Archive for the ‘Família’ tag
Posso te fazer uma sugestão?
Posso te fazer uma sugestão? É a mesma que faço quando me convidam para dar palestras para crianças e adolescentes nas escolas. O que você sabe sobre seu pai? Sua mãe? Seu avô? Sua avó? Seu bisavô? Sua bisavó? Você tem alguma história da infância deles que pode me relatar neste momento? Você sabe como sua mãe era na adolescência?
Não estou falando de foto, mas de personalidade. E seu pai?
Você sabe de algum episódio marcante que ele viveu, por exemplo, na fase mais tenra da infância? Está estranhando minhas perguntas? Então, é que nossos familiares morrem e nós nem sabemos quem eles eram. Que tal descobrir quem eles eram? Para além do nosso parentesco. Afinal, todo ser humano, é mais do que irmão, pai, mãe, vô, vó…
Quando nasci, meu avô já era o vovô, e minha avó também já era a vovó. Sim, pra mim já tinham feições de velhinhos, era como tivessem nascido velhinhos. Não tinha como eu saber como eles eram antes de eu nascer, então eu pedia que eles me contassem histórias. Desde a minha infância, meu avô fazia isso por iniciativa própria, porque ele já nasceu um contador de histórias.
Ainda assim, nos últimos anos de vida dele, comecei a registrar as nossas conversas em um gravador; dezenas de horas. E mais tarde, mesmo sem saber quando ele morreria, coincidiu de eu produzir um pequeno documentário sobre a sua vida, registrando seu cotidiano, intercalado com histórias de sua infância, da mocidade, da família, do envelhecimento, e do que a vida representava para alguém perto dos 90 anos.
Admito que não tenho o costume de ir a velórios, não fui nem mesmo no velório do meu pai. Se me chamar para algum, provavelmente recusarei, mas por um motivo que nem eu mesmo sei explicar, compareci ao do meu avô. Ele estava deitado, com semblante sereno, a pele álgida e arroxeada, e eu me recordando de suas histórias. Eu sabia que ele não estava mais ali, mas quando o caixão foi lacrado, imaginei centenas de livros se fechando, livros que nunca mais serão lidos ou abertos.
O boi e a família
Rubens parou o carro na beira da estrada. Ele, a esposa e os três filhos desceram para admirar um boi que coçava a cabeça em uma porteira a poucos metros de distância. Se aproximaram e perceberam que o animal era bem manso.
Então as três crianças acariciaram sua cabeça e riram como nunca. Não imaginavam que um animal daquele tamanho pudesse ser tão dócil. Sem se incomodar, o boi apenas os observava com seus olhos cristalinos.
Duas horas depois, já estavam em casa almoçando, servindo-se de bifes grelhados, sorrindo e se lembrando da doçura do boi que roçava a cabeça suavemente sobre uma porteira que trazia no cerne uma cruz de madeira. E, mais uma vez, como tantas outras, a beleza da vida foi celebrada com morte.
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Em respeito à memória de parentes falecidos
Em respeito à memória de parentes falecidos em 1962 e 1970, desde criança vou ao cemitério de Alto Paraná no Dia de Finados. É um costume sem conotação religiosa. Meus familiares, parte deles imigrantes, se mudaram para esta região na década de 1940, quando o Novo Norte do Paraná ainda estava em processo de colonização.
Embora eu não tenha nascido nem vivido em Alto Paraná, reconheço que é um lugar rico em histórias. O caminho até o cemitério é muito intrigante. Há casas de sítios e fazendas que foram abandonadas há muito tempo, mais tarde consideradas assombradas. Também há lugarejos, antes colônias, envoltos por narrativas insólitas, como a de um rapaz que dormiu por anos e a de famílias de mulheres que expulsavam invasores a tiros.
Quando eu comprava cigarro para os meus pais
Suspeitei que o inventor do cigarro tivesse errado a escolha dos ingredientes e criado algo indesejado
Na infância, eu comprava cigarro para os meus pais. Sim, eu e todos os meus amigos e colegas que nasceram nos anos 1980 e tinham pais fumantes. Minha mãe abandonou o vício na minha adolescência, mas meu pai, um tabagista inveterado, faleceu em decorrência de um câncer de pulmão. Começou a fumar muito cedo, quando astros de Hollywood ajudaram a transformar o cigarro em um obtuso símbolo de charme, rebeldia e sensualidade.
