filme para em seguida dar a resposta. Apesar dos riscos, Wigand acredita no valor da honestidade, mesmo sendo um homem comum lidando com problema incomum. Outra constatação interessante de O Informante é que a partir da história do executivo, Lowell Bergman percebe o poder de seu próprio programa.
Idealista, Bergman não desiste de honrar seus compromissos com a fonte, nem quando é impedido de veicular entrevistas boicotadas por “problemas corporativos”. Na contramão de Lowell está o menos idealista e mais pragmático Mike Wallace (Christopher Plummer), apresentador que preocupado somente com a carreira opta por seguir ordens da direção da emissora.
Wallace só encara a situação com os olhos de Bergman depois de ser enganado por seus superiores que ordenam a reedição de suas entrevistas. Um ponto importante elencado pela obra é o compromisso ético de Bergman com a profissão e não com a empresa para a qual trabalha, mesmo que infelizmente isso seja demasiado incomum fora da ficção.
Talvez a melhor pergunta seja aquela que Bergman faz aos seus companheiros: “Você é um homem de notícias ou de negócios?” É exatamente esse questionamento que muitos jornalistas deveriam se fazer. Afinal de contas, o jornalismo genuíno nasce do interesse público, não patronal.
Embora Wigand seja o informante primário, no decorrer do filme, Bergman também assume a mesma função quando se torna fonte para seus colegas de profissão de outros programas e emissoras. Lowell desempenha esse papel com o intuito de derrubar o falso dossiê composto pelos inimigos do executivo. Como informante, o desempenho do produtor é decisivo para que as informações de Wigand não sejam comprometidas.
As ações de Bergman também obrigam a CBS a veicular o programa com a entrevista concedida pelo executivo. Com uma vitória dúbia, o produtor deixa a emissora, desiludido pela falta de responsabilidade social e profissionalismo da diretoria. No final, tanto o produtor quanto o executivo se veem na mesma posição. São dois homens que desistiram de ganhar muito dinheiro porque acreditam que a verdadeira ética não tem preço.
Uma história de amizade em um mundo árido
Johann e Ranulpho se aproximam por força da necessidade, mas aos poucos se tornam amigos
Lançado em 2005, Cinema, Aspirinas e Urubus é o longa-metragem de estreia do cineasta Marcelo Gomes. Ambientado no sertão nordestino em 1942, o road movie apresenta a história do alemão Johann (Peter Ketnath) e do sertanejo Ranulpho (João Miguel), dois homens antagônicos que se aproximam por força da necessidade, mas aos poucos se tornam amigos.
A primeira cena em que Johann aparece guiando o automóvel em meio à caatinga carrega um conceito de desertificação. A contumácia da claridade amplifica a sensação do vasto vazio em profundidade – do nada, do inabitado. E a trilha aliada ao ambiente evidencia a saudade e a solidão. Em Cinema, Aspirinas e Urubus, desde o princípio a música é tão importante quanto um personagem – ela situa o drama no tempo.
No limiar, há poucos diálogos e a comunicação do filme com o espectador é construída a partir da iluminação que naturalmente intensa reflete uma aridez que evoca semelhante agonia despertada por Nelson Pereira dos Santos em Vidas Secas, adaptação cinematográfica do clássico de Graciliano Ramos.
O imigrante Johann conhece o sertanejo Ranulpho em uma de suas paragens para vender aspirinas e exibir filmes promocionais a pessoas humildes que nunca foram ao cinema. Logo o sertanejo se oferece como ajudante e o alemão aceita. O caráter de tragicomédia da obra se baseia no fato de que o estrangeiro, distante da Segunda Guerra Mundial, vê a mansidão do sertão como paraíso enquanto o brasileiro a vê como um inferno.
O calor extremo, praticamente perpetuado pela estiagem, notabiliza o mal-estar de Ranulpho, crente de que a vida num lugarejo distante da modernidade acentua sua ausência de perspectiva. Atitudes impolutas, como a do sertanejo que não sabe onde encontrar combustível porque está acostumado a ver apenas veículos de tração animal, nutrem a depreciação de Ranulpho, sujeito que usa a ironia como instrumento da própria contestação social.
