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Uma manhã insólita no banco
Senti uma dor de cabeça que parecia premer tudo que havia dentro da minha caixa craniana
Fui ao banco antes do almoço. Chegando lá, retirei minha senha da máquina e caminhei até uma das poltronas vagas. Olhei para o painel eletrônico e me surpreendi porque não demoraria muito para eu ser atendido.
Como nunca fui do tipo que mexe no celular enquanto aguarda atendimento, fiquei observando tudo ao meu redor com discrição. As pessoas pareciam tão tranquilas. Não ouvi nenhuma reclamação. Até as poucas crianças que acompanhavam os pais se mostravam educadas e compreensivas, caladinhas, assistindo a vida transcorrer sem muita pressa.
“Uau! Inacreditável! Se há dez anos alguém falasse que eu passaria por uma situação assim no banco, provavelmente eu não acreditaria”, deduzi. Tudo ia bem. Pessoas silenciosas ao meu lado, inertes em seus próprios pensamentos, mostravam que idas ao banco nem sempre são ruins.
De repente, chegou um sujeito falante, na faixa dos 40 anos, dando tapas nas costas de um senhor beirando os 60. O mais jovem falava alto, gesticulava e extasiado coçava a barriga saliente, desproporcional ao restante do corpo magro, que se avolumava conforme ele a estufava orgulhosamente sob os botões de uma camisa bege.
Ouvi o de 40 anos comentando sobre o preço da cerveja. Porém, não demorou, e o homem mais velho se despediu. Àquela altura, eu já não estava mais atento à sua presença. E para minha surpresa, o desconhecido se aproximou e sentou ao meu lado. Além da camisa de linho, ele usava calça social preta e um par de sapatos pretos. À primeira vista, um sujeito bem vestido – na ótica social tradicional.
Quando eu estava cabisbaixo, lendo “As babas do diabo”, de Cortázar, um amigo, Renato Frata veio até mim e me parabenizou pelo conteúdo do meu blog. Agradeci e nos despedimos. Então voltei a ler “cobria seu rosto de rugas, alguma coisa mudava de lugar e de forma porque a boca tremia e o trejeito ia de um lado a outro dos lábios como uma coisa independente e viva, alheia à sua vontade…”
Não consegui continuar a leitura. Senti uma dor de cabeça que parecia premer tudo que havia dentro da minha caixa craniana – era lancinante. “Que dor estranha, que desconforto”, refleti. Logo que levantei a cabeça, ouvi queixas incompreensíveis de duas senhoras sentadas atrás de mim. E o homem ao meu lado fedia tanto que me esforcei para não levantar e sair dali.
Ele sorria sozinho com tanto paroxismo que fiquei sem entender. “Será que esse cara está rindo de mim? Acho que não! Que tipo de pessoa faria algo assim?”, inferi. Ao meu lado, o sujeito ignorava tudo. Virei o rosto à minha esquerda e levei a mão ao nariz disfarçadamente. Quando voltei à posição normal, a pestilência ficou mais vigorosa, me dando náusea.
Era a mais medonha das combinações de odores – um misto de chulé, axilas hidrofóbicas (um eufemismo neológico para suvaqueira) e mau hálito que superava o pior dos chorumes. E vinha num crescendo tão grande que dava a impressão de se desenvolver em estágios de tempo. Angustiado, observei o painel. Ainda não era a minha vez. Para piorar, o homem inclinou o corpo e deslizou o dedo pelo calcanhar nu do pé esquerdo. De lá, ele tirou uma bolinha esverdeada de sebo e começou a esfregá-la com os dedos médio e polegar.
A liberdade veio em boa hora. Olhei para o painel e vi minha senha piscando. Assim que me levantei, uma senhora em um vestido longo, acompanhada de uma idosa, provavelmente sua mãe, me puxou pelo braço. “Nossa, filho! Um moço tão bonito que nem você poderia se cuidar um pouquinho mais, né?”, se queixou. Preocupado em perder a vez, não falei nada, só me dirigi ao caixa.
Quando saí do banco, notei algumas pessoas com olhares carrancudos e reprovadores. Caminhei apressado, sem entender nada até o momento em que entrei no carro e encostei o nariz na minha camiseta. Ela continuava cheirosa do lado esquerdo, mas do lado direito tinha uma mancha esverdeada como a bolinha de sebo que o desconhecido tirou do próprio calcanhar.
Augusto dos Anjos e a consciência vegetariana
Na mão dos açougueiros, a escorrer/Fita rubra de sangue muito grosso/A carne que ele havia de comer!