Nunca perguntei porque ele fumava, só que um dia, ainda criança, comentei com minha mãe que “só o trem a vapor tinha motivo para soltar fumaça, já que o movimento dele dependia da queima do carvão”. Desde pequeno, eu não via graça na ideia de colocar algo na boca simplesmente para soltar fumaça. Eu associava aquela imagem com a da fumaça preta que saía dos escapamentos dos caminhões velhos que víamos nas ruas. Óxido de carbono, óxido sulfúrico, óxido de nitrogênio e hidrocarboneto aromático, fiquei sabendo mais tarde.
“Quem sabe as pessoas que fumam sejam como os escapamentos dos caminhões, a diferença é que soltam menos fumaça porque são menores. E talvez ela seja menos suja porque sai diretamente da boca”, escrevi num caderno quando tinha sete ou oito anos. Nunca coloquei um cigarro na boca. Também não me gabo disso. Não! Minto! Coloquei sim, aquele de chocolate lançado pela pan e que trazia uma criança negra sorrindo na caixinha. Não vou negar. Fingi fumar com o cigarrinho de chocolate entre os lábios. Afinal, a ideia de fumar, por pior que fosse, preservava seu ardil romanesco nas brincadeiras.
Aos dez anos, suspeitei que o inventor do cigarro tivesse errado a escolha dos ingredientes e criado algo indesejado. Quem sabe a ideia inicial fosse fazer com que saísse algo de bom da boca das pessoas em vez de uma fumaça ruça e malcheirosa. E a ironia já subsistia no fato de que a fumaça por si só era suspeita na sua nebulosidade, como um mandrião velando suas verdadeiras intenções.
Comecei a comprar cigarros com sete anos, quando morávamos na Rua Pernambuco. Eu e meu irmão Douglas caminhávamos 100 metros para buscar um ou dois maços de Free em um bar na Avenida Distrito Federal. Por causa da fumaça, entrar lá era como subir num palco instantes antes de um show. A diferença era que o gelo seco não escurecia como a fumaça do cigarro. Nem fedia como aqueles corpos macerados pelo vício em álcool e tabaco.
Alguns sujeitos tossiam como se estivessem prestes a vomitar ou expelir pedaços de tecido do organismo. Aquela era a realidade dos dependentes mais figadais, e me vi diante dela nos primeiros anos de vida. Eu gostava do lugar, de testemunhar a salada social composta por pessoas das mais diferentes faixas etárias – onde pobres e ricos, vagabundos e trabalhadores se misturavam sem formalidades.
Ações, expressões e reações de alegria, tristeza, inconformismo, cólera, sabedoria, ignorância, tudo poderia ser encontrado no bar da Dona Maria, mãe do meu amigo Fabiano. Porém, nenhum sentimento parecia mais destacável do que um híbrido de ilusão e decepção. Naquele lugar, homens de poucas palavras chegavam sorrindo e partiam chorando assim que as aparências descortinavam as essências.
Junto ao balcão, Dona Maria mantinha um taco de beisebol, apelidado de “Juízo”, para conter os desordeiros. Repreendia bêbados, dava conselhos e às vezes alimentava os mais miseráveis. Era visceral a forma como seu semblante mudava de um segundo a outro caso alguém fizesse algo de errado. Chapas (carregadores de mercadorias), vendedores ambulantes e artistas de rua passavam por lá com frequência. Um dia ganhei um quadrinho de madeira com a minha imagem entalhada por Maneta, um escultor que viajava por todo o Brasil de carona.
Enquanto alguns sentavam diante das mesas laterais, outros preferiam o balcão, sentindo o aroma das conservas, ouvindo o som dos congeladores e da TV com caixa de madeira. Incomum era encontrar alguém no bar que não fumasse. Eu ziguezagueava pelo espaço, tentando evitar inalar a fumaça que se movia pelo ambiente como uma serpente tentando me engolir. Pior ainda era quando meu nariz entupia por causa da rinite alérgica.
