David Arioch – Jornalismo Cultural

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Cientistas reconhecem que animais se comunicam de forma semelhante à humana

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Não são apenas os seres humanos que consideram rude as interrupções durante uma conversa

Descoberta revela não apenas a capacidade não humana de definições de comportamento social, como também inteligência (Foto: Reprodução)

Cientistas do Reino Unido e da Alemanha publicaram este mês na revista científica da “The Royal Society” um artigo intitulado “Taking turns: bridging the gap between human and animal communication”, em que reconhecem que os animais se comunicam de forma semelhante à humana.

De acordo com os cientistas Simone Pika, Ray Wilkinson, Kobin H. Hendrick e Sonja C. Vernes, animais não humanos, embora partilhem de um diferente código comunicativo em relação aos humanos, também costumam considerar a importância de “um ouvir enquanto o outro fala”. O que revela não apenas a capacidade não humana de definições de comportamento social, como também inteligência – o que não é limitado a poucas espécies. O artigo afirma que isso pode ser encontrado em todo o reino animal.

Durante muito tempo, acreditou-se que a pausa para ouvir enquanto o outro fala fosse uma característica estritamente humana, inclusive nos diferenciando dos primatas. O que, sobretudo, não é verdade, segundo os cientistas. Até mesmo animais como rato-toupeira reconhecem que a comunicação depende de turnos de emissões de sons – ou seja, é importante o silêncio de um dos interlocutores enquanto o outro se comunica.

Os autores do estudo afirmam que o “timing” é uma característica fundamental nos turnos de comunicação de animais humanos e não humanos. Mas o tempo de espera pode variar de espécie para espécie. Algumas aves, por exemplo, são conhecidas como “tagarelas” e “impacientes”, então não aguardam mais do que 50 milissegundos para “falarem” durante uma conversa. Já os cachalotes estão entre os animais mais pacientes porque, em resposta a um diálogo, normalmente “falam” dois segundos depois.

O artigo publicado pela The Royal Society deixa claro que não são apenas os seres humanos que consideram rude as interrupções durante uma conversa. Chapins e estorninhos europeus dão tanta importância ao “timing” em uma conversa que foram identificados como espécies que “treinam” para evitar a sobreposição durante a comunicação:

“Se ocorrer sobreposição, os indivíduos ficam em silêncio ou fogem, sugerindo que a sobreposição pode ser tratada, nessa espécie, como uma violação das regras socialmente aceitas de tomada de turnos”, informa o estudo “Taking turns: bridging the gap between human and animal communication”.

Os pesquisadores reconhecem que a falta de dados e de comunicação entre cientistas dificultou que estudos como esse fossem viabilizados anteriormente, já que o último trabalho nessa linha foi feito há 50 anos. Agora, Simone, Wilkinson, Hendrick e Sonja, que são especialistas em linguagem humana e animal, estão planejando traçar a história evolutiva da tomada de turnos durante a comunicação, o que pode permitir um novo entendimento das origens da linguagem, um território em que ainda há muito a ser explorado.

Referências

Pika, Simone; Wilkinson, Ray; Kendrick, H. Kobin; Vernes, C. Sonja. Taking turns: bridging the gap between human and animal communication. Proceedings of the Royal Society B – Biological Sciences. The Royal Society Publishing (6 de junho de 2018). 

Gabbattis, Josh. Animals are always talking to each other, scientific review finds. The Independent (6 de junho de 2018).

 

 

 

 





Written by David Arioch

June 20th, 2018 at 12:27 pm

Imagine um mundo onde não déssemos a mínima para coisas

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Ron English – Super Supper, 2010

Imagine um mundo onde as pessoas não dessem a mínima para coisas, ou pelo menos não as exaltassem em demasia ou atribuíssem valor acima da vida, porque coisas são basicamente o que são – em muitos casos, produtos aos quais atribuímos mais valor pelo que nos custam, pela exceção, pelo distanciamento que existe entre elas e os outros, do que pelo que são em um sentido funcional ou mesmo hedonista.

A ausência de distinção baseada no poder econômico ou no “acúmulo de coisas que não são acessíveis para uma maioria” possivelmente exigiria um esforço intelectual para se destacar, levando em conta que platitudes como “o que eu tenho que você não tem” não chamaria mais a atenção, e simplesmente porque o ter, materialmente, talvez fosse relegado à insignificância, ou pelo menos à adiáfora.