É interessante a forma como Marcelo Gomes aborda a linguagem regionalista e suas redundâncias. Com exceção dos dois protagonistas, muitos dos personagens, formados por gente simples, têm um vocabulário visceralmente pobre, fundamentado em monossílabos canhestros. Em contraponto, também é algo encantador e singelo porque é honesto e veraz. O próprio Ranulpho, um sonhador em paradoxo – com uma visão pessimista do sertão nordestino, tenta impressionar o alemão, porém recai nas mesmas falhas que ele tanto condena com relação àquele povo humilde.
“Aqui nem guerra chega” e “Lugar que não presta é assim, demora pra acabar”, diz Ranulpho em tom de escárnio. O brasileiro rejeita o cigarro nacional do alemão, deixando subentendido que para ele tudo que é bom precisa ser importado. Recalcitrante, o sertanejo passa boa parte do tempo depreciando seus conterrâneos. Johann, que muitas vezes escuta em silêncio os discursos do ajudante, decide se manifestar e defende que é difícil entender como Ranulpho pode criticar tanto o povo nordestino, sendo que ele faz parte daquela realidade. “Mais ou menos”, responde, sem ceder.
Entre os momentos mais bucólicos da obra estão as cenas de exibição dos comerciais de aspirina. Os espectadores ficam deslumbrados e emocionados. O cinema tão esperado pela população se resume a um vídeo projetado em uma tela de pano – a trilha sonora é baseada nas músicas que tocam no rádio do caminhão. Para eles, a experiência é tão inolvidável que ao final do filme continuam parados observando a tela de pano.
“Vai passar o filme de novo?”, questiona um rapaz empolgado. Intrigante também é a autêntica observação da moça que diz não querer ser atriz porque no filme os atores parecem pessoas infelizes tentando transparecer felicidade. No decorrer da trama, Johann e Ranulpho começam a se entender depois de passarem por muitas situações de aprendizado. No final, os dois reconhecem e aceitam as próprias diferenças e singularidades como resultado do mundo em que foram gestados.
Outro fato curioso é que a cidade natal de Ranulpho se chama Bonança, uma ironia e uma realidade. É incoerente se tratando de riquezas materiais, porém verdadeira ao pensarmos em serenidade. Em 2005, após o lançamento de Cinema, Aspirinas e Urubus, encontrei muitas críticas alegando que o filme é lento e sacal. Acredito que não se trata de uma deficiência de direção, muito pelo contrário. É um artifício de fidedignidade. O sertão é envolto em lentidão e marasmo, então nada mais justo do que transmitir isso, principalmente quando se traz referências do neorrealismo.
As duas realidades de Mark Britten
Em 2012, a série dramática Awake – Two Dreams, One Reality estreou nos Estados Unidos como uma grande promessa da rede NBC. Infelizmente foi mais um programa que não ultrapassou a primeira temporada, inclusive com cancelamento conturbado e final inconclusivo. Apesar disso, é uma série que vale a pena ser conhecida.
Ao longo de 13 episódios, o espectador é convidado a se aprofundar na história e no cotidiano do detetive Mark Britten (Jason Isaacs). Depois de sofrer um acidente, Britten acorda e acredita que está vivendo em duas realidades distintas. A verdade é que ele não é capaz de identificar quando está acordado ou sonhando devido ao trauma. Em uma das supostas realidades, a tragédia custou a vida de seu filho Rex. Na outra, quem está morta é sua esposa Hannah, o que o deixa mais confuso, o levando ao cume da culpabilidade e da crise existencial.
Outra surpresa é que em cada aparente realidade o detetive tem parceiros diferentes. Na história em que sua esposa faleceu, ele trabalha com o detetive Efrem Vega, um jovem com pouca experiência, mas muito sociável. Já no segmento marcado pela ausência de Rex, Mark Britten atua com Isaiah “Bird” Freeman, um detetive veterano – homem cínico e irônico. É interessante perceber logo no primeiro episódio como os mais diversos aspectos da série são permeados pela dualidade, uma constante que inunda o universo de Britten até o episódio final.
