David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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Você anda falando com a minha mulher no Facebook

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Arte: Alex de Pase

— Você anda falando com a minha mulher no Facebook.
— Depende, falando o que?
— Conversando, ora.
— Imagino que se for verdade, seja uma conversa normal.
— Não é pra ter conversa normal com ela.
— Não?
— Não.
— E?
— E aí que não é pra falar com ela. Conversa de nenhum tipo.
— Senhor, converso com inúmeras pessoas diariamente. Até porque o meu trabalho é escrever. Se escrevo e publico, isso atrai pessoas, e pessoas conversam.
— Mas não com minha mulher. Não é pra falar com ela.
— Onde o senhor conseguiu o meu número?
— Isso não vem ao caso.
— Não fale com minha mulher.
— Ok.
— Tá avisado.
— Sem problema. Obrigado pela gentileza de me ligar e tenha uma boa noite.
— Não fale com minha mulher, viu?
— Uhum.

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Written by David Arioch

September 11th, 2017 at 1:20 am

Ele amou a morte da minha mãe!

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Cliquei sem querer na reação “amei” do Facebook

A mãe de um amigo faleceu. Cliquei sem querer na reação “amei” do Facebook e houve um blecaute. Não tive tempo de corrigir. Sozinho em casa, peguei o celular. Bateria descarregada, desespero, olhos fumegantes. 15 minutos depois gritaram na calçada.

— Chega aí, mano. Quero falar com você.
— E aí, irmão. Tudo bem?
— Como assim tudo bem, cara? Você amou a morte da minha mãe. Nem acreditei quando vi. O que tem de errado contigo? Te fiz alguma coisa?

Berros, palavras inintelígiveis na calçada e dedo apontado em minha direção. Vizinhos observando.

— Você é mau, cara. Você é muito mau!
— Não sou não!
— É sim! Nunca vou esquecer que você amou a morte da minha mãe.
— Nunca faria isso. Foi um equívoco. Perdão.
— Não perdoo!
— Perdoa sim!
— Perdoo não!

Sentou no meio-fio e chorou. Olhos avermelhados, boca entreaberta e cabelos desgrenhados. Alguém chamou a polícia.

— O que tá acontecendo aqui? — Perguntou o policial.
— Ele amou a morte da minha mãe!
— Não amei não.
— Como assim ele amou a morte da sua mãe?
— Ele amou! Amou! Amou! É um amante de mortes!

Olhos coçando, barba pinicando e cachorros uivando.

— Isso não é verdade. Eu soube da morte da mãe dele e sem querer cliquei em “amei” no Facebook. Quando tentei corrigir houve um blecaute.
— Isso é muito triste. Entendo a sua dor, meu amigo. Tome cuidado com isso aí, cara. Olhe como você deixou seu amigo.
— Po, como assim? Apenas fui traído pelo mouse.
— Traído pelo mouse? Vai culpar mesmo o mouse?
— É, você tem razão. Isso seria especismo.
— Quê?
— Nada não…

Caminhão de lixo passando, gatos miando e duas testemunhas de Jeová me olhando torto e panfletando.

— Quer dar queixa?
— Como assim dar queixa? Não fiz nada. E não existe queixa para esse tipo de situação. O que seria isso, uma queixa de emoticons?
— Está me gozando? É isso?
— Eu não…
— Sei…
— Quer dar queixa, amigo?
— Hum…não sei.
— Pense bem.
— Ah, deixa pra lá.
— Você que sabe.
— E, você, amigo, cuidado com esses dedos aí.

 

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Written by David Arioch

July 1st, 2017 at 8:24 pm

Do anonimato à superexposição na internet

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Éramos anônimos e o anonimato era praticamente uma bandeira para nós

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Não tínhamos nome, sobrenome, origem, cidade, estado nem mesmo um país real quando usávamos proxy internacional (Foto: Reprodução)

Sou de uma geração de anônimos na internet. E o que quero dizer com isso? Bom, quando comecei a usar a internet por volta de 1996, eu, assim como a maioria dos usuários, era um anônimo. Não tínhamos nome, sobrenome, origem, cidade, estado nem mesmo um país real quando usávamos proxy internacional. O mais importante não era aparecer, mas sim conhecer e trocar informações, ideias e alguns poucos arquivos.

Cheguei a ter contato com pessoas por anos sem jamais saber quem eram de verdade; como eram fisicamente, quantos anos possuíam, o que faziam para sobreviver, entre outras coisas, até porque, dependendo, isso pouco importava. Éramos anônimos e o anonimato era praticamente uma bandeira para nós. Fotos dos usuários eram raras. E isso não fazia muita diferença.

Em alguns aspectos, acho que existíamos mais para o conhecimento, o conteúdo, do que para as relações interpessoais. Palace, ICQ, mIRC, fóruns, usávamos o que existia na época. Acredito que éramos feitos de linhas, estilos, linguagens, narrativas e trocas de arquivos. Em salas, tópicos e janelas privadas, poderíamos conversar hoje e então nunca mais. O vínculo era possível, mas não essencial. Desrespeito, intolerância e balbúrdia eram coibidos com o mais icônico BAN.

Não havia tanta exposição. Ninguém precisava aparecer se não quisesse, nem por isso seria tachado de coisa alguma. Muito pelo contrário, era a mais comum das práticas daqueles tempos. Aos poucos esse mundo foi desaparecendo, pelo menos diante de um novo onde os usuários de internet se tornaram mais transparentes, mais vaidosos, alcançáveis e até mesmo presas de um universo ruidosamente curioso.