O paraibano Augusto dos Anjos, por vezes qualificado como simbolista, parnasiano e pré-modernista, era na realidade um poeta solitário que pouco se via no contexto de qualquer corrente literária. Assim como muitos outros artistas, sofria com o anacronismo em relação às suas obras, poemas que fundamentados num tipo peculiar de panteísmo místico já externavam uma conexão entre o homem e a natureza, algo pouco compreendido até o seu falecimento precoce, aos 30 anos. Embora não haja registros sobre os hábitos alimentares de Augusto dos Anjos, não há dúvidas de que ele foi um dos primeiros escritores brasileiros a abordar a consciência vegetariana em suas obras. Ou seja, foi muito além da escatologia, da consciência da morte enquanto tema.
Sofredor é o termo coloquial que melhor define a essência do poeta paraibano que raramente se via livre da cefaleia e do desconforto existencial. Dotado de exímia sensibilidade, Augusto dos Anjos cristalizava suas insatisfações, anseios e observações com a mesma angústia do simbolista francês Arthur Rimbaud. E talvez esse fosse o maior indicativo de que ele era humano, demasiado humano, como no conceito criado e publicado por Nietzsche em 1878.
Educado em casa pelo próprio pai, um profícuo homem das letras, Augusto se identificou na infância com a linguagem das ciências naturais, o que o motivou a criar seus primeiros sonetos aos sete anos. “Desde a mais tenra idade me entreguei exclusivamente aos estudos, relegando por completo tudo quando concerne ao desenvolvimento, numa atmosfera de rigorosíssima moralidade, da chamada vida física”, disse o poeta em entrevista concedida a Licinio Santos em 1912 e publicada no livro A Loucura dos Intelectuais em 1914.
E o rigor moral realmente acompanhou o escritor ao longo de toda a sua vida. A maior prova são seus poemas publicados na obra póstuma Eu e Outras Poesias, lançada por iniciativa da Imprensa Oficial do Estado da Paraíba em 1920. No livro, sua consciência da relação dissonante da humanidade com a natureza é apresentada de forma ácida e veemente. Em À Mesa, a mórbida ironia revela a leviandade e a consciente cumplicidade humana no ato de se alimentar de animais:
Cedo à sofreguidão do estômago. É a hora
De comer. Coisa hedionda! Corro. E agora,
Antegozando a ensanguentada presa,
Rodeado pelas moscas repugnantes,
Para comer meus próprios semelhantes
Eis-me sentado à mesa!
Como porções de carne morta… Ai! Como
Os que, como eu, têm carne, com este assomo
Que a espécie humana em comer carne tem!…
Como! E pois que a razão me não reprime,
Possa a terra vingar-se do meu crime
Comendo-me também.
No bucólico Engenho do Pau D’Arco, em Sapé, sua cidade natal, Augusto dos Anjos chegou a conduzir sessões de mediunidade. Ainda assim, ele jamais se viu como um religioso. Muito pelo contrário. Suas obras sempre abordaram de forma satírica as mais pertinentes contradições que permeiam o cristianismo. No entanto, isso nunca o impediu de se identificar com o panteísmo, assim como o célebre e também incompreendido poeta inglês William Blake.
Quem sabe o escritor paraibano tenha sido atraído pelo fato de que a doutrina se baseia no reconhecimento de Deus em tudo que compõe a natureza. E a partir dessa influência, Augusto fez cabais associações entre a tradição mística do ocidente, o cientificismo que o acompanhou por toda a vida e a cultura oriental fundamentada em religiões védicas da Índia. Esse hibridismo e a constante busca pela sabedoria provavelmente tinham relação com a sua ânsia por entender o mundo, os seres humanos e sua relação com todas as formas de vida.
Exemplos de sua aspiração transcendental são os poemas O Meu Nirvana e Budismo Moderno, publicados no livro Eu, de 1912. Extremamente sensível, Augusto dos Anjos se empenhou em encontrar em fontes orientais um amenizador para a inquietude que o atormentava. “Sinto uma série indescritível de fenômenos nervosos, acompanhados muitas vezes de uma vontade de chorar”, confidenciou em entrevista a Licinio Santos. E foi essa emotividade à flor da pele que o motivou a escrever A Um Carneiro Morto, de 1909, que fala da desproporcionalidade entre a empatia animal e a truculência humana.
Quando a faca rangeu no teu pescoço,
Ao monstro que espremeu teu sangue grosso
Teus olhos — fontes de perdão — perdoaram!
