Archive for the ‘Fazenda Brasileira’ tag
Paranavaí, a flor dos cafezais
Novo livro do poeta Paulo Marcelo é baseado em poemas sobre a colonização de Paranavaí
Em janeiro deste ano, o escritor Paulo Marcelo Soares da Silva, radicado em Curitiba, me presenteou com o seu novo livro – “As flores dos cafezais”, recém-lançado. A obra de leitura simples e cativante é baseada em uma coleção de poemas, bem-dispostos em ordem cronológica, sobre a colonização e a evolução de Paranavaí desde os tempos da Fazenda Ivaí, que antecede a Vila Montoya, até a atualidade.
O título do livro é uma clara homenagem a Paranavaí, a quem o escritor se refere em seus poemas como flor dos cafezais, já que a cidade se desenvolveu sob o signo do café até o início dos anos 1970, quando a cafeicultura perdeu espaço para a pecuária.
Por meio da poesia, Paulo Marcelo ensina história com uma linguagem de fácil compreensão. Transmite impressões de uma Paranavaí pouco conhecida pelos mais jovens, mergulhada em impressões de um passado longevo, mas rico e bucólico, que aguça a sensibilidade de quem tem e até de quem não tem contato com a cultura regionalista.
“A realidade e o mito se confundem com o passar do tempo. Ao lado do que é real há que se preocupar também com o ilusório. Os sonhos, a magia e o folclore são peças indispensáveis na engrenagem da vida”, defende o escritor que em sonetos petrarquianos conta com paroxismo como nasceu Paranavaí.
No livro, a narrativa poética romantiza fatos da década de 1920. A partir de um soneto homônimo, Paulo Marcelo aborda com preciosismo a chegada de desbravadores, colonos e outros migrantes que se tornaram pioneiros – numa universalização alheia a nomes. O fim de Montoya, o nascimento da Fazenda Brasileira e a escolha do nome da cidade são referenciados com a rima do autor.
“Entre 1950 e 1960 a produtividade cafeeira atingiu seu ápice na região. Afirma-se que em algumas áreas chegou-se a colher 300 sacas em coco por mil pés de café”, introduz o escritor antes de poetizar as brincadeiras em torno dos cafeeiros, assim como as manhãs ensolaradas, as moças do campo, a inocência dos colonos, a alegria durante as colheitas, a fartura e as grandes geadas.
Na obra, alguns personagens, as festas típicas e os cinemas da cidade também são mencionados em versos curtos com digna e nostálgica simplicidade. “Paranavaí é filha dos cafezais. Nasceu numa manhã de muito sol e foi batizada numa tarde de mil cores”, garante o poeta. Em síntese, “Flores dos Cafezais” é um livro de rápida leitura e que não exige demais do leitor, a não ser vontade de peregrinar em emoções e reflexões poéticas, inspiradas em mais de 90 anos de história.
Quem é Paulo Marcelo?
Além de escritor, Paulo Marcelo é bacharel em direito e possui licenciatura em geografia. Participou e foi premiado em muitas edições do Festival de Música e Poesia de Paranavaí (Femup). Também recebeu prêmios de menção honrosa no 15º e 19º Jogos Florais de Barreiro, Portugal, e no 1º Concurso de Romances Juvenis da Academia Paranaense de Letras.
Tem contos publicados pela Empresa Tipográfica Casa Portuguesa, de Lisboa, em Portugal, e Casa da Cultura dos Trabalhadores da Quimigal, de Barreiro, também em Portugal. Ademais, é autor de “O Lendário Capitão”, de 2012, e “Xondó e o Furto da Vassoura”, de 2013. O livro “Encantamento”, de 2015, contém ilustrações do próprio escritor e traz um conto sobre a história de um casal que se apaixonou em Paranavaí nos tempos da colonização.
Saiba Mais
Caso queiram adquirir o livro, vocês podem entrar em contato com o autor através do e-mail pmmssi@yahoo.com.br.
Soneto que integra o livro e faz referência ao pássaro que empresta seu nome a uma das áreas históricas de Paranavaí:
O Canto do Surucuá
Voa o lindo passarinho
Ao vento que vem lá,
No quadro, tudo mais belo,
Ao canto do Surucuá
As dores vão se afastando,
Em busca d’outro lugar…
Levando mágoas prá longe,
O canto do Surucuá
Segue o moço a cavalo,
Batendo o peito por ela
(Um amor que vai buscar)
Na fazenda, a donzela
Suspira, lá da janela
Ao canto do Surucuá
O menino que virou escravo em Paranavaí
Velhos endinheirados ofereciam pequenas fortunas para ter uma noite de “prazeres” com o jovem caiuá
Em 1938, Urissanê tinha oito anos quando foi vendido em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, para um cafeicultor que possuía uma grande propriedade nas imediações da velha sede da Vila Montoya, fundada pela Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco). De etnia caiuá, o garoto foi privado do convívio familiar com dois anos, após ser sequestrado por uma tribo rival que vivia na região do Porto São José, na divisa do Paraná com o Mato Grosso do Sul.