E neste contexto o ser precisaria estar em constante evolução, ao contrário do ter, que não exige evolução moral de ninguém, caso a pessoa não queira. Prova disso são pessoas que nascem em um ambiente de grande poder econômico, e de repente, optam por não fazer nada no decorrer da vida a não ser gastar dinheiro para ocupar o tempo, desconsiderando todo o resto.

Há também pessoas com muito dinheiro que tendem a considerar seus chamados esforços, envolvam eles atividades ilícitas ou não, desrespeito ou não à vida e a dignidade humana e não humana, como sendo únicos, singulares, e por isso devem ser recompensados de forma dissemelhante, mesmo que isso signifique uma diferença do tipo: “O que você jamais ganhará a vida toda eu ganho em uma semana”. “Eu fiz o que você não seria capaz de fazer. Por isso estou onde deveria estar, onde não é o seu lugar.”

“Porque o meu esforço é muito maior que o seu, sou muito mais inteligente que você, então mereço, de fato, ganhar muito mais que você; e a você resta me servir, mesmo que para isso tenhamos que criar um simulacro de evolução para evitar que você ache que sua vida não está melhorando.” Em síntese, uma sutil estagnação oscilante. “Afinal, porque isso é o que cabe à sua limitada competência que está sempre longe de se igualar à minha”, diriam.

Muitas das mazelas que existem no mundo estão intrinsecamente relacionadas ao fato de que muitos daqueles que têm poder encaram sua força e distinção econômica como uma forma de certidão de superioridade, e o mundo diz que eles estão certos, por mais que leis que não valem na prática tentem informar o contrário. Porque leis são fundamentadas na plasticidade. Existem mais para parecer do que para ser.

Infelizmente, até mesmo entre os mais miseráveis há aqueles que não gostariam de um mundo justo, de igualdade; logo jamais lutariam por isso se desejam ocupar a posição daqueles que “estão no topo”, sejam eles criminosos ou não. Claro, porque a sua inexistência é uma consequência natural do que você não possui, segundo a perspectiva comum. Então perpetua-se a crença de que existirei à medida do que terei.




Written by David Arioch

April 22nd, 2018 at 8:53 pm

O veganismo como evolução do vegetarianismo ético

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O veganismo ao longo da história vem se se desenvolvendo de forma a ampliar cada vez mais o seu escopo em relação à rejeição à exploração animal. Se levarmos em conta que o veganismo é uma evolução do vegetarianismo ético, é natural que o caminho seja preterir cada vez mais a exploração, e não o contrário. O ser humano que chega a um ponto em que já não reconhece nada de origem animal como essencial à vida humana, nem os animais como posse, não tem por que fazer o caminho reverso. Afinal, não seria tolice dizer que isso poderia ser um regresso ou um propiciador de riscos.

Há uma quantidade razoável de material literário disponível para as pessoas refletirem e discutirem sobre o veganismo e os direitos animais, inclusive partindo de outras esferas. Esse seria um bom caminho a ser trilhado. Até porque é um meio interessante para reconhecermos onde estamos errando e acertando, caso não tenhamos boas e sólidas referências em relação a determinados assuntos, sejam mais específicos ou não nesse contexto.

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September 10th, 2017 at 1:25 am

Um acumulador de versões

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Evolution, de Nancy Wait

Sou um acumulador de versões. Então é natural que eu não seja a mesma pessoa do ano passado, do mês passado, da semana passada ou até mesmo de ontem. Temos uma tendência a achar que pessoas que mudam são basicamente pessoas volúveis. Sim, podem ser, mas se for para o bem delas, seu crescimento, prefiro chamar isso de evolução.

Pessoas que escrevem, por exemplo, são pessoas curiosas, interminavelmente curiosas, eu diria. Então é natural que não passem a vida toda escrevendo sobre as mesmas coisas ou abordando sempre os mesmos assuntos. Escrever é desbravar-se primeiro para então desbravar aquilo que está diante dos seus olhos e reverberando em sua mente.

Ademais, escrita, na minha opinião, trata-se de fidelidade. Ser fiel a si mesmo, seja no campo ficcional ou não. Quem não é fiel a si mesmo dificilmente faz um bom trabalho nesse sentido.

