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Escritores carregam um mundo sem fronteiras
Não é incomum eu me deparar com pessoas criticando quem lê mais literatura estrangeira do que brasileira. Até entendo que é uma forma de valorizar autores brasileiros, mas por outro lado há sempre um discurso desconcertado da realidade. Penso, por questões até óbvias, que a literatura brasileira não se fez sozinha. Machado de Assis era fã do romancista espanhol Miguel de Cervantes, assim como Augusto dos Anjos reconheceu o princípio da própria identidade poética no simbolismo francês de Baudelaire e Rimbaud – dois nomes que inclusive estão entre os mais influentes da poesia brasileira desde o século 19.
Leiam “São Bernardo”, de Graciliano Ramos, e percebam quantas referências podem ser encontradas à “Eugenia Grandet”, do francês Honoré de Balzac, que curiosamente também foi um dos escritores estrangeiros que mais influenciou a literatura russa, mas principalmente Dostoiévski. Literatura é um exercício de hibridismo e a partir dele reconhecemos ou não as influências do autor, de acordo com nossa bagagem cultural. Acredito que os bons escritores carregam um mundo sem fronteiras geográficas. Ele é cosmopolita mesmo quando não quer ser.
E, claro, a literatura brasileira contemporânea é essencial como meio de compreensão da nossa realidade. Aí não há como discordar, porém, na minha opinião, não é irrelevante conhecer os clássicos estrangeiros, mesmo depois de tanto tempo, e não apenas para entender a nossa literatura da atualidade, mas o mundo, a humanidade e sua relação com a vida. Ademais, acredito que seja sempre imprescindível evitar o ufanismo para não cairmos em contradição. Independente de origem, o mais importante são as dúvidas e as reflexões que um livro consegue despertar.
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Os marginais da colonização
“Éramos assim, vagabundos e marginais aos olhos de um mundo já corrompido pela ganância”
Toninho, Beto e Maneco são três personagens desconhecidos da história de Paranavaí. Jovens na década de 1940, seguiam na contramão da maioria da população. Sentiam prazer em não ter propósitos comuns, apenas viviam o presente. Distantes da ambição que atraía tantos migrantes e imigrantes a Paranavaí, vagavam como marginais, curtindo a vida à sua maneira.
Depois de menos de um ano em Londrina, Toninho, Beto e Maneco decidiram partir para o Noroeste do Paraná, destino que na concepção dos três tinha tudo para garantir muita diversão. “Éramos solteiros e ouvíamos falar muito do Norte Novíssimo do Paraná. Diziam que era um lugar muito diferente. Ficamos curiosos e pensamos em ver isso de perto”, explica Beto.
Na manhã fria de 29 de julho de 1946, desembarcaram do pavão no Ponto Azul em Paranavaí. Carregando sacos de estopa com poucas peças de roupa, os três se conheceram em Londrina enquanto aguardavam o ônibus. “Ficamos rindo quando vimos que os nossos sacos eram iguais”, explica Toninho que deixou a família em Paranaguá para conhecer Londrina. Beto e Maneco fizeram o mesmo. Um saiu de Santos e o outro de Joinville.
Quando colocaram os pés no chão de terra batida, um garoto de 12 anos, conhecido como Amendoim, se aproximou e, assim que viu uma velha cigarreira despontando do bolso da camisa branca de Maneco, gritou: “Ô senhor, me dá um desse aí!” O rapaz então acendeu um Lincoln com um leve riscar de palito velado sob o dedo. Disse que o cigarro seria de Amendoim se conseguisse segurá-lo pela ponta do filtro durante um arremesso. Habilidoso, o garoto o pegou no ar sem queimar os dedos. Depois ajeitou a boina parda surrada, agradeceu, colocou o cigarro na boca e seguiu o trio.
No mesmo dia alugaram uma casa perto da entrada da Vila Operária, na região que ficaria conhecida na década de 1950 como Zona do Baixo Meretrício, um reduto de bordéis onde a agitação começava quando o restante da cidade se silenciava. “Era uma casinha, coisa simples, só pra gente ter um lugar pra ver a vida passar sem pressa”, comenta Toninho.
Em pouco tempo, Beto teve a ideia de fabricar rapé artesanal no fundo de casa. O desejo surgiu meses antes, quando leu o romance “Eugênia Grandet”, do francês Honoré de Balzac, e o conto “O Bote de Rapé”, de Machado de Assis. No início buscava parte da matéria-prima em Londrina. Misturava as folhas de tabaco com as cinzas das cascas de árvores que selecionava em Paranavaí e processava tudo em um moedor caseiro. “A gente inalava uma vez por dia usando o polegar e o dedo indicador. Era como uma liturgia de purificação. Chegava a ficar com as unhas encardidas”, confidencia Beto rindo e mostrando com a mão direita como se consumia.
