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As crianças do Cine Ouro Branco
Vi as lágrimas escorrendo pelo seu rosto, molhando sua camisa xadrez abotoada até na altura do pescoço
Não faço parte de uma geração que tem as lembranças mais sólidas e claras do Cine Ouro Branco, um dos grandes pontos de entretenimento da população de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, até 1993. Quando o cinema foi fechado, eu ainda era criança. Apesar disso, frequentei o Ouro Branco por alguns anos da minha infância e tenho boas recordações daquele tempo.
A minha primeira vez no cinema foi numa sessão de “Os Heróis Trapalhões – Uma Aventura na Selva”, num final de semana em 1988. Até então, a maior tela que eu tinha visto era da TV de 21 polegadas, coberta por uma caixa de madeira envernizada, que ficava na sala de casa. Mesmo assim eu era feliz assistindo desenhos animados nela.
Logo que eu, meu irmão e minha mãe chegamos em frente ao Cine Ouro Branco, na Rua Manoel Ribas, no centro de Paranavaí, prestei atenção na grande movimentação de pessoas na fila da bilheteria. Miúdo, eu observava tudo na proporcionalidade da minha estatura. Via mais sapatos, pernas e cintos do que rostos. A não ser, claro, quando as pessoas eram tão pequenas quanto eu.
Antes de entrarmos, caminhei vagarosamente e de costas pela calçada, tentando observar a altura do prédio do Cine Ouro Branco, mas era impossível para mim. Então pensei que aquele fosse o maior cinema do mundo. Quem sabe, atravessasse os céus e tivesse contato direto com o paraíso de que falavam na escolinha.
O gentil pipoqueiro sorria pra mim, percebendo através dos meus olhos grandes, cilíndricos e pretos que aquela era a minha estreia no cinema. “É sua primeira vez? Você vai gostar e vai querer voltar mais vezes”, disse enquanto ajeitava uma pequena quantidade de pipoca doce que tentava se misturar com a salgada.
Quentinha, a pipoca pronta para consumo estalava dentro do carrinho. Por um momento, cheguei a crer, na minha ilusão meninil, que talvez a pipoca tivesse vida própria e também quisesse entrar no cinema para assistir Os Trapalhões. Ao meu lado, prevalecia um aroma adocicado que pacificava as crianças mais buliçosas – sim, era um eficaz calmante açucarado e rubro.
Trazia recordações dos airosos ipês-vermelhos que eu via todos os dias perto de casa, quando apontava com o dedo e gritava: “Olha lá um pé de pipoca-doce!” Do outro lado do carrinho de pipoca, a olência mudava, assim como o público. Os adultos, principalmente os homens, se achegavam para comprar: “Me vê da salgada, por favor!”
Habilidoso, o pipoqueiro sabia como ninguém quantas pazinhas de alumínio eram necessárias para encher um saquinho. Eu assistia suas mãos sulcadas lucilando diante da pequena lâmpada já amarelecida que iluminava e dourava seu rosto crispado. Era desse jeito, sempre que ele se inclinava ou se aprumava. Aquele era seu espetáculo e na entrada do Cine Ouro Branco ninguém era mais importante do que o pipoqueiro.
Naquele dia, antes de entrarmos no cinema, cinco engraxates, com idade entre 6 e 14 anos, se aproximaram, encostaram numa parede ao lado do Cine Ouro Branco e, como os jovens farroupilhas do filme Los Olvidados, de Buñuel, começaram a fumar, observando famílias descendo dos automóveis e atravessando a calçada.
“Se tivesse pai ou mãe não tava nessa vida, irmão! Ser pobre e sozinho não é fácil não. Olha quanto luxo dessa molecada”, comentou um deles com os quatro amigos que o acompanhavam. Sem falar nada, apenas balançaram a cabeça em concordância, esmagando bitucas a pés pequenos.
Sujo, com unhas encardidas e cheiro nauseante de cigarro barato, um engraxate de não mais que 12 anos se aproximou de uma turma de crianças. Como alguém indeciso sobre entrar ou sair, cruzou os braços e ergueu o rosto enquanto uma das luzes da entrada realçava sua dúbia expressão de satisfação.
“Pessoal, escuta aí! Rapidinho! Esse filme dos Trapalhões é bom demais. Só tem uma coisa ruim. O Mussum e o Zacarias morrem no final. Valeu! Tchau!”, gritou e correu rindo, com os cabelos ondulados e escuros esvoaçando. Naquele momento, ele se tornou um antagonista digno do vilão Cicatriz interpretado por Carlos Koppa no filme dos Trapalhões.