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Written by David Arioch

April 23rd, 2017 at 8:15 pm

Médico e pesquisador discorda da afirmação de que o ser humano não teria evoluído sem o consumo de carne

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“O problema da teoria da dieta paleo é que no passado não existiu especificamente uma dieta paleo”

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Shivam Joshi afirma que há mitos sobre o ser humano da era paleolítica

Quando se fala em consumo de carne, os defensores sempre alegam que o ser humano jamais teria evoluído se não fosse pela ingestão de carne. Alguns dizem inclusive que nossas capacidades neurológicas não seriam as mesmas sem esse hábito de nossos antepassados. Porém, há quem discorde e se empenhe em provar como essa linha de raciocínio é equivocada.

Um exemplo é o médico estadunidense e pesquisador Shivam Joshi, doutor em nefrologia, que está escrevendo um livro sobre os efeitos do consumo de carne na saúde humana e sua associação com pressão alta, doenças cardíacas, câncer, diabetes e acidente vascular cerebral (AVC).

Na obra, ele aborda também importantes aspectos da evolução humana, entre os quais o possível equívoco de quem acredita que jamais teríamos evoluído sem o consumo de carne. “Durante a evolução, humanos e seus ancestrais comeram carne, e algumas pessoas têm usado esse precedente histórico como evidência para legitimar o consumo de carne. A ideia tem sido popularizada em muitas dietas baseadas em gorduras, incluindo a notável dieta paleo”, conta.

E defensores dessas dietas costumam alegar que como os nossos ancestrais paleolíticos tinham um estilo de vida natural, isso significa que deveríamos seguir seu exemplo, já que comer carne era uma prática usual no período paleolítico. “Desde que comemos carne, devemos comer carne, segundo eles”, declara Joshi.

Porém, há lacunas nesse tipo de teoria que tenta simplificar a realidade humana da época ao defender que estamos apenas fazendo algo lógico ao seguir os supostos passos de nossos ancestrais. Para o médico, o primeiro problema da teoria da dieta paleo é que no passado não existiu especificamente uma dieta paleo.

“Como nossos predecessores deixaram a África, eles provavelmente encontraram diferentes climas e terrenos, cada um oferecendo recursos diferentes para os homininos [subtribo de primatas que teve os humanos como únicos sobreviventes] durante a evolução”, enfatiza o médico.

Joshi se baseia no fato de que antropólogos descobriram que havia os mais diferentes tipos de dietas no período paleolítico, e a carne foi introduzida em parte dessas dietas, sem que fosse encarada como essencial ou mesmo um modelo a ser seguido.

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“Qualquer um sacrificaria sua saúde em longo prazo para sobreviver em um cenário desse tipo” (Arte: Reprodução)

“Alguns podem ter consumido carne, enquanto outros consumiram frutas, tubérculos. Os homininos mais evoluídos comiam o que estivesse disponível. Comer para sobreviver é diferente de jantar pensando em saúde em longo prazo. A diferença pode ser percebida quando arriscamos a saúde em longo prazo em benefício da saúde em curto prazo”, analisa.

Para ilustrar a ideia de que o ser humano não consumia carne por opção ou prazer, Joshi conta uma história hipotética em que alguém é mantido preso dentro de uma loja de doces, sem possibilidade de fuga. Nesse caso, a pessoa seria obrigada a aceitar suas reduzidas opções para sobreviver.

“Se a sua sobrevivência dependesse disso, e assumindo que não havia mais nada para comer, você comeria doces, apesar de todo o açúcar que pode aumentar o risco de diabetes. Qualquer um sacrificaria sua saúde em longo prazo para sobreviver em um cenário desse tipo”, pondera.

O ser humano foi obrigado a se adaptar à sua realidade, levando em conta mudanças nos padrões climáticos e biomas, especialmente quando deixou a África, observa Shivam Joshi. “Fontes de alimentos teriam mudado e forçado os homininos a comer o que encontravam pela frente. Em algumas situações, teria sido carne. Em outras, grãos ou tubérculos. Claro, nossos ancestrais não tinham ideia de quais efeitos essa alimentação teria em longo prazo”, frisa.

A única necessidade humana da época era a sobrevivência; fazer o que está ao seu alcance para evitar a fome – o que poderia se tornar um grande problema dependendo do surgimento de doenças, exploração indiscriminada de uma área e até mesmo mudança de clima.