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Ninguém precisava aparecer se não quisesse, nem por isso seria tachado de coisa alguma (Foto: Reprodução)

Houve uma metamorfose e hoje vivemos a contramão do anonimato. Há uma superexposição como jamais imaginada nas décadas anteriores. E isso é encarado como algo natural. Muita gente parece não se importar em ter o cotidiano integralmente registrado na internet. O que faz em horários bem específicos, onde come, o que compra, o que ama, o que odeia, quando sai, com quem sai, quais ambientes frequenta.

É possível criar uma agenda de rotinas a partir das informações que as pessoas disponibilizam nas mídias sociais. Acredito que aí subsiste o perigo da superexposição, já que não conhecemos todas as pessoas que recebem essas tantas informações compartilhadas. Sim, você está sendo apenas você, porém e se ser você implica de algum modo em uma consequência negativa para si mesmo e para outros? Ainda valeria a pena?

Em mídias sociais, todos os dias me deparo com conteúdo ofensivo ou formulado de forma bastante equivocada. Não consigo deixar de pensar em como isso pode ser perigoso. Nossa opinião pode reverberar coisas que nem imaginamos dependendo da forma como elaboramos um texto.

Acredite, muitas vezes a maneira como escrevemos pode gerar interpretações inimagináveis se não formos cuidadosos com as palavras. Não é à toa que pessoas são demitidas, amizades e casamentos são desfeitos, entre outras consequências. Afinal, somos responsáveis pelo que publicamos.

Há inclusive muitos casos de ameaças, brigas e assassinatos em decorrência de discursos, opiniões ou “críticas” e críticas publicadas na internet. Então por que não tentar ser mais comedido? Até porque quanto mais ódio disseminamos, mais ódio atraímos. Não é possível conquistar sorrisos sendo avesso à pluralidade.

Na minha opinião, a ponderação deve ser a base de toda produção textual divulgada em mídia social. E faço tal afirmação porque tenho certeza que a maioria não se sente bem gerando inimizades ou perdendo a admiração de pessoas que apenas têm alguns pontos divergentes dos seus.

Não se trata de ser imparcial, até porque a imparcialidade é um mito, mas sim de tentar ser justo e ter sempre em mente que o outro não merece ser ofendido por você apenas por pensar diferente. Há que se ter o entendimento também de que mesmo quando você publica um texto obtuso ou ofensivo e se arrepende e o deleta, isso não significa que ele deixou de existir.

Assim como sabemos que não existe fora no mundo, eu acredito que o mesmo acontece no ciberespaço. Na internet, deletar não significa fazer o conteúdo desaparecer completamente. E volto a endossar que a forma como escrevemos é a porta de entrada para o conteúdo que queremos transmitir. Ser arrogante, desrespeitoso, visceralmente satírico ou desdenhoso desqualifica até mesmo textos bem embasados, desestimulando a reflexão.

 

 

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A contradição de clamar por democracia sendo antidemocrático

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Vejo muita passionalidade envolvida, e muitas vezes me parecem armadilhas do ego e da vaidade

Discurso de Péricles em Atenas, um dos símbolos da democracia (Pintura: Philipp Foltz)

Discurso de Péricles em Atenas, um dos símbolos da democracia (Pintura: Philipp Foltz)

Esses dias, testemunhei na internet um camarada sendo chamado de “comunista”, no sentido mais pejorativo do termo, aquele que hoje povoa o ideário comum, porque publicou um vídeo mostrando um general da época da ditadura militar impedindo um jornalista de exercer a própria função. Esse sujeito que o ofendeu com palavras baixas e declarou que o camarada deveria ser fuzilado por ser “comunista” é um exemplo de uma efervescência perigosa e sem precedentes que tenho visto na internet.

Primeiro porque o camarada não é “comunista”. Ainda assim, tentei entender o posicionamento do rapaz, mas foi impossível porque ele vive uma estoica contradição – uma pessoa que diz estar lutando pela democracia e ao mesmo tempo se coloca no direito de dizer que muitos brasileiros deveriam ser deportados ou fuzilados porque não pensam como ele. Me refiro a alguém que entra na internet para impor sua opinião de forma agressiva em páginas de pessoas com quem não partilha as mesmas ideias.

Penso que se não sou seu amigo e entro na sua página para comentar algo sem ser convidado, devo pelo menos ser educado e defender o meu posicionamento de forma ponderada e lúcida – o mínimo que se pode esperar de um ser humano que deveria respeitar o outro tanto quanto respeita a si mesmo. Não é correto invadir um perfil pessoal no Facebook para impor nada, até porque esse espaço pode, porém não precisa ser democrático. Ninguém tem o direito de fazer isso, independente de qualquer coisa.

Sinceramente, não há como negar que comportamentos como o do rapaz citado têm relação direta com a indigência cultural, já que generalizações e ofensas costumam ser usadas com mais frequência por pessoas que não são capazes de argumentar ou defender um ponto de vista sem apelar para clichês ou estereótipos. O sujeito que ofendeu esse meu camarada trabalha como instrutor em uma academia onde paro em frente quase todos os dias quando o sinal vermelho do semáforo está acionado.

Já o vi algumas vezes rindo e fazendo brincadeiras com alunos e colegas de trabalho, o que torna tudo mais chocante porque mostra como um ser humano aparentemente pacífico pode na realidade esconder uma faceta agressiva e tirânica, o que é interpretado por estudiosos do comportamento humano como sinais de sociopatia.