Alcatraz, uma série subestimada que acabou cancelada
Em 2012, acompanhei a série Alcatraz, exibida pela Fox e produzida por J.J. Abrams, o mesmo produtor de Lost. Infelizmente a série foi tão subestimada que acabou cancelada. Ainda assim, recomendo a qualquer um que goste de séries de drama e mistério que assistam a primeira e única temporada de Alcatraz. O enredo gira em torno dos 302 presos que desapareceram da Ilha de Alcatraz, a prisão de segurança máxima mais famosa dos Estados Unidos, sem deixar pistas numa noite de 1963.
O mais interessante é que a série se passa na atualidade e, aparentemente, cada um dos detentos retorna em um episódio. Reaparecem e cometem crimes a mando de quem os livrou da prisão à época. O mais intrigante é que os presos voltam com a mesma aparência, como se tivesse passado apenas mais um dia e não 48 anos.
A série tem um caráter crítico bem curioso, tanto é que Jack Sylvane, veterano da Segunda Guerra Mundial e o primeiro fugitivo a ressurgir na atualidade, foi confinado em Alcatraz porque roubou uma mercearia que vendia selos, ou seja, por ironia, um crime federal. No elenco, estão alguns nomes bem conhecidos como Sam Neill, Sarah Jones e Jorge Garcia.
A perspectiva nipônica sobre a Segunda Guerra Mundial
Recomendação – Hotaru no Haka, do cineasta japonês Isao Takahata, que no Brasil ganhou o nome de “Túmulo dos Vagalumes”, é um dos melhores filmes de animação que já assisti. É de uma beleza e sensibilidade que só quem assiste é capaz de compreender. Lançado em 1988, embora não pareça, retrata a perspectiva nipônica sobre a Segunda Guerra Mundial. Basicamente, mostra dois irmãos, ainda crianças, que perdem os pais durante a guerra e são obrigados a fazer de tudo para sobreviver.
O ponto mais conflitante da obra, que ora se aprofunda na inocência infantil, ora na degradação adulta, é a miséria humana e o embrutecimento social que privilegia o individualismo. Crianças que perdiam os pais na Segunda Grande Guerra eram privadas não apenas de alimentos, mas de existir, pelo simples fato de que à época pairava uma linha de pensamento: não divida igualitariamente a comida com um estranho, amigo, vizinho ou até parente se isso significa diminuir a sua perspectiva de vida ou a dos seus.
Não interessava se isso significava mais mortes. É cru, realista e profundo, pois desnuda a falsa ideia de que o único inimigo em tempos de guerra é aquele que ameaça a sua nação – ilusão. Hotaru no Haka é uma lição de vida. Quem assistir não vai se arrepender.
Um filme sobre o fim da liberdade romani
A história de uma família roma que foi perseguida durante a Segunda Guerra Mundial
Lançado em 2009, Korkoro, palavra romani que significa sozinho, é um filme do cineasta franco-argelino Tony Gatlif que retrata a realidade de uma família roma que perdeu a liberdade enquanto viajava pelo interior da França em 1943, quando o país estava sob o domínio Vichy.
Logo no início, a música, a paisagem bucólica e o lirismo introduzem o espectador a uma cena em que as notas de um piano são representadas pela movimentação de arames farpados em paralelo. A princípio, a única perspectiva real que se tem é de um primeiro plano enuviado pelas incertezas de não sabermos o que há antes e depois daquela divisa. É um prólogo referencial do estilo de vida nômade.
Tony Gatlif apresenta uma família romani composta por pessoas de personalidades bem distintas, mas que carregam na essência algumas afinidades que envolvem companheirismo, abnegação, hospitalidade, amor à música, fé e desapego material. Não é uma obra que se limita a combater estereótipos ou simplesmente construir uma imagem bonita sobre a cultura cigana. É bem mais do que isso. Em alguns casos, Gatlif ironiza os clichês justamente para reforçar uma ideia ou parodiar um pensamento comum obtuso.
Em uma das viagens, o cigano Taloche (James Thiérrée) percebe que estão sendo seguidos por um garoto – Claude (Mathias Laliberté). Sem família, o menino se junta a eles. Durante o percurso, colocam saquinhos de estopa nas patas dos cavalos para não deixarem rastros. Quando chegam a um vilarejo, onde montam acampamento, são informados de que o nomadismo está proibido em todo o território francês, sob pena de prisão.