“Encontrar alimentos não era fácil como agora. Se eles tivessem encontrado doces na savana, teriam consumido também. A falta de dependência de qualquer comida específica é provavelmente a razão pela qual não há adaptações específicas a nenhum desses alimentos, incluindo a carne”, pontua o pesquisador, lembrando que os seres humanos vêm de uma linhagem de 40 milhões de anos.

De acordo com Joshi, quando comparamos o nosso trato digestivo com o dos chimpanzés, encontramos similaridades que jamais teremos com animais naturalmente carnívoros, como tigres. A morfologia dental e intestinal dos seres humanos assemelha-se mais a dos primatas do que dos grandes felinos, o que é uma razão pela qual o médico crê que o consumo de carne pode não fazer bem aos seres humanos.

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“Os seres humanos têm herbívoros como ancestrais” (Foto: Arquivo Pessoal)

Uma questão preocupante hoje em dia, de acordo com Shivam Joshi, é que muitas dietas que preconizam o consumo de carne o colocam como uma tábua de salvação para pessoas que já sofrem de problemas de saúde ou buscam resultados estéticos. “Se um organismo faz algo fora do comum, podemos encontrar consequências perigosas desse comportamento”, comenta.

Referências

http://www.huffingtonpost.com/entry/evolved-to-eat-meat-maybe-not_us_58bc7e4be4b02eac8876d020





Written by David Arioch

March 15th, 2017 at 3:47 pm

As transformações da Vila Alta

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Era um abandono total e você pode não concordar, mas acredito que o nosso trabalho tem parte nisso

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Tio Lú: “Com a sua ajuda, quero continuar sonhando mais pelos outros do que por mim” (Foto: David Arioch)

Fiquei feliz e emocionado hoje quando visitei o artista plástico Luiz Carlos Prates de Lima, o Tio Lú, idealizador da Oficina do Tio Lú, na periferia de Paranavaí. Durante um tranquilo bate-papo, ele me relatou que a Vila Alta não é mais o mesmo bairro de três anos atrás.

“Aqui antigamente você via briga direto nas ruas, nem que fosse bate-boca e confusão por bobagem. Assassinatos ou outros tipos graves de crimes não acontecem no bairro tem muito tempo. São raros. Nem sei te dizer quando foi a última vez. E notei que até moradores agressivos estão mais tranquilos, mais civilizados, mais tolerantes. Sempre fico sabendo de novos casos de criminosos que abandonaram a vida errada. Até as crianças estão mais conscientes de certo e errado, de suas obrigações. Parece que muita gente do bairro hoje se sente mais humana, menos insignificante. É como um renascimento. Aqui era um abandono total e você pode não concordar, mas acredito que o nosso trabalho tem parte nisso. Foi só depois que você começou a frequentar o bairro, ajudando, dedicando tempo, fazendo documentários e reportagens sobre a oficina e a vida dos moradores da Vila Alta, que surgiram melhorias, que a atenção se voltou um pouco para este lugar, melhorando até a autoestima da população. Você fez a Vila Alta existir para quem nem sabia que existia periferia em Paranavaí. Claro, não somos perfeitos, a oficina tem suas falhas, mas acredito que ela também tem feito a diferença no bairro, principalmente na vida dos mais jovens. E vejo os pais e avós também reconhecendo isso, o que é muito importante. Estou perto de completar 86 anos e às vezes tenho a impressão de que estou chegando no fim da linha, mas quero persistir e ver novas mudanças. Com a sua ajuda, quero continuar sonhando mais pelos outros do que por mim. Não tenho mais ambições pessoais na vida, a não ser ajudar essa molecada.”

A Oficina do Tio Lú é um dos trabalhos mais belos que conheci e tive o privilégio de acompanhar de perto. Durante a conversa, não pude deixar de dizer como é admirável ver alguém se doar tanto aos 85 anos, ainda mais levando em conta que nessa etapa da vida o ser humano tem grande facilidade em sofrer com crises existenciais. Também acho justo dizer que não consigo enxergar meu trabalho como tão importante, mas é muito gratificante ouvir algo assim do Tio Lú, de quem me tornei amigo no início de 2009.