Acho válido citar também pessoas mais próximas que conheço há muito tempo e que presenciei e ainda presencio defendendo discursos de ódio em mídias sociais. Posso dizer que não é fácil olhar para a pessoa e não associá-la ao que li na internet. A vida segue, mas um resquício de fel na boca persiste.

Vejo muita passionalidade envolvida, e muitas vezes me parece armadilha do ego e da vaidade, aliada a uma visão canhestra do mundo; até um anseio jactante e quase totalitarista de redefinir o que é certo e errado. É incrível como nos deparamos todos os dias com pessoas hostilizando alguém. Tudo isso porque não foram preparadas para lidar com as diferenças, e acho que esse é um problema que surge na infância e adolescência.

Diariamente encontramos pessoas querendo moldar o mundo e as pessoas à sua maneira, o que não significa que seja algo basicamente ruim, já que no fundo todos fazemos isso de algum modo. E claro, muitas coisas nesse sentido podem ser realmente positivas. No entanto, a preocupação surge quando as negativas se sobrepõem, porque aí o respeito é relegado à farelagem e o ser humano deixa de ser humano.

Uma grata surpresa de domingo

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Um dos trabalhos da pintora francesa Corine Perier

Um dos trabalhos da pintora francesa Corine Perier

No dia 2 de abril publiquei no meu blog uma crônica surrealista intitulada “O Chamado dos Animais”. Ela é baseada em uma sequência de sonhos que tive numa mesma noite, a última vez em que consumi carne. Nessa crônica eu cito a pintora francesa Corine Perier, naturalmente porque o trabalho dela, também surrealista, me inspirou em vários aspectos. Então ontem pela manhã quando entrei no Facebook tive uma grande surpresa. A própria Corine Perier me adicionando e depois vindo conversar comigo. Tem hora que eu nem acredito como meu trabalho pode ir tão longe.

Um pequeno fragmento de “O Chamado dos Animais”

“A beleza da madrugada outonal que ofertava um aroma variegado de folhas e flores foi ofuscada pelo miasma trazido por uma vaquinha voadora com focinho de porco e pés de galinha. Apesar de tudo, era um animal lindo na sua singularidade desarmônica. Me recordei das pinturas de Corine Perier e Chris Buzelli. A diferença era que elas não tinham cheiro de morte.”

Leia a crônica na íntegra em //davidarioch.com/2016/04/02/o-chamado-dos-animais/

Acesse também http://www.corineperier.com/

Written by David Arioch

April 25th, 2016 at 5:50 pm

Mais reflexão e menos irritação

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O que aconteceria se cada um se fechasse no seu mundo de preferências e desprezasse todo o resto?

Obra do pintor David Linn que retrata a importância da cooperação

Obra do pintor David Linn que retrata como a cooperação é tão bela quanto importante

Fiquei sabendo que um amigo foi ofendido com palavras de baixo calão no Facebook porque emitiu uma opinião respeitosa, embora contrária à da autora de uma enquete sobre política. Psicóloga, a senhora que fomentou o debate não poupou ofensas ao meu amigo apartidário que até então também era seu amigo. Sem dúvida, é uma situação que retrata um exemplo clássico da severa incapacidade em lidar com as diferenças, premissa básica do convívio social.

Tenho amigos que votam nos mais diferentes partidos políticos. Nem por isso me coloco no direito de ofender ou desrespeitar qualquer um deles. Discussões, críticas e piadas sempre surgem, mas sempre evitando extremismos ou apelações. O mesmo posso dizer sobre religião. Convivo com pessoas que amam atividades físicas e outros que simplesmente odeiam. Curto alimentação saudável, nem por isso perturbo quem não gosta, afinal, é uma questão de escolha. Não bebo, não fumo e tenho camaradas que bebem tanto quanto fumam, embora tenham pleno conhecimento das consequências desses hábitos. Poderia citar uma infinidade de outros exemplos, mas o meu objetivo é apenas respaldar uma ideia – a tolerância é o único caminho para assegurar a civilidade.

Diante de situações extremas de intolerância, sempre me pergunto: o que aconteceria com o mundo se cada um se fechasse no seu mundo de preferências e desprezasse todo o resto? Sem dúvida, nos tornaríamos bárbaros, e a julgar pelo avanço do mundo nessa fase definida como hipermodernidade, nos dividiríamos em hordas piores que aquelas que habitaram o mundo no século VI.

Digo pior porque hoje, mais do que nunca, temos recursos para ser cada vez melhores e não o contrário. Se me identifico com cinema “alternativo”, devo virar as costas para quem curte apenas cinema comercial? Se gosto de musculação, é justo me relacionar somente com quem pratica? Se aprecio heavy metal, preciso ignorar tudo que uma pessoa que não simpatiza com o gênero tem a oferecer? Não creio.

Em 2011, o estadunidense J.H. Kietzmann, um estudioso das redes sociais, publicou no jornal Business Horizons, da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, um trabalho bem interessante sobre o assunto. Em uma de suas citações, ele diz que mídias como o Facebook surgiram para permitir uma interação social baseada na criação colaborativa de informação. Veja bem, a afirmação foi baseada em um estudo ainda recente. Infelizmente, isso não resume o que vemos hoje nas redes sociais. O aspecto negativo cresce exponencialmente.

Na internet a intolerância tem motivado muita gente a odiar quem não conhece ou jamais viu. O desrespeito às diferenças tem desfeito amizades e também elevado o número de pessoas desprezando outras por um mero comentário em uma postagem de um amigo em comum. Muitos parecem encarar a falta de contato físico como um pretexto para ofender alguém, esquecendo que por trás da máquina há sempre um ser humano que também pensa e se emociona.