Então uma professora, Mademoiselle Lundi (Marie-Josée Croze) – partisan, integrante da resistência francesa, sugere que eles parem de viajar até o fim da guerra. Por ora, continuam no local, embora não tenham planos de fixar residência. Na escolinha, um dos estudantes comenta com Claude, a quem Taloche chama ironicamente de Chororo (garoto pobre), que os romani roubam crianças. Admirador dos ciganos, o ignora.
O filme é pautado por muita música do início ao fim, corroborando a ideia de que não há vida sem música no mundo roma. Bem comunicativos, os ciganos vão até o centro comercial do vilarejo vender produtos e oferecer serviços. Na tentativa de ganhar algum dinheiro consertando panelas, Taloche diz em tom bem humorado: “Todos têm utensílios com buracos em casa, o que acontece é que às vezes os buracos estão escondidos.”
Em uma cena, o médico veterinário e prefeito do vilarejo, Théodore Rosier (Marc Lavoine), socorre um dos cavalos do acampamento na ausência dos ciganos. Por azar, Rosier é mordido pelo animal e cai com o braço ensanguentado. Pouco tempo depois, chegam para socorrê-lo. Enquanto uns cuidam de seu ferimento, outros prestam atendimento ao equino. Movidos pela fé, tradição e superstição, tratam do braço do veterinário com uma pasta de estrume. Ao mesmo tempo, oram pelo cavalo caído que em um rompante se levanta como se jamais tivesse adoecido.
Mais tarde, Rosier, o prefeito que deu abrigo a petit Claude, evitando que os ciganos tivessem problemas por terem entre os seus um jovem de origem desconhecida, pede ao garoto para perguntar qual foi o remédio usado em seu tratamento. “Foi estrume de cavalo. Mas diga a ele que até uma vassoura pode lançar fogo se for o desejo de Deus”, enfatiza um dos roma.
É profunda a relação dos ciganos com outras formas de vida não humanas. Em outra situação, a família toca uma canção festiva para elevar o ânimo de dezenas de galinhas. No filme, a música ajuda a superar muitos problemas – um recurso que manifesta uma liberdade frugal.
Em contraste ao paisagismo rústico, Gatlif parte de uma condição coletiva para a individual quando aborda o lirismo de Taloche, personagem cuja inocência, aparente dislexia e hiperatividade, parece experimentar um incessante conflito existencial. Há uma exaltação da hipersensibilidade do cigano que destoa da idade e, por vezes, remete ao humor pastelão dos tempos do cinema mudo.
Mas não há nada mais bem representado em Korkoro do que a necessidade de liberdade, até nas cenas mais simples. Outro momento inesquecível surge quando Taloche vai até a casa de Rosier. No banheiro, ele se inebria com a água que sai da torneira. Enche a pia e a faz deslizar por todo o cômodo, como se a conduzisse à emancipação. Quando a água desce em abundância, Taloche se lança escada abaixo, sem o menor temor de se ferir.
O filme assume um caráter documental em algumas cenas-chave. Traídos pelo amigo Pierre Pentecôte (Carlo Brandt), um simpatizante dos nazistas, a família é levada para um campo de concentração, onde há centenas de romani. Lá, Darko (Arben Bajraktaraj) pergunta a Pentecôte por que estavam trancando eles como cachorros. O traidor então responde: “Para livrar a França de seus vermes.”
Ao saberem o que houve, Rosier e Mademoiselle Lundi decidem intervir. O prefeito transfere a escritura de uma propriedade familiar para o patriarca roma. Em seguida, os dois vão até o campo de concentração e apresentam o documento, obrigando que a família seja libertada. Quando retornam ao vilarejo, os ciganos se surpreendem com a nova morada. Alguns concordam em viver provisoriamente no local, já outros preferem partir. No fim, prevalece a decisão do patriarca que considera mais prudente continuar no povoado.
Taloche é o último a entrar na casa. Para ele, a ideia de viver entre paredes é uma forma de privação, embora não manifeste isso com palavras. Dias depois, Rosier os visita e encontra a propriedade abandonada. Novamente na estrada, rumam para a Bélgica, acompanhados mais uma vez por Claude. Não chegam tão longe. São surpreendidos pelos homens do Governo Vichy, a serviço dos nazistas.