Paranavaí e a sociedade de “colonização bruta”

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Uma cidade que de tão heterogênea surgiu com grandes falhas sociais

Paranavaí foi colonizada pelo próprio governo paranaense (Foto: Reprodução)

Sem planejamento, Paranavaí foi colonizada pelo próprio governo paranaense (Foto: Acervo da Fundação Cultural de Paranavaí)

Não são poucos os pioneiros que afirmam que Paranavaí, no Noroeste do Paraná, é uma cidade formada a partir de uma sociedade de “colonização bruta”. Mas qual é o significado disso?Declarações como essa são justificadas por fatos envolvendo principalmente distinções culturais. Paranavaí foi colonizada pelo governo paranaense, ou seja, houve pouca participação ou abertura para a colonização de iniciativa privada ou planejada. Assim a organização precisava partir da própria comunidade.

Nos anos 1940, nos tempos da Fazenda Brasileira, Paranavaí contava com uma sociedade restrita, pouco sociável e formada pela política da conquista de novas terras. A colônia atraía todo tipo de gente porque os lotes eram baratos e, em algumas situações, até doados. “Havia a coletividade, mas sem articulação social. A maior parte das pessoas vinha pra cá com esse interesse em comum. Não socializavam quase. Assim surgiu uma sociedade com uma colonização bruta, sustentada apenas pelos mesmos objetivos econômicos”, afirma o pioneiro Ephraim Marques Machado.

Como havia povos das mais diferentes origens, por vários anos persistiu uma segregação entre os moradores. Muitos se relacionavam apenas com pessoas que vieram do mesmo estado, região ou país. “Em Paranavaí, naquele tempo, mineiro era chamado de nortista e nortista aqui era considerado ladrão para os migrantes preconceituosos. Sofri muito com isso”, lembra o pioneiro Sátiro Dias de Melo. O testemunho é endossado pelo pioneiro cearense João Mariano que viu muitos peões e colonos nordestinos serem escravizados por migrantes do Sul e Sudeste nos anos 1950 e 1960.

De acordo com Ephraim Machado, a heterogeneidade podia ser vista como um problema social, já que Paranavaí lembrava uma colônia dividida em pequenos povoados. “Os nortistas e os sulistas eram muito diferentes, então o distanciamento foi inevitável. Sem dúvida, algo que interferiu na evolução local. Paranavaí demorou para começar a se constituir como o que chamamos de sociedade nos moldes atuais”, avalia Machado.

População demorou para se articular socialmente (Foto: Toshikazu Takahashi)

População demorou para se articular socialmente (Foto: Toshikazu Takahashi)

A facilidade de acesso às terras fez Paranavaí receber muita gente diferente, não apenas migrantes que sonhavam com um pedaço de terra para construir uma moradia, plantar e assegurar o futuro da família. Aventureiros e oportunistas das mais diversas regiões do Brasil, até mesmo assassinos e ladrões, vinham para a região, crentes de que encontrariam um lugar isolado e de muitas riquezas. “O governo até fretava aviões para abandonar criminosos nas matas virgens das imediações de Paranavaí. O objetivo era não ter despesas e responsabilidades com essa gente”, diz João Mariano.

Pelo país afora, a colônia era conhecida como um local administrado pelo poder público, com pouca interferência da iniciativa privada. “Muitos gostaram daqui por isso”, declara Mariano. Já cidades colonizadas por companhias não atraíam tanta gente assim. O custo de vida não era barato e o investimento era maior em função do planejamento minucioso. E claro, também tinha mais exigências e mais burocracia. Outro diferencial é que em áreas loteadas pelo poder público havia menor participação de autoridades e maior facilidade na realização de negociações escusas.

Intimidada pelo baixo custo dos lotes da antiga Fazenda Brasileira, a Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP), conhecida por vender imóveis por preços mais altos, criou uma situação desconfortável entre as décadas de 1940 e 1950. “A companhia chegou até Nova Esperança e ali parou. Eles queriam nos isolar. Não deixavam ninguém fazer nada em Paranavaí, inclusive convenciam quem queria investir aqui de que seria um mau negócio”, lamenta Mariano.

Nos tempos de colonização, Paranavaí foi palco de muitas brigas de corretores de imóveis. “Não esqueço que em 1950, antes de me casar, eu morava no Hotel Real, na antiga Rua Espírito Santo, e ali mesmo o Cangerana assassinou um sujeito por causa de comissão de terras”, relata Machado. Os pioneiros também se recordam do episódio em que um homem matou na Avenida Paraná, no prédio do antigo Banespa, três pessoas que o enganaram em uma negociação.