Todo mundo deve conhecer casos de pessoas que deixaram até mesmo de se cumprimentar na rua ou de se falar por uma divergência de opinião em uma publicação em mídias sociais. A impressão que fica é que há bastante gente despreparada em aceitar a preferência alheia. Isso deveria acontecer? Acho que não, a não ser que você tenha uma cabana no seio de uma área de mata nativa e opte por passar o resto de sua vida em ostracismo ou na plena misantropia.

No Facebook, qualquer pessoa com uma lista de contatos está sujeita a receber uma infinidade de informações ao longo do dia, então por que se incomodar com um camarada que se sente bem postando algo sobre um assunto que o agrada? Pode não ser do meu gosto, mas também não me faz mal. Por que não permitir uma opinião contrária a sua? Isso pode enriquecer o diálogo ou pelo menos estimular uma reflexão ou consideração.

Claro, desde que não seja um comentário arbitrário ou agressivo. A rede social também tem o poder de avaliar a nossa paciência, equilíbrio e capacidade em aprender até mesmo sobre coisas com as quais até então não nos importávamos. Não nego que estamos todos sujeitos a condenar determinadas atitudes e cometer excessos nas redes sociais. Porém, isso não significa inaptidão em aperfeiçoar as nossas habilidades de ponderação.

Written by David Arioch

March 24th, 2016 at 5:17 pm

Projeto de inclusão digital muda a vida dos moradores de Graciosa

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Armando Lehmkuhl: “Estou aqui há três meses e antes eu só sabia apertar o botão de ligar”

O curso com duração de quatro meses atende hoje três turmas que somam 30 alunos em três horários (Foto: David Arioch)

O curso com duração de quatro meses atende hoje três turmas que somam 30 alunos em três horários (Foto: David Arioch)

São quase 19h, e na esquina da Avenida Osvaldo Cruz, em Graciosa, distrito de Paranavaí, alguns moradores atravessam a via em frente à Igreja Nossa Senhora das Graças, onde fazem o sinal da cruz em respeito à padroeira da pacata comunidade de aproximadamente três mil habitantes.

Do outro lado, o professor de informática Jáder Ragazzi abre uma porta de vidro e os recepciona na escola de inclusão digital mantida há dois anos pela cooperativa de crédito Sicredi com a parceria da Faculdade de Tecnologia e Ciências do Norte do Paraná (Fatecie). No local, o clima que envolve professor e alunos com idade de 33 a 58 anos é de muita camaradagem.

À vontade, e perto de casa, ninguém precisa se preocupar com formalidades (Fotos: David Arioch)

À vontade, e perto de casa, ninguém precisa se preocupar com formalidades (Fotos: David Arioch)

Entre brincadeiras e lições, os dez estudantes que até então desconheciam o mundo da internet e da informática se sentem como se estivessem renascendo para uma nova realidade, a virtual. “Estou aqui há três meses e antes eu só sabia apertar o botão de ligar. Hoje uso o programa Excel pra fazer tabelas de custo. Me ajuda muito. Só demorei pra entrar no curso porque tinha uma fila de espera enorme. A procura é muito grande”, conta rindo o agricultor Armando Lehmkuhl, de 43 anos, apontando para o monitor e mostrando que agora se soma a milhões de pessoas que usam mídias sociais como o Facebook.

A modesta e acolhedora escola funciona em uma sala de paredes brancas que abrigava a antiga unidade de atendimento do Sicredi, onde mesas, cadeiras e computadores que seriam descartados ajudam a transformar a vida de agricultores, pintores, motoristas, mecânicos, costureiras, aposentados, autônomos e donas de casa. À vontade, e perto de casa, os alunos não precisam se preocupar com formalidades. “Cada um vem do jeito que quiser. É como estar em casa”, diz o professor Jáder Ragazzi rodeado de estudantes que aproveitam o calor da primavera para assistir as aulas usando camiseta, bermuda e chinelos.

O projeto que se tornou um sucesso em Graciosa despertou receio e hesitação por parte da população no início. Muitos curiosos passavam perto da escola para observar a movimentação, ver à distância como eram as aulas. “Eu sabia que o banco estava ensinando informática, só que só tomei coragem de participar quando minha cunhada fez e falou que gostou. Aqui é assim. Um vai falando e chamando o outro”, explica sorrindo a costureira Rita de Cássia Schuelter Silva, de 47 anos, que vê na internet uma grande oportunidade de se manter informada e fazer amizades.

O curso com duração de quatro meses e realizado sempre na terça e na quinta-feira atende hoje três turmas que somam 30 alunos em três horários. A maioria dos adultos admite que dificilmente aprenderia a usar o computador se tivesse que se deslocar até Paranavaí, a 17 quilômetros de distância. Além das despesas, outra preocupação era a exposição diante de estranhos e jovens afeiçoados à informática. “Tudo começou quando pensamos em fazer um programa de inclusão social com a terceira idade e acabamos atendendo todas as faixas etárias. A Fatecie se dispôs a ajudar e nos forneceu o professor e o material didático”, garante a gerente da unidade do Sicredi de Graciosa, Andreia Rodrigues Mendonça Viana.

Todos os participantes já se comunicam por redes sociais, onde trocam piadinhas e planejam reuniões esporádicas (Fotos: David Arioch)

Todos os participantes já se comunicam por redes sociais, onde trocam piadinhas e planejam reuniões esporádicas (Fotos: David Arioch)

No distrito, mais de 700 moradores são associados da cooperativa, o que significa que o benefício é estendido a praticamente todo mundo, até porque para ingressar na escola basta ter algum parentesco com um associado. “Muitos começaram do zero e veem também uma oportunidade de ter uma remuneração melhor”, comenta Jáder Ragazzi. O mecânico Devanir Perri aponta como uma das vantagens do curso o fato de conseguir emitir nota fiscal dos serviços prestados em sua oficina.