Enquanto são obrigados a formarem uma fila e apresentarem registros de identificação, Taloche se esconde. O arrastam, mas ele estapeia o líder da operação – uma versão de Adolf Hitler, em uma cena caricata digna de Charlie Chaplin. Foge em direção à floresta e sobe em uma árvore enorme. É alvejado a tiros, até que numa queda poética e acrobática cai sobre um córrego. Deitado, mas ainda vivo, é vítima de um tiro certeiro na testa.
A morte de Taloche simboliza o fim da liberdade romani e a iminência do Porajmos, o genocídio cigano perpetrado na Segunda Guerra Mundial. O desespero da família é geral, mas, apesar dos prantos, nada pode ser feito diante de tantos homens armados. O corpo é abandonado, assim como os animais e os pertences. Dali, não levam nada. Um longo tempo passa em questão de segundos. Aquela família não retorna mais. Em uma cena estática, tudo se esvai: o som, o fogo, a fumaça, a luz e a vida.
É muito interessante o cuidado que Tony Gatlif teve aos detalhes das expressões e particularidades de alguns personagens, embora talvez fosse mais impactante tornar outros romani da obra igualmente menos anônimos. De qualquer modo, fica clara a intenção de não deixar o individual, por mais peculiar que seja, se sobressair ao coletivo. O cineasta não tem intenção de se aprofundar na guerra. O foco é outro. É um filme sobre pessoas tentando exercer o direito de existir, não apenas habitar o mundo. Há uma bela construção do espaço em profundidade.
Korkoro se divide em dois ritmos. Onde existe alegria, há movimento e velocidade. Onde há tristeza, prevalece a lentidão de retratos quase estáticos das agruras de um tempo nefasto. Outro diferencial é a trilha sonora sempre pontual, um belíssimo trabalho capitaneado por Gatlif e a compositora Delphine Mantoulet.
Tony Gatlif é um dos poucos cineastas que se dedica a produzir obras que evidenciam ou flertam com a cultura romani. Como autor de filmes de longa-metragem, o primeiro grande destaque surgiu com Latcho Drom, de 1993; seguido por Mondo (1995), Gadjo Dillo (1997), Je Suis Né D’une Cigogne (1998), Vengo (2000), Swing (2001), Exils (2004), Transylvania (2006), Korkoro (2009) e Indignados (2012). Vale a pena se aprofundar um pouco mais na filmografia desse autor de origem roma.
Saiba Mais
Não há dados precisos, mas acredita-se que de 250 a 500 mil ciganos foram assassinados pelos nazistas até o fim da Segunda Guerra Mundial.
Curiosidades
Korkoro é baseado em uma história real. A professora Lundi é inspirada na combatente da resistência Yvette Lundi.
James Thiérrée que interpreta Taloche é filho de Victoria Chaplin e neto de Charlie Chaplin.
Gondry, Kaufman e as dores da alma
Eternal Sunshine of the Spotless Mind aborda a instabilidade humana frente às adversidades das relações amorosas
Lançado em 2004, Eternal Sunshine of the Spotless Mind, que chegou ao Brasil com o fidedigno título Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, é um filme do gênero drama do cineasta francês Michel Gondry em parceria com o estadunidense Charlie Kaufman, roteirista muito conhecido por obras conceituais como Being John Malkovich, de 1999, e Adaptation, de 2002.
Protagonizado por Joel (Jim Carrey) e Clementine (Kate Winslet), que se somam a outros personagens interpretados por famosos como Elijah Wood, Kirsten Dunst e Mark Ruffalo, Eternal Sunshine of the Spotless Mind é um filme interessante sobre a ficcional possibilidade de desconstrução das emoções e sentimentos. Após um conflito amoroso, Clementine decide se submeter a um procedimento neurocirúrgico para apagar Joel de sua memória. A iniciativa parte de uma premissa e anseio de idealização instintivamente humana após grande, mas natural experiência de sofrimento.
Ao saber do ato de Clementine, Joel opta por fazer o mesmo. Durante o processo se arrepende e começa uma batalha psicológica e emocional para preservar fragmentos de sua vida com a namorada. A dor se intensifica ainda mais conforme a mulher se desvanece da memória de Joel. Momentos vividos a dois tornam-se vazios quando o homem é relegado a ser o único personagem de uma realidade que só poderia ser intensa se vivida de forma compartilhada. Tudo parece desértico, difuso e disperso em um contexto mental fugidio e atroz, onde a dor desequilibra a essência humana e submete o homem ao desespero das incertezas da própria existência.