“Parece bicho do mato, mas é bem dócil. Pode passar a mão, não tenha medo. Esse aí não sabe nem de onde saiu ou pra onde vai”, dizia e gargalhava o fazendeiro em algumas festas realizadas em sua propriedade, segundo o pioneiro Salvador Marcondes que aos 18 anos começou a trabalhar como capataz para o cafeicultor.
Nas festas, a criança de origem indígena era exposta como um brinquedo para um grupo de magnatas que a encaravam como um pequeno e exótico animalzinho indefeso. As celebrações restritas atraíam muita gente de longe, não apenas do Paraná. “Mais tarde, me dei conta que fiquei frente a frente com pessoas que entraram para a história como figuras revolucionárias e heroicas”, destaca Marcondes que hoje tem 96 anos e uma lucidez invejável.
Alguns velhos endinheirados se ofereciam para pagar pequenas fortunas para ter uma noite de “prazeres” com o menino de olhos pequenos, lábios carnudos, traços femininos e pele tão coruscante que despertava inveja em mulheres de todas as idades. Apesar disso, o fazendeiro, que se dizia um representante dos anseios de Deus na Terra, jamais consentiu tal libertinagem. Também afirmava ser contra a pederastia.
“Cheguei a ver a patroa na cozinha praguejando o menino, dizendo a um padre que não entendia como Deus poderia permitir que um diabinho pagão tivesse uma pele tão bonita, enquanto ela, de origem cristã, uma fiel dizimista da igreja que investia muito dinheiro em produtos de beleza importados, pouco via resultados em sua pele e na de suas filhas”, narra o ex-capataz. O que encolerizava a patroa era o fator genético que afetava sua “linhagem” há mais de um século. Na infância, as mulheres de sua família já desenvolviam acne severa e tipos raros de erupções cutâneas.
Incentivada pela mãe, um dia a filha mais velha do fazendeiro, que tinha cerca de 14 anos, pediu a Urissanê para preparar um pouco de chá de erva-doce. Depois de pronto, o garoto caminhou até o quarto da jovem e, se esforçando para equilibrar uma pesada bandeja de prata, bateu na porta e perguntou se poderia entrar. Ela consentiu e, sentada na cama, ordenou que ele a servisse. Assim que bebericou o chá, o semblante da garota mudou. Enraivecida, retirou o bule da bandeja e lançou todo o chá no rosto de Urissanê.
Enquanto os lábios do garoto tremiam e as lágrimas deslizavam, misturadas ao líquido quente que escorria por toda a fronte queimada, a moça gritou: “Você queria queimar minha boca, não é mesmo, seu vermezinho? O que achou do chá? Gostoso, não é?”, escarneceu, sem se importar com o sofrimento da criança que se contorcia de dor, esfregando os pés pequenos e descalços – um contra o outro, sem emitir som.
Depois de ouvir os gritos da menina, a patroa de Urissanê correu até o quarto, acompanhada das outras duas filhas. Ignorando o rosto severamente ferido do menino, deu atenção somente ao estado emocional da própria filha. “O que você fez com ela, seu macaquinho? O seu lugar é na floresta, não aqui com pessoas de bem”, berrava, sacolejando o garoto que desmaiou e caiu no chão, batendo a cabeça contra o piso de tacos.
A grazinada chamou a atenção de Marcondes que foi até o quarto, onde encontrou o menino caído, quase irreconhecível, com a pele do rosto encorrilhada e disforme. “Era como ver outra pessoa. Pedi ao patrão que me deixasse cuidar do menino. Ele fez uma cara feia fumando um daqueles charutos importados de Cuba, tomou um trago de whisky Evan Williams, o seu preferido, esfregou os dedos na barba e falou: ‘Tá! Agora sai daqui e dê um jeito na situação. Não quero ficar no prejuízo’’’, revela o ex-capataz.