Oh! tu que no Perdão eu simbolizo,
Se fosses Deus, no Dia de Juízo,
Talvez perdoasses os que te mataram!
Alimentado com leite de escrava na infância, Augusto dos Anjos não se orgulhava de sua herança fundamentada no patriarcalismo rural. Cresceu desinteressado pela socialização, o que lhe garantiu o apelido de “O homem ausente”. Importantes nomes da literatura brasileira, como Orris Soares e José Américo de Almeida, o descreviam como um sujeito de tez pálida e morena, mais alto do que baixo, franzino e recurvo, de fronte alongada e grandes olhos sem mobilidade. Suas mãos eram moles e denunciavam timidez. Andava como se estivesse sempre na ponta dos pés, e de longe sua magreza excessiva chamava atenção pelo aspecto insalubre. E nada disso parecia-lhe relevante, talvez até insignificante, já que para além do trabalho ele vivia imerso em si mesmo e na própria poesia. Em A Obsessão do Sangue, Augusto dos Anjos discorre sobre a barbárie consentida entre o açougueiro e o consumidor que se excita diante da carne a ser servida.
Levantou-se. E, eis que viu, antes do almoço,
Na mão dos açougueiros, a escorrer
Fita rubra de sangue muito grosso,
A carne que ele havia de comer!
No inferno da visão alucinada,
Viu montanhas de sangue enchendo a estrada,
Viu vísceras vermelhas pelo chão…
E amou, com um berro bárbaro de gozo,
O monocromatismo monstruoso
Daquela universal vermelhidão!
Graduado em direito, o poeta jamais atuou como advogado. Preferiu o magistério e se tornou professor no Liceu Paraibano. Se casou em 1910 e logo se mudou para o Rio de Janeiro, onde lecionou na Escola Normal e Ginásio Nacional. O salário era tão modesto que ele mal conseguia sustentar a família. Ainda assim, prosseguia escrevendo, dando vazão à sua vocação. No poema Monólogo de Uma Sobra, Augusto dos Anjos reafirma sua crença na relação entre a solidariedade, o cosmo e o misticismo. Em um excerto, ele escreveu:
E o animal inferior que urra nos bosques
É com certeza meu irmão mais velho!
Depois de quatro anos, e atendendo à recomendação médica, o poeta migrou para Leopoldina, em Minas Gerais, com a esposa Ester Fialho e os dois filhos. Lá, ele exerceu o cargo de diretor do Grupo Escolar até que faleceu em 12 de novembro de 1914 em decorrência de pneumonia.
Na área em que estou, ao matinal assomo,
Passa um rebanho de carneiros dóceis…
E o Sol arranca as minhas crenças como
Boucher de Perthes arrancava fósseis,
Escreveu Augusto dos Anjos em Estrofes Sentidas, poema que na minha opinião sintetiza sua empatia por todos os seres vivos, mesmo diante da própria finitude extemporânea.
Saiba Mais
Augusto dos Anjos nasceu em 20 de abril de 1884 em Engenho do Pau D’Arco, em Sapé, na Paraíba.
Eu, seu único livro de poesia publicado em vida, foi lançado no Rio de Janeiro em 1912.
Os escritores preferidos do poeta eram William Shakespeare e Edgar Allan Poe.
Referências
Dos Anjos, Augusto. Eu e Outras Poesias. Bertrand SP (2001).
Santos, Licinio. A Loucura dos Intelectuais (1914).
Figueiredo, José Maria Pinto. A invenção do Expressionismo em Augusto dos Anjos. Universidade Federal do Amazonas (2012).
Paes, José Paulo. Augusto dos Anjos ou o evolucionismo às avessas. Novos Estudos (2008).
Viana, Chico. Autobiografia e lirismo em Augusto dos Anjos (2007). Disponível em chicoviana.com.
Erickson, Sandra, S. F. Augusto dos Anjos: Budismo Moderno. XVII Anais: Semana de Humanidades. UFRN (2010). Disponível em http://www.cchla.ufrn.br/shXVIII/artigos/G T05/Sandra%20S.F.%20Erickson.pdf.
Nóbrega, Humberto. Augusto dos Anjos e sua época. João Pessoa, Edição da Universidade da Paraíba (1962).
Sabino, Márcia Peters. A questão da religiosidade em Augusto dos Anjos. Disponível em http://www.seer.ufu.br/index.php/letraseletras/article/viewFile/25201/14017.
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