O garoto arrastou os chinelos surrados e, acompanhado de seus comparsas, desceu satisfeito em direção à Rua Pará. Algumas crianças não se importaram com a revelação, mas outras ficaram tão irritadas que queriam que seus pais chamassem a polícia ou fizessem algo a respeito. Por bem, ninguém os perseguiu.
Dentro do Cine Ouro Branco, fiquei boquiaberto com as poltronas a perder de vista. “Aqui cabe mil e quinhentas pessoas. Olhe lá em cima, é como numa ópera”, informou minha mãe, observando a minha reação e a do meu irmão Douglas. Sem pressa, giramos ao redor da sala mastodôntica, tentando registrar os detalhes.
Por sorte, havia lugares vagos nas primeiras fileiras. Então caminhamos até lá, atravessando corredores e ouvindo sons de espectadores comendo pipoca, conversando, fazendo troça e se abraçando. Perto de nós, o lanterninha acompanhava tudo com sua aura indefectível de vagalume. Se sentia o líder de um coliseu onde nada aconteceria sem sua autorização, ainda mais quando as luzes se apagavam.
Assim que me sentei, observei um garoto com roupas remendadas sentado ao meu lado, acompanhado de sua mãe. Seu nome era Juscelino e ele era um ou dois anos mais velho do que eu. Também era a primeira vez dele no cinema. Percebi sua ansiedade porque seus pés miúdos não paravam de balouçar, assim como os meus.
Suas mãos trêmulas suavam tanto que toda hora ele as enxugava nas laterais da calça xadrez de barras curtas. Juscelino falava comigo mantendo o rosto em direção à desmesurada tela de projeção. Achei que era empolgação por causa do filme, até que notei algo de diferente em seus olhos, uma clareza cristalina como nunca vi antes. Com naturalidade, a mãe revelou que o filho nasceu cego.
Juscelino não enxergava nada. Ainda assim sua empolgação no Cine Ouro Branco superava até a minha. Os sons e olores que chegavam até ele eram como presentes imateriais, memoriais. Com uma rara acuidade auditiva e olfativa, Juscelino percebia até o que as pessoas faziam ou comiam nas poltronas mais distantes – e comentava tudo comigo.
Filho de um casal de lavradores de Alto Paraná, ele chegou a Paranavaí de ônibus pela manhã e ficou horas esperando a bilheteria abrir. Seu pai não prestigiou o grande acontecimento porque o dinheiro economizado a duras penas só cobria as despesas da mulher e do filho. “Vai começar, mãe!”, disse o garotinho segundos antes do projetor iniciar a rodagem do filme, como se tivesse um dom para presságios.
Do início ao fim, Juscelino ficou em completo silêncio, tentando absorver o máximo possível de informações sonoras. Ocasionalmente, se movia sobre a poltrona sem fazer barulho, preocupado em incomodar. Eu, ele e meu irmão estávamos unidos por uma experiência que jamais se repetiria. As nossas maiores descobertas eram visuais e as de Juscelino auditivas. Talvez até mais ricas, já que ele se colocava na condição de criador para dar vazão à criatividade de tudo que ouvia.
Ainda no escuro, vi as lágrimas escorrendo pelo seu rosto, molhando sua camisa xadrez abotoada até na altura do pescoço. Ao final, com o retorno das luzes, perguntei a ele como era a assistir a um filme no cinema sem poder ver. Minha mãe me repreendeu, mas a de Juscelino não se importou com a pergunta.
“Não sei explicar direito, mas eu vejo sim, só não vejo com os olhos. Vejo tudo que carrego pra dentro de mim”, justificou antes de segurar a mão de sua mãe e caminhar a passos curtos em direção à saída, onde a iluminação artificial contrastava e se harmonizava com a luz anilada e complacente da venusta Lua recém-chegada.
Na esquina, no cruzamento entre a Rua Pará e a Manoel Ribas, os cinco engraxates, crianças vivendo como adultos, tamborilavam suas caixas, sentados no meio-fio, imersos em sorrisos postiços e olhares acabrunhados, tentando existir para um mundo que pouco reconhecia suas verdadeiras intenções.
Retornando para casa a pé, atravessamos a rua. Quando passamos por eles, o mesmo garoto que causou o alvoroço na entrada do cinema me puxou pelo braço e, com um olhar supliciado, perguntou: “Ei, amigo. Você pode contar pra gente a história do filme que tu viu lá no cinema?”
Curiosidade
Fundado em 27 de janeiro de 1961 pela Família Del Grossi, o Cine Ouro Branco foi uma das mais importantes fontes de entretenimento da população de Paranavaí até 1993.