Diante do balcão, eu sentava em um banquinho, balançava as pernas, pedia dois maços de cigarro e observava os doces das vitrines. Assim que Dona Maria me entregava as duas carteiras de Free, eu pagava, guardava os maços no bolso esquerdo da bermuda e o troco no bolso direito. Saía de lá desviando da fumaça e ouvindo gargalhadas e gritos de três ou quatro homens entretidos em uma partida de truco. “Ladrão! ladrão! Isso que tu é, seu porco malandro!”, berrou numa tarde um homenzarrão barbudo com voz tão grave que meus tímpanos latejaram. Me senti como se estivesse diante do próprio demônio.
Ele sentava sobre duas cadeiras em vez de uma, e sua mão chegava a ser maior do que a cabeça dos seus adversários. Assustado, assisti as cartas miúdas desaparecendo entre suas mãos. Era como se fossem miniaturas em papel. De repente, o sujeito olhou para mim e disse: “Que foi, garoto? Perdeu alguma coisa?” Sem abrir a boca, movimentei a cabeça negativamente e me afastei. Antes de pisar na calçada, vi ele tirando um Belmont do bolso da camisa, o acendendo e o tragando com tanta sofreguidão que em poucos segundos o cigarro foi reduzido às cinzas, restando apenas um filtro diminuto resvalando dentro de um cinzeiro de madeira.
Sua boca também era descomunal. Quando ele mirou o teto e expirou a fumaça, foi como se uma nuvem pesada demais para suportar a própria sustentação se formasse sobre sua cabeça, como uma névoa eivada e gulosa. Aquele era o Terebintina, fumante e bebedor profissional, diziam. Trabalhou para as maiores empresas de tabaco e destilados do Brasil na década de 1980. Não era difícil encontrar jovens e até pessoas mais velhas que sonhavam com essa vida. Beber, fumar e nada mais, sim, era o ideal de muita gente. Em casa, enquanto minha mãe sovava uma massa de pão na cozinha, comentei o que aconteceu no bar. Ela se divertiu com o meu relato embora não conhecesse o gigante mal-encarado.
Naquela época, cheguei a acreditar que o mundo era dos fumantes. Por onde eu andasse, falava-se em cigarro. Na TV, no rádio e nos outdoors perseverava a glamourização do fumo. No centro, na saída da escola, eu sempre via embalagens vazias e bitucas de cigarro próximas do meio-fio. Ofereciam até amostras grátis. E, claro, alguns tabagistas eram mais educados do que outros. Minha mãe, por exemplo, evitava fumar perto de mim e do meu irmão. Quando notava que eu o observava, meu pai copiosamente passava o cigarro da mão direita para a esquerda, tentando ocultar a fumaça por trás do livro, e declarava: “Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço.”
Pela manhã, vez ou outra, eu assistia minha mãe trocando os lençóis queimados pelas brasas do cigarro. Talvez aqueles furos com bordas negras significassem mais do que imaginávamos. Afinal, eram disformes e incertos como pequenos tumores. “Ontem, disse para mim mesmo que era o último. Eu não quis imaginar que seria o fim, que eu não fumaria mais até a minha morte. Preferi pensar que se eu parasse agora, teria a possibilidade de fumar de vez em quando”, escreveu Henri-Pierre Jeudy em “O Último Cigarro”.
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Irmãos Bonfadini, uma história de luta e união
Raridade entre as famílias de hoje em dia, os Bonfadini nunca se separaram
Assim como muitos migrantes, o que trouxe os sete irmãos Bonfadini a Paranavaí, no Noroeste do Paraná, foi a vida difícil. Em Encantado, cidade situada em uma região de morros no Rio Grande do Sul, a economia da família era baseada na criação de suínos. Então sonhavam em migrar para uma área plana, onde pudessem investir em outras atividades. “A vida no Rio Grande era dura. A gente queria ir pra um lugar sem pedras. Trabalhamos, lutamos e fizemos economia, crentes de que um dia sairíamos de lá”, explica o pecuarista Honório Bonfadini.
O sonho se concretizou em 1960, quando se mudaram para Paranavaí logo depois de conhecer um corretor que falou das terras boas da região. “Viemos em sete irmãos. Eram quatro homens e três mulheres. Cheguei e me senti no paraíso. A diferença para o lugar onde morávamos no Rio Grande era imensa”, explica Honório entre sorrisos e um tom de voz remansoso.