Omir de Oliveira, autônomo de 58 anos, segue na mesma esteira. “Consigo abrir firma pela internet e estou aprendendo a pesquisar tudo que quero”, destaca. Vilson Lourenço de Sousa, de 39 anos, que está se familiarizando com o programa PowerPoint e já faz compras online, justifica que com as novas tecnologias todo caminhoneiro precisa ter bons conhecimentos de informática. “Estou na mesma situação que eles. O meu trabalho de pintor exige que eu saiba pelo menos enviar e-mails e mexer com programas como o Word. Ainda bem que temos um professor calmo e que explica muito bem”, pondera Edilson Lino de Oliveira, de 33 anos, sem velar a satisfação.

A autônoma Janete Rodrigues de Almeida, de 46 anos, assim como a dona de casa Sandra Portela de Oliveira, de 53 anos, e a costureira Rita de Cássia Schuelter Silva, de 47 anos, quis aprender informática principalmente para usar mídias sociais e manter contato com amigos e familiares. “Minhas duas filhas moram fora e assim posso falar com elas com mais facilidade. Temos dificuldades de aprendizado, mas vamos indo. O curso é muito bom”, revela Sandra.

O que também ratifica o êxito do projeto é o baixo nível de desistência. A cada turma, no máximo um ou dois alunos deixam a escola. As causas normalmente são problemas sérios de saúde ou falta de tempo. “Fazemos o possível para evitar que desistam, tanto que oferecemos alternativas de horário”, confidencia Jáder Ragazzi.

Em Graciosa, onde a economia é essencialmente agrícola, a inclusão digital trouxe uma grande transformação social e cultural. Não é difícil ver homens e mulheres trocando a enxada no final da tarde pelo computador, o que é encarado com naturalidade, já que 50% dos participantes atendidos pelo projeto são trabalhadores do campo. “Também recebemos pessoas da área de comércio e indústria querendo aprender a entrar em contato com fornecedor pela internet”, assinala o professor.

No local, o clima que envolve professor e alunos com idade de 33 a 58 anos é de muita camaradagem (Foto: David Arioch)

No local, o clima que envolve professor e alunos com idade de 33 a 58 anos é de muita camaradagem (Foto: David Arioch)

Acostumado a trabalhar com pessoas experientes em informática, Jáder Ragazzi relata que se surpreendeu quando se dispôs a encarar o desafio de lecionar para adultos que nunca usaram um computador. “É um aprendizado bacana, tanto pra eles quanto pra mim. No geral, são curiosos e pacientes. É bonito ver o interesse de um em ajudar o outro. Aprendo inclusive valores com eles. Afinal, muitos são maduros, pessoas com mais experiência de vida do que eu”, avalia.

Quando não estão em sala de aula, os alunos se comunicam pelas redes sociais, onde trocam piadinhas e planejam reuniões esporádicas. “Sempre chamam para dar um pulo na casa deles ou no sítio. Então a gente vai lá e faz uma confraternização. É um pessoal muito bacana, com quem vale muito a pena trabalhar”, afirma Ragazzi.

Curso de informática tem lista de espera para 2016

Ao ingressarem no curso de informática oferecido pela cooperativa Sicredi em parceria com a Fatecie, os participantes passam por um processo de nivelamento para que o professor possa trabalhar adequadamente com todos os alunos ao mesmo tempo.

“Aqui eles aprendem a mexer com a internet e com o pacote Office, da Microsoft, que inclui Word, Excel e PowerPoint. Todo o material didático é entregue a eles em um pendrive. E nesse mesmo dispositivo eles armazenam as atividades”, detalha o professor Jáder Ragazzi, acrescentando que a apostila foi desenvolvida pelo professor André Dias Martins, coordenador do curso de sistemas para a internet da Fatecie.

Para não ficar datado, o material digital é constantemente atualizado. Com o Word, os alunos aprendem a editar texto e melhorar a digitação. Já o PowerPoint é usado mais como recurso preparatório para a inserção de imagens em mídias sociais. “Daí quando chega na internet, eles estão tinindo”, comemora Ragazzi, lembrando que deu aulas em Graciosa até para alunos de 80 anos, com quem mantém contato quase diário pelo Facebook.

Após os quatro meses de curso, os participantes recebem os certificados. Para 2016, a procura pelo projeto de inclusão digital deve crescer ainda mais. A maior prova disso é o fato de que existe uma grande lista de espera.

Saiba Mais

Em julho, a diretoria da Sicredi União embarcou para os Estados Unidos. Em Denver, no Colorado, o projeto de inclusão digital concorreu ao prêmio do Conselho Mundial das Cooperativas de Crédito (Woccu).

A cada quatro meses 30 novos alunos ingressam na Escola de Inclusão Digital do Sicredi União PR/SP

As aulas são realizadas às terças e quintas-feiras em três horários: 14h às 16h, 16h às 18h e 19h às 21.

Os participantes também podem participar de mais de 800 cursos online disponibilizados pelo Sicredi.