A introspecção leva Joel ao cume da solidão, assim o filme se eleva a um caráter metafórico excepcional. Juntos, Joel e Clementine, inertes em mundos paralelos, mas dissonantes, chegam a representar a desmaterialização do amor. É algo tão dolorosamente humano que lança turbilhões de luz sobre as falhas da natureza social, principalmente a individualização motivada pela insegurança e franca possibilidade de incompreensão. No fundo, tudo é sustentado como consequência de uma comunicação canhestra.
Em suma, Eternal Sunshine of the Spotless Mind é uma obra bela e triste que mistura humanismo, existencialismo e surrealismo. Muito bonita ao traduzir a interiorização e as dores da alma com requinte poético, mas sensivelmente tétrica em premeditar e denunciar o princípio do fim das boas e tradicionais relações humanas. Afinal, o filme parece se embasar na ideia de que em situações de conflito amoroso e existencial cresce o número de pessoas que preferem reclamar de não ter acesso a uma tecnologia capaz de eliminar os desconfortos que as afligem. Não se dão conta que melhor seria ponderar e tentar lidar de frente com as situações mais complicadas.
Lola precisa correr
No filme Lola Rennt, protagonista tem três oportunidades de salvar o namorado em 20 minutos
Lançado em 1998, Lola Rennt, que chegou ao Brasil como Corra, Lola, Corra, é um filme do cineasta alemão Tom Tykwer com uma estrutura tão importante e reveladora quanto a história. Na obra, Lola (Franka Potente) vivencia três tentativas de salvar a vida do namorado em vinte minutos. Manni (Moritz Bleibtreu) entra em um metrô e quando sai esquece uma bolsa com cem mil francos. A quantia pertence a um grupo criminoso do qual o rapaz tenta fazer parte. Desesperado pela perda do dinheiro que lhe custará a vida, Manni liga para a namorada Lola relatando o acontecido e informando que ele tem apenas vinte minutos para recuperar a grana. Sensibilizada com a situação, Lola inicia uma batalha contra o relógio.
Em Lola Rennt, a protagonista vive o mesmo dilema três vezes, com a história se repetindo consecutivamente. A grande diferença é que em cada uma as casualidades, encontros e desencontros, interferem nos atos da personagem e também nas ações de outras pessoas, alterando sempre a sequência e o desfecho do episódio. Por exemplo, um atraso de poucos segundos pode evitar que alguém seja atropelado.
Sem dúvida, o maior atrativo do filme é a criatividade do diretor Tom Tykwer que mistura vídeo, música, desenho animado e fotografia como elementos intrínsecos de um mesmo universo. Por meio de sons eletrônicos, o cineasta transmite a tenacidade da eletrizante correria de Lola pelas ruas de Berlim, na Alemanha. No contexto, o gênero techno pode ser interpretado como uma conexão dialética, um desdobramento musical das tantas repetições e intervalos ao longo da história, dando mais dinâmica à lógica espaço-temporal da obra. Já o desenho animado, que dá um caráter virtual e surreal a algumas cenas, remete aos jogos de videogame.
O filme parece um jogo eletrônico em que Tykwer brinca com sons e cores. A cada episódio, Lola encontra uma maneira curiosa de recuperar a grana. No primeiro, ela pratica um roubo e deposita tudo dentro de bolsas vermelhas, uma simbologia do amor, embora a atitude seja desesperada e irrefletida. Na segunda tentativa, a protagonista pega o dinheiro do banco do próprio pai, então tudo é armazenado em uma bolsa verde que representa positividade pelo fato da figura paterna ser uma pessoa de caráter duvidoso. Ao mesmo tempo, a cor remete à imaturidade e intemperança da jovem.
Na última história, Lola consegue a grana sem lesar ninguém ao participar de uma jogatina em um cassino. Ao final, o dinheiro é colocado em uma bolsa amarela que curiosamente se traduz na reflexão e ponderação da personagem. Reunindo as cores de cada história, temos a composição de um semáforo, em uma implícita e brilhante alusão aos momentos em que Lola pôde parar, prestar atenção e seguir em frente.