O trajeto até Paranavaí levou dias e foi percorrido de ônibus. A vontade de mudar de vida era tão grande que trouxeram pequenas malas com poucas peças de roupa, deixando todos os móveis e utensílios domésticos. “Paranavaí sempre foi bonita, né? Só que asfalto não tinha. Na Avenida Paraná só existia um pedacinho de malha viária”, lembra Honório.
O maior objetivo dos Bonfadini era investir na área urbana. Quando ficaram sabendo que o Líder Bar estava fechado por ordem judicial, em decorrência de badernas, brigas e trocas de tiros, não pensaram duas vezes. “O preço era bom. Por isso compramos e reabrimos. Só deu um pouco de trabalho pra reformar. Como não tínhamos dinheiro pra gastar, contratamos um pedreiro e ajudamos a reconstruir”, relata rindo e meneando a cabeça.
Além de Honório, o Líder Bar, situado na Avenida Paraná, perto do cruzamento com a Rua Getúlio Vargas, contou com a dedicação de Ida, Eva, Gema, Ricieri, Adão e Orestes. Praticamente a família inteira trabalhou no local de 1960 a 1965. “Era bar e restaurante. Tinha o prato do dia, salgados, sanduíches, bolos, chocolates e sorvetes. Os doces eram mais das crianças, né? Ah, o pessoal gostava muito de bauru! Mas a maioria vinha pelo café”, explica. A comida era vendida “por cabeça”. Pagava-se um preço fixo e comia à vontade no almoço ou no jantar.
Embora o ambiente fosse familiar, o Líder Bar se popularizou como ponto de encontro de homens. “A mulherada naquele tempo tinha medo de homem”, justifica Honório às gargalhadas. Apesar das limitações da época, o estabelecimento surpreendia pelo horário de funcionamento. Começava a atender às 6h30 e parava de madrugada, por volta da 1h. No verão, logo cedo a casa enchia. No inverno, à tarde o movimento crescia.
Além de proporcionar horas de descontração, o bar servia como escritório, tanto para profissionais quanto picaretas. Muita gente passava no estabelecimento antes do início do expediente, assim como muitos saíam do trabalho e iam direto pra lá bater papo e tomar um aperitivo.
A fama do bar atraía pessoas de toda a região de Paranavaí. E mais, até estrangeiros. Honório Bonfadini perdeu as contas de quantas vezes recebeu italianos, alemães, espanhóis e portugueses que chegaram ao balcão segurando um pedaço de papel em que estava escrito o endereço do Líder Bar acompanhado de alguns elogios. “Só que era um tempo difícil. Não tinha conforto e o nosso abastecimento de energia dependia de um motor”, garante.
Apesar das dificuldades, admite que ser proprietário do bar mais movimentado de Paranavaí era um privilégio. Vendiam muito e ganhavam bastante dinheiro. Honório sempre viu o Líder Bar como um ambiente modesto, de proporções medianas – com um longo balcão, algumas porções de cadeiras e mesas, sala e área reservada para comemorações.
Muita gente frequentava o local por causa do frango frito e do frango em molho, duas das especialidades dos Bonfadini. “Não tinha frango de granja, era só caipira. A gente fazia o possível pra nunca faltar”, enfatiza. Outro ponto alto era a limpeza. Independente do horário em que o bar fechasse, a família fazia questão de deixá-lo limpinho para a manhã do dia seguinte. Também se uniam para uma faxina geral uma vez por semana.
Os jovens engraxates aproveitavam a movimentação para encostarem caixas e banquinhos em frente ao bar, aguardando a entrada e a saída da freguesia. Na entrada os clientes se livravam do barro batendo as botas na soleira. No interior ouviam-se muitas vozes acompanhadas de sons de pratos, copos, cadeiras e mesas sendo arrastadas. A música no bar era o “barulho do movimento”, segundo Honório Bonfadini.
Em 1965, a crise da monocultura cafeeira motivou a família a se mudar para Planaltina do Paraná, a pouco mais de 50 quilômetros de Paranavaí. O Líder Bar precisava de reforma e o investimento seria desproporcional aos lucros. A melhor opção era desistir da atividade. “As geadas acabaram com o café. Muita gente foi embora. Como nosso bar ficou parado, decidimos partir. Os que moravam aqui nesta propriedade rural em Planaltina, onde conversamos agora, queriam ir pra cidade. Fizemos a troca pelo bar e viemos para o mato. Já estamos aqui tem 50 anos”, revela.
