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Séneca: “Resolvi abster-me do consumo de carne e, no final de um ano de abstinência, foi tão fácil quanto prazeroso”

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“Insaciável, insondável, a gula procura cada terra e cada mar”

“Eu simplesmente me privo da comida dos leões e dos abutres. […] Nós só reconhecemos o som da razão quando nos separamos da multidão (Arte: Peter Paul Rubens)

Lúcio Aneu Séneca, mais conhecido como Séneca, foi um importante filósofo do Império Romano, dramaturgo de prestígio, conselheiro do imperador Nero e um dos homens mais influentes de seu tempo. Na juventude, ele teve contato com a filosofia por influência de Átalo O Estoico, Sotion e Papírio Fabiano que faziam parte da escola filosófica criada por Quinto Séxtio, combinando pitagorianismo e estoicismo.

Em “Epistulae Morales ad Lucilium”, ou “Epístolas de Séneca” ou “Cartas a Lucílio”, Séneca narra que ele decidiu abdicar do consumo de animais no início dos seus 20 anos por influência de Sotion. Costumava dizer-lhe por que Pitágoras se absteve de consumir animais, e por que, mais tarde, ele também fez isso.  “[Já] Séxtio acreditava que o homem tinha opções o suficiente sem precisar recorrer ao sangue, e que um hábito de crueldade é formado sempre que o abate é praticado por prazer. Além disso, ele concluiu que deveríamos restringir as nossas ‘fontes de luxo”, argumentando que uma dieta variada era contrária às leis da saúde e não era adequada às nossas constituições.”

Mais tarde, Séneca começou a despertar atenção negativa, porque no império de Tibério César seus hábitos passaram a ser comparados aos de seguidores de religiões estrangeiras, como os cristãos. “Motivado pelo pitagorianismo, Séneca tornou-se um vegetariano estrito. Quando Séneca O Ancião descobriu o novo entusiasmo de seu filho, ele o advertiu sobre as responsabilidades da vida pública ao ser visto como um excêntrico”, consta na página 20 do livro “Seneca: The Tragedies”. Naquele tempo, os primeiros cristãos tinham hábitos vegetarianos e partilhavam da compaixão por todas as criaturas.

Séneca escreveu que os princípios pitagóricos que envolvem a abstenção do consumo de carne favorecem a bondade e a inocência. E mesmo que os benefícios desse não consumo não fossem aqueles enumerados por Pitágoras, principalmente no que diz respeito à metempsicose ou transmigração de almas, que fala que devemos respeitar todas as criaturas porque nós também podemos renascer como animais não humanos, há algo que, do ponto de vista de Séneca é inquestionável – o fato de que abdicar do consumo de animais aproxima o ser humano da frugalidade e o afasta da crueldade contra animais não humanos.

“Eu simplesmente me privo da comida dos leões e dos abutres. […] Nós só reconhecemos o som da razão quando nos separamos da multidão. O próprio fato da aprovação da multidão é uma prova da falta de prática ou de opinião. Pergunte o que é melhor, não o que é costume. Deixe-nos amar a temperança – sejamos justos – deixemos nos abster do derramamento de sangue. Ninguém está tão perto dos deuses quanto aquele que demonstra bondade”, registrou Séneca na epístola 108 de “Epistulae Morales ad Lucilium”.

Séneca cita os ensinamentos de Sotion que afirmava que o homem pode encontrar suficiência de alimentos sem precisar explorar ou matar animais. Segundo ele, a crueldade tornou-se habitual a partir do momento em que a prática de abater animais foi associada à gratificação do apetite. “Movido por esses argumentos, resolvi abster-me do consumo de carne e, no final de um ano de abstinência, foi tão fácil quanto prazeroso”, confidenciou nas epístolas.

De acordo com The Hidden History of Greco-Roman Vegetarianism, de Nathan Morgan, Séneca também foi influenciado pelos ensinamentos de Epicuro e, ao adotar uma “alimentação vegetariana”, ele também passou a criticar a crueldade dos jogos romanos oferecidos como distração aos cidadãos. O que ele definia como uma das decadências de seu tempo, pelo fato de não haver necessidade de instigar a rivalidade entre seres humanos e não humanos.

Em crítica aos hábitos alimentares exóticos da época, o filósofo romano declarou que ninguém precisava de javalis de mais de 450 quilos nem da língua de pássaros raros para satisfazer o paladar ou a fome, em crítica aos excessos despertados pelo consumo de carne: “Devo admirar você somente quando não desprezar o pão simples, quando você se convencer de que as ervas não existem apenas para os outros animais, mas para o seres humanos também. Os vegetais são o suficiente para o nosso estômago e para garantir a continuidade de nossas valiosas vidas.”