Ocasionalmente os três se juntavam aos peões que atuavam na derrubada de mata, mas só até reunirem uma boa quantidade de cascas para o preparo do rapé. A verdade é que não gostavam de trabalhar. Encaravam como forma de aprisionamento todo serviço que impusesse ao ser humano uma rotina que não permitisse o autoconhecimento, a visão periférica do mundo e a fluência da vida. “Éramos assim, vagabundos e marginais aos olhos de um mundo já corrompido pela ganância. E de fato nos víamos como marginais, o que nunca foi ofensa pra nós”, declara Maneco.
Ao longo de duas semanas de trabalho na mata, testemunharam cinco pessoas com intensos calafrios e pele amarelada, vítimas de malária. Para evitar despesas ao ter de percorrer mais de 50 quilômetros de carreador até o hospital, e seguindo recomendação do patrão, o fiscal preferiu ignorar a situação dos enfermos e ameaçou atirar em quem parasse o serviço para tentar ajudá-los. Dois não resistiram à doença e morreram lá mesmo, agonizando silenciosamente, com seus corpos encharcados de suor. Preocupado com o mau cheiro, o homem obrigou seis peões a enterrarem os mortos – dois rapazes de 18 e 19 anos.
As valas improvisadas foram forradas com galhos e folhas. Quando cobriram as covas com terra, Toninho pediu autorização ao fiscal para dizer algumas palavras em memória dos falecidos. O sujeito não aceitou, bateu o chapéu contra a perna e ordenou que continuassem o serviço. “Já morreu, não significa mais nada. O que vale é nóis que tamo vivo”, justificou o fiscal enquanto talhava com um facão um naco de carne seca. Depois daquele dia nenhum dos três atuou como peão. Porém, jamais esqueceram a expressão de desilusão nos olhos de tantos homens que trabalhavam até 16 horas por dia ajudando a desmatar a região.
Em casa, transformaram o ambiente em um lugar que deram o nome de “La Mancha” em homenagem ao eterno Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Passavam boa parte do tempo lendo, escrevendo, cantando, criando invenções, dançando e consumindo absinto, rapé, ópio, chá de ayahuasca e soltierra, uma bebida à base de raízes e flores silvestres. “Acredito que foi a primeira bebida inventada no Noroeste do Paraná. Só que consumíamos apenas entre nós. Ela ajudava a restabelecer o equilíbrio entre os sentidos”, confidencia Beto que comprava papoula sonífera de um turco conhecido como Symancora Katifoi que conheceu em São Paulo em 1945 por intermédio de um primo.
No interior da La Mancha, uma casa ordinária por fora e extraordinária por dentro, havia o mínimo possível de móveis, quase tudo criado ou lapidado pelos três amigos. As paredes internas eram adornadas por trepadeiras que cresciam livremente. Até frutas como melancia de cipó, melãozinho do mato, maracujá, uva e fava de arara brotavam dos ramos nas paredes. “Todos puderam se servir delas, tirando direto da natureza”, rememora Maneco. O clima no local era tão ameno que nem as mais severas ondas de calor alteravam o frescor dentro da casa.
No entanto a solitude dos três não durou tanto quanto imaginavam. Em outubro de 1946, duas jovens que trabalhavam em um prostíbulo a 150 metros da La Mancha estavam caminhando quando sentiram um aroma acre e adocicado. Curiosas, se aproximaram e bateram palmas. Toninho, Beto e Maneco, que nunca tinham recebido visita em meses, a não ser do garoto Amendoim, se surpreenderam com o desembaraço das moças. Ao mesmo tempo ficaram receosos. “O que vocês tão preparando aí? É de beber?”, questionou uma loira chamada Lara. Toninho respondeu que era um chá para cefaleia. A moça então insistiu que gostaria de experimentá-lo e acabaram cedendo.
As duas entraram e todos foram para o primeiro cômodo da casa, uma saleta separada das outras dependências por uma longa cortina verde. A conversa se estendeu por pelo menos duas horas e os três relataram que eram estudantes tirando um ano sabático para repensarem a vida. Lara também deu detalhes de sua história. Teve uma briga séria com os pais e deixou Prudentópolis, no Sudeste do Paraná, para conhecer Paranavaí, onde uma amiga já trabalhava em um bordel.
Após a despedida, pediu que as deixassem retornar. Sem noção das intenções da moça, concordaram, só que não velaram a resistência. Ainda assim, Toninho, Beto e Maneco receberam mais de 50 pessoas na casa antes do Natal de 1946. A maior parte chegava através do vínculo de confiança que o trio criou com Lara. Para entrarem no local, era preciso dizer uma senha – Papilio Innocentia, uma referência à obra poética homônima do paranaense Emiliano Perneta.
Os frequentadores da La Mancha eram pessoas simples, personagens anônimos da história de Paranavaí, mas principalmente damas da noite e peões que enxergavam um paraíso na modesta casinha de tábuas escuras – um espaço peculiar onde podiam extravasar anseios, emoções reprimidas e buscar ajuda.