Seis dos irmãos Bonfadini nunca se casaram
Dos sete irmãos Bonfadini que se mudaram para o Paraná, seis jamais se casaram. “Tivemos de fazer economia pra conseguir alguma coisa na vida quando ainda tinha idade pra casar. A luta foi feia. Namorei pouco. Não deu tempo”, justifica o pecuarista Honório Bonfadini em tom singelo.
Apesar disso, Honório não se esquece que em Paranavaí tinha muitas mulheres bonitas. “Era uma alegria para os olhos. Só que eu não ia em festas porque precisava trabalhar”, argumenta. À noite, quando saía de vez em quando para passear, era impossível ficar sozinho com alguma moça. Sempre havia guardas noturnos nas esquinas e eles repreendiam quem tentasse namorar em locais escuros. Mesmo com a rotina atribulada, o comerciante teve a oportunidade de conhecer figuras lendárias da música brasileira, como Tonico e Tinoco, Cascatinha e Inhana e Roberto Carlos. “O comércio e as emissoras de rádio organizavam shows muito bons”, assinala.
Uma vez uma cantora espanhola se aproximou de Honório Bonfadini no balcão do Líder Bar e pediu uma dose de conhaque Dreher. Então os dois começaram a conversar. O comerciante entendia bem o espanhol, tanto que o papo se estendeu por horas. Antes de se despedir, a cantora o convidou para ir ao seu show que seria realizado em Paranavaí na mesma noite. Como o jovem Honório não poderia se ausentar do trabalho, ela se comprometeu em retornar ao final da apresentação.
Honório a esperou. Depois ficou sabendo que a moça encontrou um espanhol. Em vez de ir ao Líder Bar a cantora foi com o acompanhante para a Adega Espanhola na Rua Marechal Cândido Rondon. “Nunca mais a vi”, lamenta. Após se mudar para Planaltina do Paraná, não quis mais saber de se casar. “Aqui eu já estava fora de época. Não queria mais. Não tinha mais idade pra isso”, pontua.
Família sempre se manteve unida
Raridade entre as famílias de hoje em dia, os Bonfadini sempre se mantiveram unidos. De um total de 11 irmãos que viviam no Rio Grande do Sul, sete vieram ao Noroeste do Paraná e nunca perderam contato. Inclusive seis moraram juntos a vida toda.
“Só tivemos uma irmã que se casou e mudou para Presidente Epitácio, no interior de São Paulo. Nosso pai ensinou que devemos estar sempre perto uns dos outros, se respeitando e se ajudando. Se houver alguma falha, tudo bem, a gente tem que perdoar e seguir em frente”, ensina Honório Bonfadini que teve de lidar com a morte dos quatro irmãos mais velhos que viviam no Rio Grande do Sul. Em Planaltina do Paraná, perdeu também a irmã Ida em 2006 e os irmãos Ricieri e Orestes em 2004 e 2010.
Desde que se mudaram para Planaltina em 1965, não quiseram mais investir no comércio. Nos primeiros anos arriscaram plantar café. Depois priorizaram a pecuária. “Você levava uma manhã para chegar a Paranavaí quando chovia. E havia mato para todo lado. Era complicado chegar na cidade”, pondera e declara que Planaltina do Paraná tinha o mesmo tamanho de hoje.
Netos de imigrantes italianos, os irmãos Bonfadini tem raízes em Bento Gonçalves, onde os pais nasceram e viveram até migrarem para a região de Porto Alegre. “Temos sobrinhos lá no Rio Grande do Sul, mas não viajamos mais pra lá. Eles que costumam vir pra cá”, garante Honório.
Sentado em uma cadeira de varanda no sobrado que ajudou a construir em 1982, Honório diz com um sorriso impoluto e um olhar sereno que até hoje se sente bem vivendo no campo, onde a vegetação ajuda a reter umidade e preservar o frescor nos dias mais ensolarados. Mais à frente, aponta o dedo para uma área erma.
Lá, ele e os irmãos viveram anos em um casebre de madeira. Dos tempos de colonização resta ainda uma tulha acinzentada que pode ser vista logo na entrada da propriedade rural, às margens da PR-218, um marco das transformações culturais da região. O local que um dia armazenou grandes quantidades de café, há muito tempo serve de abrigo para o feno.