Na página 546 do livro “The Oxford Handbook of Animals in Classical Thought and Life”, editado por Gordon Lindsay Campbell, Daniel A. Dombrowski informa que Séneca acreditava que a causa psicológica do consumo de carne estava relacionada à ambição humana. Essa afirmação vai ao encontro das “Cartas a Lucílio”, especialmente a passagem em que ele lamenta que incontáveis navios de todos os mares eram deslocados com provisões para alimentarem apenas uma boca, uma poderosa, mas ainda assim uma única boca humana, enquanto um boi ficava satisfeito com a pastagem de um ou dois acres.

Ele também observou que enquanto uma floresta era o suficiente para vários elefantes o ser humano seguia sua nefasta jornada como o responsável pela pilhagem de toda a terra e de todos os mares. Isso explica ainda porque ele costumava se referir aos glutões que consumiam grandes quantidades de carne como “escravos da barriga”. Defensor de uma alimentação simplificada, e que não incluía alimentos de origem animal, na epístola 95, Séneca aponta como um problema o surgimento de uma força “supernumerosa” de médicos, de instrumentos cirúrgicos e medicamentos, porque isso significava que o número de pessoas doentes estava aumentando vertiginosamente.

O filósofo romano via isso como consequência de maus hábitos alimentares, entre os quais os excessos do consumo de alimentos de origem animal. “Muitos pratos induziram a muitas doenças. Observe o quão vasta é a diversidade de vidas que um estômago recebe. Insaciável, insondável, a gula procura cada terra e cada mar. Alguns animais perseguimos com armadilhas, redes de caça, ganchos, não poupamos nenhum tipo de trabalho para submetê-los ao nosso jugo. Não há permissão para qualquer espécie viver em paz.  Não é de se admirar que com uma dieta tão exagerada as doenças variam tanto”, lamenta na epístola 95.

Correndo o risco de ser executado como um traidor, Séneca foi obrigado pelo governo imperial a abdicar da abstenção de alimentos de origem animal. Seus hábitos alimentares passaram a ser vistos como uma ameaça à ordem. No entanto, isso não o impediu de estimular outras pessoas a seguirem por esse caminho por meio de suas 124 cartas, mais tarde transformadas na famosa obra “Epistulae Morales ad Lucilium”. Ainda assim, abdicar de sua nutrição essencialmente vegetal também não o impediu de ser morto, já que o imperador Nero o acusou de participar de uma conspiração para assassiná-lo.

Até hoje a maior parte dos pesquisadores da história e da obra de Séneca defende que ele jamais participou desse plano. A desconfiança de Nero, supostamente reforçada pela inveja que ele tinha do prestígio de seu conselheiro, custou a vida do filósofo romano que foi compelido a suicidar-se em Roma aos 68 anos, no ano 65 do século I. Além de suas cartas e ensaios filosóficos, outro importante legado deixado por Séneca são as tragédias “Medeia” e “Tiestes”, que influenciaram a tragédia e o drama europeu durante e após o Renascimento.

No livro “Ethics of Diet”, publicado em 1883, Howard Williams enfatiza que Séneca foi um ser humano excepcional, de pensamentos elevados, e essencialmente bom no melhor sentido da palavra; que não se limitava ao lugar-comum e a uma moral convencional. Diferente dos muitos oradores de sua época, que conquistavam facilmente aprovação e aplausos com seus enunciados clichês, Séneca instigava a dúvida e a reflexão, porque entendia que só a mudança de consciência e pensamento poderia permitir ao ser humano rever a sua conduta de vida em todas as suas relações. Os seus discursos não raramente demandavam abnegação, autocontrole e uma consciência para além da concepção ortodoxa do mundo e da vida.

Saiba Mais

Lúcio Aneu Séneca, filho de Séneca o Ancião, nasceu em Córdova, atual Andaluzia, no ano 4 antes da Era Cristã. Por influência de sua tia, acabou eleito questor após o ano de 37 do século I, o que deu-lhe o direito de ocupar um lugar no senado romano. Séneca foi considerado o mais importante filósofo estoico durante o Renascimento.

Referências

Seneca. Letters From A Stoic: Epistulae Morales AD Lucilium: All Three Volumes.  CreateSpace Independent Publishing Platform; Combined edition (2014).

Phillips, Howard. The Ethics of Diet: An Anthology of Vegetarian Though. White Crow Books (2010).

Campbell, Gordon Lindsay. Daniel A. Dombrowski. The Oxford Handbook of Animals in Classical Thought and Life. Oxford University Press (2014).

Seneca. Seneca: The Tragedies. Página 20. Series: Complete Roman Drama in Translation. Johns Hopkins University Press; 1st edition (1995).

Morgan, Nathan. The Hidden History of Greco-Roman Vegetarianism. Encyclopedia Britannica. Advocacy for Animals (2010).

Tyson, Jon-Wynne. The Extended Circle: A Dictionary of Humane Thought. Penguim Group. United Kingdom (1990).