Ephraim Machado: "As pessoas partilhavam apenas os mesmos interesses econômicos" (Foto: Toshikazu Takahashi)

Ephraim Machado: “As pessoas partilhavam apenas os mesmos interesses econômicos” (Foto: Toshikazu Takahashi)

“Os maiores crimes dos tempos da colonização foram provocados por causa de comissão e não disputa de terras”, ressalta Ephraim Machado, embora admita que houve muitas situações em que o capitão Telmo Ribeiro, braço direito do ex-diretor da Penitenciária do Estado do Paraná, Achilles Pimpão, e amigo do interventor federal Manoel Ribas, teve de intervir em casos de grilagem de terras. Ribeiro foi proprietário de uma fazenda que se transformou no Jardim São Jorge.

No entanto, nada se sabe sobre as implicações legais das atuações de grileiros em Paranavaí, deixando subentendido que muita gente pode ter construído fortunas sem se submeter, em qualquer momento, aos rigores da lei. “Desconheço qualquer caso de alguém de Paranavaí que foi punido por causa disso. Ainda assim, sei que encrenca maior se deu na Gleba Sutucu, Areia Branca, dos Pismel e também na Gleba 23. Teve quem foi tirado da terra à força. Juridicamente, não tenho a mínima ideia de como tudo foi feito”, comenta Machado.

O fato de Paranavaí ser tão grande até o início dos anos 1950 facilitava a grilagem de terras. À época, a colônia tinha uma vasta área que ia até as fronteiras com os estados do Mato Grosso (área do atual Mato Grosso do Sul) e São Paulo. Quem iria fiscalizar tudo isso e com quais recursos, sendo que hoje, mesmo com tantos avanços, ainda existe grilagem no Brasil?”, questiona João Mariano.

Sátiro de Melo: "Mineiro era chamado de nortista e nortista aqui era considerado ladrão para os migrantes preconceituosos" (Foto: Toshikazu Takahashi)

Sátiro de Melo: “Mineiro era chamado de nortista e nortista aqui era considerado ladrão para os migrantes preconceituosos” (Foto: Toshikazu Takahashi)

Uma transformação social imposta pela pecuária

O pioneiro Ephraim Marques Machado explica que até os anos 1960 era comum um proprietário de terras contratar meeiros para se responsabilizarem pela produção agrícola. “O camarada ia até São Paulo e Minas e falava: ‘Olha, eu tenho 200 alqueires em Paranavaí e vou produzir 100 mil pés de café. Preciso de cinco famílias e dou a ‘meia’ para plantar. Então ele dividia tudo em partes iguais e cada um cuidava de um pedaço”, exemplifica. Com isso, o bom resultado financeiro foi garantido até o surgimento das geadas. A última que castigou a região foi a de 1975.

Nas décadas de 1960 e 1970, Machado viu centenas de meeiros de Paranavaí migrarem para as regiões de Toledo, Marechal Cândido Rondon, Umuarama e Naviraí, no Mato Grosso do Sul. Outros se mudaram para o Norte. Muitas propriedades foram transformadas em pasto depois de 1964 e 1965, quando a colonização caiu bastante. “É aquela: ‘onde entra o boi sai o homem’. O café já não tinha mais tanto valor e o pasto acabou com o que sobrou”, pondera Ephraim. Quem partiu para novas frentes de trabalho trocou a lavoura de café por algodão, amendoim e arroz.

Fazendas que tinham 300 alqueires e garantiam o sustento de pelo menos 15 famílias passaram a ser ocupadas por apenas uma. Em outros casos, nem isso. “A migração modificou a sociedade local. A própria cultura da cidade passou por uma transformação”, enfatiza Ephraim Machado.  A partir da década de 1970, Paranavaí, que até então atraiu tanta mão de obra para as lavouras, chamou muita atenção de empreendedores e pecuaristas de outras cidades e estados. Eram pessoas de alto poder aquisitivo que aqui se fixaram para ocupar posição de grande status econômico e social.

Saiba Mais

Nos anos 1950, já viviam em Paranavaí, além de migrantes de todas as regiões do Brasil, portugueses, italianos, alemães, poloneses, russos, ucranianos, tchecos, iugoslavos, húngaros, espanhóis, neerlandeses, japoneses, franceses, suíços, sírios e libaneses, além de outros povos.

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