Curiosidades
Nos tempos da colonização, o revólver de calibre 44 era conhecido em Paranavaí como uma arma usada em execuções.
Honório Bonfadini nasceu em 8 de setembro de 1929.
As tatuagens de Tiziu
As formas irregulares revelam o sofrimento que passou para registrar no corpo os nomes dos pais
Tiziu tem 12 anos e passa a maior parte do tempo nas ruas da Vila Alta, na periferia de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Quem não o conhece, pensa que ele está sempre com raiva. Circunspecto e bicudo, engana apenas os estranhos. Os mais próximos sabem que a feição carrancuda é apenas uma forma de velar a natureza sensível. Mas não é preciso mais do que alguns minutos de conversa para perceber o quanto Tiziu é carente. Suas confidências sobre a vida e o cotidiano revelam mágoa, solidão e ao mesmo tempo um desejo incólume de ser incentivado de alguma forma. “Saí da escola porque tiravam sarro de mim, não me encaixava. Me ofendiam, me chamavam de burro. É o pior lugar do mundo. Prefiro a rua”, sentencia ao pressionar as próprias mãos.
Tiziu costuma conversar evitando contato visual. Quando se sente intimidado, observa tudo a meio metro de altura. Foi condicionado a encarar a vida e o mundo como se fosse um ser rastejante, dotado de um visão limitante que poucas vezes o permite contemplar a totalidade de alguma coisa. “Fico andando pela vila quando não tenho nada pra fazer”, comenta. O garoto normalmente fica pouco à vontade fora do bairro. Deslocado, parece que sente a visão se comprimindo diante de tantos olhares inquisidores. Distante da Vila Alta, já percebeu muitas pessoas o observando, tentando fundamentar suspeitas injustificáveis. “Acho que na mente deles eu não poderia sair daqui nunca”, afirma.
Apesar disso, Tiziu gosta de ir ao shopping, ambiente que segundo ele tem “cheiro de beleza”, onde se sente imerso num universo de “coisas boas”. “Quando estou lá, só vivo o momento. Fui lá poucas vezes. Uma vez comi tão bem que até esqueci quem me olhava torto”, comenta com um sorriso enviesado. Em um antebraço, Tiziu tem tatuado o nome da mãe e no outro o do pai. Há entre eles o desenho de um diamante concebido com esmero. A ideia é mostrar que são duas partes de um todo simbolizando aquilo que o garoto considera o bem mais precioso e raro em sua vida – o amor familiar. A grafia em caixa alta é simples, mas profunda. As formas irregulares das letras revelam o sofrimento que passou para registrar no corpo os nomes dos pais. “Tem a ver com amor, né? Família é pra sempre”, destaca num tom de voz embargado.
As três tatuagens foram feitas por Tiziu com uma maquininha que ele mesmo criou à base de garfo velho, tinta de caneta, fita isolante, agulha de costura, motorzinho, pilhas, isqueiro e estilete. “A gente inventa o que precisa”, diz. O garoto surpreende, não apenas pelas invencionices, mas também porque homenageou duas pessoas com quem não tem convivência diária. A mãe o levou para morar com os avós, alegando que não se davam bem. Tiziu então cresceu sem a presença materna. O pai, morador de outro bairro, não costuma visitá-lo mais de uma vez por mês. “Acho que me criei por aí. Minha avó já é bem idosa e meu avô vive pelos bares”, enfatiza enquanto desliza cuidadosamente os dedos pelas tatuagens, a alternativa encontrada para se sentir mais próximo dos pais.
Saiba Mais
Tiziu é um apelido fictício para preservar a identidade do entrevistado.
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Sobre a divulgação de fotos íntimas na internet
Pra que se preocupar com o estado emocional de uma jovem fragilizada quando é mais importante pensar no que os amigos do boteco vão dizer quando ele chegar para tomar suas biritas?
Mais uma moça teve fotos íntimas divulgadas na internet por um suposto amigo. Quando a família ficou sabendo, o pai simplesmente a expulsou de casa, claro que do alto de uma perspectiva travestida de paternalista. Afinal, pra que se preocupar com o estado emocional de uma jovem fragilizada quando é mais importante pensar no que os amigos do boteco vão dizer quando ele chegar para tomar suas biritas? Outros familiares deram entrevista relatando que a jovem sempre foi muito problemática, deu muito trabalho aos pais. Sem dúvida, ela vai se sentir muito bem quando souber disso por meio dos jornais.