Pela manhã, ouvia-se de longe o fazendeiro discutindo em seu escritório com a mulher e as filhas. “Sua endemoniada, muita gente de nome vinha de longe só pra ver o menino. Ele atraía bom negócio pra mim. O que eu vou fazer agora? Bando de tapadas!”, vociferou esmurrando a mesa.
Quando o marido não estava por perto, as mulheres da casa comemoravam os ferimentos no rosto de Urissanê. Não velavam o prazer de ver o menino padecendo. “Acabou pra sempre aquela pele e aquele rostinho bonito e delicado. Como Deus é generoso!”, celebrava a esposa ajoelhada e levantando as mãos para o céu, ladeada pelas filhas que a imitavam.
Apesar dos ferimentos, o cotidiano de Urissanê em nada mudou – continuava trabalhando dia e noite. Aprendeu a dominar a dor e todos os dias antes de dormir recebia visitas de Marcondes e sua noiva Ruth Moreno. Sem dizer nada a ninguém, os dois se tornaram responsáveis pelo seu bem-estar. A rápida recuperação do menino também chocou a patroa. Não levou mais de três meses para o rosto de Urissanê voltar ao estado normal, sem qualquer indício de que algum dia tivesse sido queimado.
Ainda assim, antes de dormir, para não fugir da propriedade, o fazendeiro obrigava um pistoleiro de sua confiança a acorrentar Urissanê no canto de uma tulha abandonada com chão forrado de palha. Seus punhos severamente machucados ganharam cicatrizes com as formas irregulares de braceletes rudimentares. “Tinha dó daquela criança. Só que se eu o libertasse, o patrão mandava Tonho [um pistoleiro] matar nós dois antes que a gente percorresse um quilômetro. Eu era muito novo e também tinha medo”, diz Marcondes.
O garotinho acordava sempre às 5h e em jejum percorria quilômetros a pé até chegar ao cafezal. Acostumado a trabalhar na área rural de Paranavaí desde os quatro anos, já entendia tanto do plantio quanto da colheita do café. Mas o que mais intrigava os colonos que dividiam o serviço com aquela criança era a sua astúcia para reconhecer as mudanças de tempo e clima. “Ô indiozinho, fala pra nós se o dia vai ser bom ou ruim”, gritou um homem em meio à multidão de colonos numa manhã ensolarada de 1939. Enquanto muitos sorriam, outros ficavam em silêncio prestando atenção na criança mística, considerada pelos mais humildes como alguém que jamais seria corrompido pela maldade.
Urissanê, que usava apenas uma bermuda velha feita a partir de um saco de estopa, cheirou o ar por um instante. Descalço, se ajoelhou, inclinou o rosto no chão e aspirou. “Avatim! Avatim! É o cheiro da terra que conta. Vem vento! Vem água! E derruba até ambição e teimosia”, advertiu o menino com uma voz cantada mais suave que o balanço das folhas verdes do cafeeiro.
Alguns levaram a sério o vaticínio e lamentaram que seria mais um dia de serviço perdido, já que o patrão não pagava a quem não trabalhasse quando chovia. Outros zombaram da predição do menino, reclamando que não iriam abandonar o trabalho por causa de conversa fiada de criança. Uma hora depois, o sol desapareceu, principiando a chegada de uma escuridão intempestiva. O vento intenso, que soprava envergando com fúria os galhos dos cafeeiros, esparramou flores brancas pelo chão de terra, formando um tapete natural convidativo e perfumado.
Subitamente o vento cessou e a chuva começou a cair leve sobre os colonos ainda indecisos sobre ficar ou partir. Aqueles que confiavam nas palavras do menino se protegeram do vento e da chuva dentro de uma grande tulha do outro lado do carreador. Quando cessou, os mais céticos dançaram em torno dos cafeeiros, gritando: “Êêê indiozinho que num sabe de nada. Acha que vamo credita nessa conversa? A gente precisa é de dinheiro no bolso!” Menos de um minuto depois, um raio caiu sobre Josué, o homem que achincalhou Urissanê, matando-o instantaneamente diante de todos os colonos. Seus companheiros correram horrorizados até a tulha onde os mais precavidos se protegiam da intempérie.
Apesar da condição cativa, o garoto trabalhava com o vigor de um adulto. Nunca demonstrava tristeza, raiva ou qualquer sentimento negativo. Era como se fosse motivado a viver por um motivo que jamais seria entendido pelos homens, mulheres e crianças com quem convivia. “Parecia que nada o abalava. Ele tinha uma paz enorme dentro dele e isso incomodava muita gente”, explica Salvador Marcondes.