Contato

Para mais informações sobre o projeto, ligue para (44) 3428-1371

Garota de programa, intemperança e transtorno de personalidade

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Na internet, se tornou cada vez mais fácil encontrar pessoas com transtorno de personalidade (Foto: Francesco Pirrone)

Está cada vez mais fácil encontrar pessoas com transtorno de personalidade no meio virtual (Foto: Francesco Pirrone)

Hoje, li uma notícia sobre uma moça que atuava como garota de programa em Uberlândia, Minas Gerais. Ela foi assassinada porque chegou atrasada ao encontro com um cliente. No Facebook, um homem com cerca de 35 anos e uma foto de perfil em que aparece sorrindo com dois filhos e a esposa comentou exatamente o seguinte: “Que sirva de exemplo para essas quengas kkkk.”

E há quem se pergunte o que existe de errado na sociedade atual. Pessoas aparentemente normais, bastante sociáveis, muitas vezes se tornam irreconhecíveis na internet. Alimentam a intolerância e deixam bem claro que nutrem desprezo pela vida daqueles que lhes são diferentes.

Se você é afeiçoado à generalizações, incapaz de dialogar abertamente ou de aceitar e discutir diferenças sem apelar para clichês, estereótipos ou senso comum, há grandes chances de que você seja um inimigo do conhecimento e do livre-arbítrio.

Infelizmente, ter uma visão limitada do que deve ou deveria ser o mundo revela um tipo peculiar de intemperança e até de megalomania. No fundo, todos nós temos nossos pré-conceitos e preconceitos. No entanto, o problema se torna crônico quando nos recusamos a entender ou analisar em profundidade algo que poderia nos tornar pessoas melhores.

Hoje em dia, o que tem chamado muita atenção de estudiosos do comportamento humano é a tal dissonância entre quem você é na internet e quem você é fora dela. É um assunto preocupante porque nos últimos anos descobriu-se que em âmbito online houve um crescimento imensurável dos mais diversos tipos de transtorno de personalidade.

Para situar melhor, acho plausível citar um exemplo que considero o mais comum na atualidade. Se uma pessoa conversa com outra fora da internet e a primeira diz que a segunda age de modo completamente diferente quando está online, surge aí um grande indício de que a segunda sofra de algum tipo de transtorno de personalidade.

Acredito que hoje a vantagem é que comportamentos suspeitos são facilmente monitorados pela internet. Então quando uma pessoa tem uma atitude nociva em uma mídia social ou faz apologia à violência, ela não apenas mostra quem realmente é como também pode correr o risco de um dia ser responsabilizada por um comentário inconsequente.

Written by David Arioch

January 25th, 2015 at 9:28 pm

Desigualdade, empatia, descomedimento e humanidade

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Ofxam International alerta que 50% das riquezas do mundo estarão nas mãos de 1% da população mundial em 2016 (Foto: Reprodução)

Ofxam International alerta que 50% das riquezas do mundo estarão nas mãos de 1% da população mundial em 2016 (Foto: Reprodução)

A Organização Não Governamental Oxfam International divulgou esta semana uma pesquisa revelando que há grande probabilidade de que até o ano que vem 1% da população mundial assuma o controle de 50% das riquezas do mundo.

Acredito que a ideia da Oxfam seja propor um debate sobre o assunto, claro que já deixando transparecer uma crítica prenunciando os desdobramentos mais severos do que chamam hoje em dia na Europa de bancarrota social, só para ser o mais objetivo possível na minha análise superficial. Daí em redes sociais surgem pessoas com comentários de campina envolvendo meritocracia ou indo um pouco mais além e declarando:

“É isso aí, também quero fazer parte desse 1%”, “Fala mal, mas queria estar no lugar deles” ou “Se não consegue se juntar a eles é porque não tem capacidade pra isso.” São comentários que poderiam simplesmente ser qualificados como individualistas, triunfalistas, egocêntricos, mas não é só isso. Está além disso.

É possível fazer uma observação usando a empatia como exemplo. Sim, ela parece cada vez mais fortuita como mostra a internet, principalmente em mídias sociais como Facebook. Chega a ser digna de abjeção em muitos casos. Diuturnamente, sofre por ser extirpada e privada da própria semântica.

Hoje em dia, na chamada hipermodernidade, é grande o número de pessoas que se colocam numa posição de figura proeminente do digitalismo. Há opinião para tudo e sobre tudo, mesmo sobre aquilo que sequer dedicou alguns minutos de pesquisa. É preciso cultivar um mínimo de senso laborial.

Ausência de empatia exemplifica bem porque é tão difícil diminuir as desigualdades sociais (Foto: Reprodução)

A ausência de empatia aliada a outros fatores exemplifica bem porque é tão difícil diminuir as desigualdades sociais (Foto: Reprodução)

Mídia social se tornou território fértil dos tribunais online. Tudo há de ser julgado com embasamento em senso particularista, “moral” que se confunde muitas vezes com amoral e imoral, e principalmente empirismo inconsistente. Na ausência do confronto físico, é comum o pensamento de que não há motivo para ser educado ou respeitoso. Na realidade, o descomedimento é atroz, “natural” em conceito distorcido e pluralizado.

Quem age de maneira inquisitória ou negligente costuma não ter dúvidas porque nunca teve perguntas. Se contenta com meias certezas, meias verdades de um mundo talvez até plano, como defendia Ptolomeu nos tempos do Renascimento. É alguém que refuta a complexidade, se nega a aceitar o poder da subjetividade, as nuanças que podem travestir mentira de verdade e vice-versa. Esses mesmos indivíduos não acreditam na possibilidade das divergências complementares das forças que regem o pensamento humano.