Amigos e parentes pedem o retorno da moça. Apesar das críticas, divulgam na internet que querem que ela volte. Só esqueceram de ponderar que depois disso tudo não há garantias que essa jovem veja a casa como um lar. E quem pode culpá-la? Lar é pra ser um local seguro, uma fortaleza, um ambiente onde se aprende a importância de uma boa comunicação, da cumplicidade existencial. Mas infelizmente há situações extremamente negativas e pesadas na vida que servem para descortinar fatos até então incredíveis sobre a realidade parental. Vejo que em certos aspectos o mundo tem evoluído rápido demais, mas nem todas as famílias acompanham essas transformações, talvez por ainda estarem confinadas a um panorama por vezes anacrônico da vida e do mundo.
Acredito que já temos o entendimento e as ferramentas necessárias para não incorrer no erro dessas famílias que expulsam os filhos de casa por causa de fotos íntimas compartilhadas. O orgulho ferido de um pai deveria ser mais importante? Falo com segurança e tranquilidade que se eu tivesse uma filha passando por esse tipo de situação nunca viraria as costas para ela ou a repreenderia. É preciso ter calma e tentar dialogar. O mundo sempre vai estar pronto para julgá-la, castigá-la, então por que fazê-la se distanciar do lugar e das pessoas que deveriam ser as suas principais referências de segurança?
Sempre que leio sobre fotos íntimas que foram parar na internet me surpreendo com tantos comentários hostis e truculentos. “Se fosse minha filha eu descia o cacete”, “Coitado desse pai!”, “Caramba, que vadia sem noção!”, “Vai, otário, não cuidou direito da filha” e “Vagabunda desde novinha” são alguns dos comentários que me recordo agora sobre o assunto. Pouco se fala sobre quem as divulgou. Você pensaria assim se fosse sua filha? Tem certeza? E mesmo que pensasse, ela tem a sua própria individualidade, é um ser humano como qualquer outro, com suas aspirações, inseguranças e desejos. Sim, claro que muitos jovens que passam por essa situação são dependentes financeiramente, mas nem por isso vão deixar de agir como pessoas que avaliam a vida à sua maneira, com uma autonomia peculiar, mesmo quando reféns da ingenuidade.
Um pai incomunicável
O dilema de uma família fragmentada pela instabilidade paterna
Lançado no Brasil como Tudo Perdoado, Tout Est Pardonné, de 2007, é um filme da cineasta francesa Mia Hansen-Løve que conta a história de uma família fragmentada pela instabilidade paterna.
O primeiro longa-metragem de Mia Hansen-Løve apresenta três personagens: o pai Victor (Paul Blain), a mãe Annette (Marie-Christine Friedrich) e a filha Pamela (Constance Rousseau). Victor é egocêntrico e vive uma crise existencial alimentada pelo uso abusivo de drogas. A dependência química é o estopim que culmina no abandono da mulher e na perda da filha.
O filme aborda a incomunicabilidade ao mostrar um homem que mesmo tendo uma família é incapaz de se responsabilizar por ela. Egoísta, Victor reconhece como real apenas a própria dor, ignorando os problemas vivenciados pelos familiares. Mais tarde, a solidão do personagem vai além da interiorização e se torna uma experiência de dor absoluta.
Após 12 anos, Victor se recupera e decide procurar a filha adolescente. Pamela tem a oportunidade de rever o pai, um desconhecido com quem aos poucos estabelece afinidade singular. Apesar do drama central, a beleza de Tudo Perdoado está na simplicidade das cenas. Há momentos triviais que se tornam singulares pelo poder de identificação com o público.
O filme inspira ao naturalismo e ao realismo de maneira tão sublime que se torna desnecessário o uso de metáforas e simbologias. É uma obra sobre as possibilidades do ser humano recomeçar a vida, bastando a ele reunir forças para discernir sobre suas prioridades. Por Tout Est Pardonné, Mia Hansen-Løve recebeu em 2007 o tradicional Prêmio Louis Delluc.
Curiosidade
A atriz que faz Pamela na infância é Victoire Rousseau, irmã da atriz Constance Rousseau que interpreta a personagem adolescente.