A trilha sonora da obra foi concebida por Tom Tykwer, Johnny Klimek e Reinhold Heil, mas conta com excertos de The Unanswered Question, de 1906, do compositor estadunidense Charles Ives, que traduz musicalmente o conceito do silêncio dos druidas. Em síntese, Lola Rennt é um filme veloz que rompe as amarras com o cinema convencional e faz referências ao clássico Przypadek, de 1987, do cineasta polonês Krzysztof Kieślowski.
A (des)conhecida pobreza branca dos EUA
Gummo aborda a miséria e a defasagem intelectual dos chamados white trash
Personalidade do cinema marginal estadunidense, Harmony Korine lançou em 1997 um filme que chamou a atenção do mundo. Intitulado Gummo, o drama de caráter documental apresenta o universo perturbador e miserável dos brancos pobres dos EUA. São pessoas que vivem à margem da sociedade, conhecidas pejorativamente como white trash.
Gummo conta a história de Solomon (Jacob Reynolds) e Tummler (Nick Sutton), dois adolescentes de Xenia, Ohio, que ganham a vida matando gatos, depois vendidos a um restaurante chinês. A partir dos protagonistas, reféns da mediocridade humana, Korine mostra outros personagens, igualmente degradantes, em fragmentos bem estruturados e angustiantes.
Embora no decorrer do filme haja uma progressão de perspectivas e aberturas para contextualizações, o cineasta faz questão de destacar que os personagens estão fechados em um mundo minúsculo e peculiar, onde predominam os sentimentos coletivos de conformismo e desesperança. Em uma das cenas mais pesadas de Gummo, um jovem desempregado fala naturalmente sobre as possibilidades do suicídio enquanto a câmera se move com certa inquietação.
Harmony Korine explora isso como um desdobramento das consequências sociais da economia e da política estadunidense que há muito tempo priorizam as classes mais altas. E como resultado da falta de oportunidades, a pobreza intelectual é abordada de forma crua e ríspida, sem qualquer resquício de sentimentalismo. Há momentos em que os personagens dialogam aleatoriamente e com um vocabulário tão limitado, falho e errado que beira ao nonsense.
Para quem está acostumado a acompanhar apenas a cultura cinematográfica de Hollywood, é difícil acreditar que o filme de Korine se passa nos EUA, pois abre as portas de um universo tão marginalizado e nauseante quanto as periferias das nações mais pobres do Terceiro Mundo. Em Gummo, o conceito de beleza é distorcido pelo referencial de proximidade. Os habitantes desse universo particular aprendem, por força da convivência, a admirar o feio, o que é enaltecido pelas tomadas com lentes objetivas de grande-angular.
Duas cenas representam com precisão e minimalismo o objetivo do autor. Na primeira, um mundo caótico é representado pela natureza por meio de um tornado. Na segunda, a desordem no interior da casa de Solomon ressalta o caos humano. Ou seja, em grande ou pequena proporção, nada naquele universo aspira à civilidade. Com exceção da atriz Chloe Sevigny, o filme tem um elenco formado por desconhecidos, até mesmo atores amadores e pessoas comuns, o que faz o autor ultrapassar as barreiras do cinema tradicional para estreitar a relação com a realidade.
Harmony Korine mistura ficção, documentário e videoarte numa produção baseada em filmagens que exploram desde equipamentos profissionais até os mais compactos e domésticos. Quem sabe, uma referência ao Dogma 95 do dinamarquês Lars Von Trier. Há ainda algumas quebras de movimentos propondo rupturas de contexto. Exemplos são as situações em que vídeos são substituídos por fotos, neutralizando a ação da trama e apresentando um panorama mais descritivo.
Outro elemento interessante de Gummo é a trilha sonora que capta a essência de cada cena, migrando do campo claro ao ruidoso, sustentada em composições de músicos dos gêneros clássico, bluegrass, folk, powerviolence, stoner rock e metal extremo. Apesar de ainda ser um cineasta pouco conhecido no Brasil, Harmony Korine começou a ganhar espaço no cinema estadunidense muito cedo. Em 1994, aos 21 anos, escreveu o roteiro do filme Kids, do cineasta Larry Clark, que obteve grande sucesso de crítica e público.