O Facebook nos prova que há quem prefira o anacronismo de um mundo paralelo e falsamente simplificado. Muitos não permitem discussões construtivas nem críticas. Aprendi na adolescência que crítica se fundamenta em argumento, desde então tomo isso como um referencial do que fazer, mas principalmente do que não fazer.

Numa sociedade tão desnivelada, e ainda fortemente influenciada pelo fatalismo e determinismo, acredito que o ser humano há de continuar perseverando como grande exemplo e símbolo do que eu acho adequado chamar de paradoxo existencial. No entanto, o que mais preocupa é que hoje em dia muita gente ensaia a própria humanidade, pois optou por se despir dela. Sendo assim, cresce a incapacidade humana de verdadeiramente sentir-se humano.

Um homem moldado pelo ferro

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Com 20 anos de treino, Betão Marcatto se tornou uma importante referência da musculação no Brasil

A evolução de Betão Marcatto com a musculação (Foto: Arquivo Pessoal)

Na internet, o paulista Betão Marcatto se tornou uma das mais proeminentes referências da musculação, e não por acaso. Com uma relação de amor e ódio ao treinamento iniciada há 20 anos, o marombeiro graduado em eletrotécnica, mecânica, engenharia de produção e educação física se destaca por dividir o conhecimento com milhares de seguidores por meio do “Blog do Betão” e de uma página no Facebook. Outro diferencial é que Betão é o fundador da Academia Betoflex, de Guarulhos, São Paulo, uma das “mecas” do treino com pesos no Brasil.

Assim como muitas lendas do fisiculturismo, Betão Marcatto se sentia pequeno e muito magro na adolescência. “Um dia, meu pai trouxe uma fita de videocassete do filme ‘Comando para Matar’ com o Arnold Schwarzenegger, o que me impulsionou a procurar uma academia de musculação. Achei que se ficasse daquele tamanho seria mais respeitado na escola”, conta se referindo a um episódio em 1986, quando estava na sexta série do atual Ensino Fundamental.

Ao longo da trajetória com a musculação, Betão que tem 1,84m passou por uma fase em que se preocupava mais com volume do que qualidade muscular. “Só depois me dei conta que estava obeso, com 147 quilos. Foi a minha maior frustração. Então me empenhei e consegui reverter isso”, explica.

Marcatto: “O treino com pesos moldou meu caráter” (Foto: Arquivo Pessoal)

Apesar de ter vivido situações típicas entre marombeiros que estudam e trabalham, como dificuldade para conciliar horários, Marcatto jamais abandonou os treinos, nem quando era estagiário da Faculdade de Tecnologia de São Paulo (Fatec) e tinha apenas 30 minutos por dia para praticar musculação. Em vez de desistir, como faz a maioria, Betão encontrou uma academia no caminho para o trabalho.

Para entender a filosofia de vida do marombeiro é preciso ter em mente que a musculação vai muito além de atividade física que promove mudanças estéticas e de saúde. É uma prática com sentido metafísico que ensina a viver melhor, a ter disciplina e lidar com a frustração e a dor. “A musculação moldou meu caráter. Me deixou mais forte, menos emocional no sentido de sofrer por pouco. Você consegue transportar para fora da academia tudo aquilo que aprende treinando”, avalia.

Betão tem como inspiração fisiculturistas conceituados como o inglês Dorian Yates, o alemão Markus Rühl e o estadunidense Lee Priest que se tornaram expoentes da chamada Freak Era, em que os atletas começaram a se preocupar com enorme volume muscular, além de simetria e definição extrema. “Também me inspiro no [estadunidense] Derek Poundstone, grande atleta de strongman da atualidade”, acrescenta.

Os melhores resultados ao longo de duas décadas, Marcatto conquistou se autoavaliando, conhecendo o próprio corpo, lendo muito e tornando-se “cobaia” das próprias experiências que ele define como “insanidades”. “Tenho mais de 80 livros de musculação e aprendi a colocar em prática tudo que sei”, relata o marombeiro. Com muita bagagem profissional, reclama que as faculdades de educação física não preparam adequadamente o estudante para a profissão. A sugestão para o egresso evitar o fracasso é a procura de cursos específicos.

Betão fundou uma das “mecas” do treino hardcore no Brasil (Foto: Arquivo Pessoal)

A Metroflex brasileira

Nos Estados Unidos, a Metroflex Gym, autora do slogan “A Hardcore Training Facility”, é um dos mais almejados ginásios de treino com pesos do mundo, onde treinam figuras emblemáticas como Ronnie Coleman e Branch Warren, fisiculturistas de elite do Mr. Olympia, a maior e mais tradicional competição de bodybuilding.

Com a referência da Metroflex, Betão Marcatto fundou a Betoflex em 13 de fevereiro de 2006, uma data que até hoje é lembrada com alegria e emoção. Betão deixou o emprego em outra academia um dia antes, levando para o novo ginásio um grupo de marombeiros que já se identificavam com o rigor de seus ensinamentos. “Sempre quis uma academia com professor que treina e incentiva os alunos, o que é raro hoje em dia”, diz.

Quem pratica musculação sem nenhuma meta específica pode se assustar logo na recepção, onde há cartazes com a frase “Pare! Se você não tem objetivo, não entre!” Outra raridade é que a Betoflex tem uma rigorosa política de trabalho aplicada aos alunos. “Já adianto o que espero de cada um e explico como será o tempo em que eles estarão aqui. Alguns desistem na mesma hora”, garante.

Betoflex oferece estímulos por meio de desafios (Foto: Arquivo Pessoal)

O marombeiro se orgulha dos 90% de alunos matriculados, de um total de 250, que treinam com seriedade. É um dado atípico se comparado a maior parte das academias, onde a minoria se empenha.