“Alguns começaram a nos ver como curandeiros. Claro que nunca nos vimos assim, só que para não decepcionar aquela gente atendemos cada um. À nossa porta vinham desde vítimas de acidentes de trabalho até pessoas com sífilis e gonorreia. Outros queriam auxílio espiritual. Deu pra ajudar um pouquinho”, enfatiza Beto que admite ter usado substâncias alucinógenas na composição de diversos medicamentos caseiros. Em vez de cobrar pela ajuda, o trio deixava uma cumbuca sobre a mesinha na saleta. Assim cada um contribuía da forma que pudesse ou quisesse.
No dia 26 de julho de 1947, um sábado, Toninho, Beto e Maneco prepararam uma festa para 20 pessoas. Amendoim, Lara e quatro amigas estavam entre os presentes. A comemoração na La Mancha começou por volta das 18h e se estendeu até as 23h. “Uma celebração tranquila, com cantoria, gaita, boa conversa, troca de confidências, muitas bebidas e outras coisinhas mais”, pontua Toninho com um sorriso acintoso.
Antes do fim da noite o trio revelou aos convidados que a festa era uma despedida. Tinham acertado tudo para partir na segunda-feira pela manhã. A notícia desapontou os muitos miseráveis que viam a La Mancha como refúgio e os três jovens como parte importante de suas vidas. Lara e Amendoim não conseguiram esconder as lágrimas que escorriam como chuva de verão. “Se acalmem! Não é o fim do mundo. Um dia vamos nos encontrar e também podemos nos corresponder”, anunciou Maneco com voz indolente enquanto vertia uma sobra de absinto do fundo de um cálice de barro.
A festa acabou cedo porque no dia seguinte os três acordariam às 3h. Em meio à escuridão serena, ouviram o som de um jipe Land Rover encostando em frente ao casebre. Era João José, um senhor de quem alugaram o veículo por dois dias, assumindo o compromisso de mais tarde deixá-lo atrás de uma tulha em uma propriedade rural na entrada de Maringá, onde o proprietário do jipe poderia buscá-lo.
Toninho, Beto e Maneco aproveitaram a ausência de brisa e o calor matutino que principiava breve estiagem. Como o silêncio da natureza os privilegiava, atearam fogo em tulhas e cafezais de cinco propriedades rurais de alguns dos homens mais ricos da região. Um era o responsável por contratar o sujeito que deixou os dois jovens peões morrerem à míngua, de malária, no seio da mata. Quando o fogo começava a se alastrar, saltavam sobre o jipe e partiam sem qualquer remorso.
Entre as lavouras destruídas estava a de um fazendeiro ciumento que feriu várias partes do corpo de Lara com um punhal, na tentativa de assassiná-la. Em uma noite da semana anterior o homem berrou e exigiu que a jovem não atendesse mais nenhum outro cliente. Ela não aceitou. Ensandecido, só foi contido graças à intervenção do Capitão Telmo Ribeiro que tomou a arma da mão do sujeito, o agarrou pelo pescoço e deu-lhe um vigoroso soco no estômago.
No final da tarde de terça visitaram a residência do fiscal a quem culpam até hoje pela morte dos peões vitimados pela maleita. Pensaram em atear fogo em sua casa. Mudaram de ideia quando viram três crianças brincando no quintal descampado e sem cerca. Ao lado, uma jovem mãe esfregava fervorosamente a calça bege do marido em um tanque improvisado. “Vamos largar esse pra lá. A vida se encarrega de fazer justiça. O que é dele tá guardado”, sugeriu Maneco. Toninho e Beto concordaram.
À noite, por volta das 21h, receberam a confirmação de que os estragos nas lavouras e tulhas eram enormes e ainda inestimáveis. Recolheram os pertences e anteciparam a partida. Estavam entrando no jipe quando ouviram a suplicante voz de Lara. Segurando uma malinha amarelada, a moça pediu para deixá-la partir com eles. Hesitaram um pouco, mas, como se tornara tradição, cederam ao pedido da jovem.
Paranavaí parecia mais serena do que nunca. A população dormia enquanto o jipe atravessava as ruas de terra da cidade, deixando pequenas cortinas de poeira clara que cobriam com sutileza os cães deitados próximos das soleiras das casinhas de tábuas. “Foi um sonho intenso. Vivemos em Paranavaí algumas das maiores dores e alegrias de nossas vidas. Agradeço por estarmos vivos, por ter a chance de contar pela primeira vez com detalhes a fase mais emocionante da nossa história. Talvez amanhã não estejamos mais aqui, então cabe a você compartilhar com outras pessoas”, aconselha Toninho, aos 89 anos, com a voz embargada e um olhar úmido e cristalino.
Saiba Mais
Toninho e Beto tinham 20 anos quando chegaram a Paranavaí. Maneco, o mais jovem, estava com 19, assim como Lara.
Os três amigos moram em Curitiba e mantêm contato frequente até hoje. Toninho é médico veterinário aposentado. Beto também se aposentou, mas como engenheiro florestal. Maneco continua trabalhando como artista plástico e escritor.
O trio retornou a Paranavaí a passeio somente 32 anos após a partida.
Lara se casou com Toninho em 1949. Viveram juntos até 1995, quando ela faleceu em decorrência de um câncer de mama.
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