Cultura old school

Betão Marcatto faz o possível para contribuir com o sucesso dos alunos, seja incentivando, corrigindo a execução incompleta dos exercícios, um fato comum, ou impondo desafios. “Há alunos que chegam com vários vícios e um exemplo é o meio supino. A pessoa deve estar disposta a ouvir que treina errado e precisa mudar. É um grande impacto pra eles, tanto que muitos só ficam um mês”, lamenta. Embora a Betoflex seja conhecida como um ambiente masculino, a academia conta com uma sala feminina frequentada por um bom número de alunas.

Adepto dos princípios de treino old school, Betão deixa sempre um caderno na recepção, o que serve de baliza para estatísticas de melhorias. Quem chega deve escrever o próprio nome e o horário. “Além de custar uma fortuna, a catraca eletrônica deixa tudo muito formal e automatizado, o que não condiz com a Betoflex. Tanto é que sei o nome de todos os alunos. É uma questão de respeito”, ressalta.

No ginásio, também existe a preocupação com a trilha sonora, elaborada sob um esquema de progressão. Há mais de três mil músicas disponíveis. Pela manhã, os marombeiros “puxam ferro” curtindo hard rock, heavy rock ou rock clássico como Airbourne, Deep Purple e AC/DC. Betão treina um pouco mais tarde, quando prioriza bandas de thrash metal, groove metal e metal industrial como Sepultura, Pantera e Fear Factory.

Se o treino é pesado, a música também deve ser. “São gêneros que me inspiram. O resto do dia é recheado de Metallica, System of a Down e outros”, exemplifica. Outra curiosidade da Betoflex é que alguns aparelhos foram desenvolvidos dentro da própria academia.

O Blog do Betão

Betão Marcatto, que é chamado carinhosamente de “tio” ou “titio”, não tinha a mínima ideia da influência sobre milhares de marombeiros de Norte a Sul do Brasil. Ficou sabendo da repercussão do trabalho há pouco tempo, quando instalou um contador de visualizações no “Blog do Betão”. Mais tarde, encontrou muitos de seus artigos espalhados por dezenas de sites e blogs sobre musculação.

O marombeiro oferece assistência a todos os alunos (Foto: Arquivo Pessoal)

A ideia de criar uma página surgiu quando percebeu que muitas pessoas estavam com dúvidas sobre treinamento, mas não tinham a quem recorrer, seja por interesse em aprender um pouco mais ou não conhecer um profissional bem preparado. O blog se popularizou e todos os dias Betão recebe muitas perguntas que responde conforme a disponibilidade. “Às vezes, acontece de algumas mensagens sumirem em meio a tantas outras, parecendo que estou ignorando a pergunta, mas não estou [risos]. Além disso, gosto muito de escrever”, frisa.

Betão sabe que se não atualizar o blog diariamente a cobrança dos leitores aparece no mesmo dia. A justificativa é o conteúdo diferenciado que conta com metodologias de treinamento que foram criadas ou adaptadas por Marcatto. Um exemplo é a técnica 3D’s – Difícil, Dolorido e Doentio, destinada a praticantes intermediários e avançados de musculação. Em síntese, o “Blog do Betão” é recomendado para apaixonados por musculação, pessoas dispostas a treinar sob um novo patamar de intensidade.

Mister Freaky, personagem interpretado por Betão que ficou famoso na internet (Foto: Arquivo Pessoal)

Três perguntas para Betão Marcatto

Betão, o seu estilo de vida inspira muita gente, não apenas de Guarulhos [na Região Metropolitana de São Paulo], mas de todo o Brasil. Você acha que isso é um reflexo da insatisfação quanto a falta de uma política de seriedade na maior parte das academias do país?

Acho que quem treina sério percebe quando o objetivo de quem está por trás do estabelecimento é só dinheiro. O comportamento passivo da maioria dos donos de academia é o reflexo disso. Tenho academia porque amo musculação. Poderia estar trabalhando em outra área, mas isso não me traria felicidade. ‘Trabalhe no que você não gosta e só será feliz no dia do pagamento. Trabalhe com o que gosta e será feliz todos os dias’. Você tem que ganhar dinheiro, claro, mas isso tem que ser consequência de um trabalho bem feito. Por parte dos donos de academias, vejo muito “abandono” tanto de aparelhos quanto de alunos. São verdadeiros órfãos do ferro.

Como surgiu a ideia de criar a série Mister Freaky, com um fictício e controverso personagem que ganhou muita popularidade discutindo de forma bem humorada os clichês da musculação?

Publicidade feita com bom humor (Arte: Arquivo da Betoflex)

A ideia do Mister é satirizar dois públicos da musculação: o cara que se acha mau e forte e aquele que vai malhar e não treinar, o popular “franguinho”. Produzi diversos vídeos, mas os retirei da internet porque estavam vinculados a um projeto ao qual não pertenço mais. Fiz alguns remakes, mas a edição ainda não saiu. Estou estudando a possibilidade da volta do Mister Freaky.

Recursos ergogênicos são sempre úteis se usados corretamente, porém dentre os principiantes há uma exaltação dos suplementos em detrimento da alimentação. Como você avalia isso?

Alimentação é a chave. É por meio da alimentação que construímos nossos corpos, que chegamos ao objetivo. Se você negligenciar a alimentação, tudo estará perdido. Suplementos ajudam, mas não podem ser considerados essenciais. São importantes se você não tem tempo para preparar suas refeições.

Blog do Betão

http://blogdotitiobetao.blogspot.com.br