No final da tarde, logo que o trabalho no campo terminava, Urissanê retornava para a casa da fazenda, onde era obrigado a atender aos caprichos da família do patrão até as 22h. Às vezes, quando estava sozinho lavando os pés da patroa na sala de descanso, o menino levava golpes de relho e mesmo assim não se queixava ou reagia. A observava atentamente com um olhar plácido e reflexivo, dando a impressão de que sua mente era independente do corpo. “Uma vez vi a reação dele. Era de arrepiar. Pedi pra patroa não judiar do menino e ela alegou que estava educando ele”, lembra.
Nos raros momentos em que tinha tempo livre e podia brincar, ainda que sob supervisão de alguém, Urissanê deitava na relva e observava o céu. A noite o agradava muito por causa do brilho das estrelas e da acentuada olência fresca da selva. A mata nativa, não muito distante, parecia trazer lembranças de um tempo que nunca viveu. Estirado no chão e com as mãos apoiadas na cabeça, cantava uma curta canção chamada “O Sereno da Lua”. Falava de uma criança que todos os dias tentava enxergar na lua a sua própria história. Se a lua não fosse capaz de realizar esse desejo, que pelo menos o preenchesse com uma nova história.
O capataz se apegou tanto ao menino que um dia decidiu libertá-lo. Ele e sua noiva, Ruth, planejaram a fuga uma semana antes do Natal de 1939. Quando relatou o plano, Urissanê recusou a partida. Embora vivesse como um animalzinho que desconhecia outra realidade que não a da gaiola, argumentou que nunca se sentiria livre se fugisse. “Agradeço a bondade do senhor, mas não sei o que fazer sozinho lá fora. Não sei se existe algo pra mim, até descobrir vou vivendo dentro de mim”, justificou.
Salvador ficou decepcionado e perguntou como o menino poderia aceitar viver daquele jeito. “Sei quase nada sobre a vida, mas sinto que minha dor é passageira, mais passageira do que a dor do patrão ou da patroa. Esse povo tá marcado por um sofrimento que nunca vou carregar comigo. Quando apanho sinto mais pena deles do que de mim”, confidenciou, deixando o capataz em silêncio.
Na véspera de Natal, o jovem caiuá teve uma surpresa quando Salvador e Ruth o surpreenderam, abrindo a porta do barracão onde ele dormia. Assustado, saltou da cama de palha e só se tranquilizou quando reconheceu o casal. Transportando uma grande variedade de alimentos, ofereceram um banquete jamais visto por Urissanê, acostumado a se alimentar mal. Ocasionalmente comia escondido as parcas sobras da boa comida que a mulher do patrão mandava jogar no lixo.
Durante a ceia, Salvador e Ruth insistiram mais uma vez na fuga, deixando claro que partiriam com Urissanê. O menino acabou concordando. Marcondes então rompeu a machadadas as longas correntes que prendiam os punhos de Urissanê, o impedindo de dar mais de quatro passos. Depois de juntarem os poucos pertences, invadiram um barracão e furtaram um caminhão Dodge 1937 do patrão. O barulho atraiu a atenção do pistoleiro Tonho que não conseguiu dormir e saiu para caminhar por aquelas bandas. “Que tá acontecendo aí dentro? Vamos, Salvador! Saia já daí!”, gritou, em seguida mirando a espingarda na altura do peito de Marcondes.
Crente de que não escapariam com vida, o capataz fez uma proposta. Mostrou todo o seu dinheiro guardado dentro de um pequeno saco e o ofereceu a Tonho. Ele hesitou, franziu a testa, fez careta e recusou. Prestando atenção em Marcondes e mantendo os olhos em direção ao veículo, o pistoleiro viu Ruth e Urissanê lá dentro. O menino sorriu para ele como um filho que reencontra o pai depois de muito tempo. “Quero nada não. Pode ir embora. Vá, Salvador! Vá logo!”, ordenou.
Tonho virou as costas, cuspiu um naco de fumo no chão e desapareceu na escuridão sem olhar para trás, com a espingarda apoiada no ombro. Quando o caminhão se afastou da fazenda, Urissanê observou a casa do patrão até desaparecer do seu campo de visão. Marcondes e Ruth assistiram a reação do menino sem dizer palavra. “A lua também me acompanha. Acho que agora também consigo viver fora de mim”, disse o menino.
Saiba Mais
Graças a Salvador Marcondes e Ruth Moreno, Urissanê reencontrou a família em 1946. O jovem caiuá continuou se correspondendo com o casal até 1965, quando perderam completamente o contato.
Contribuição
Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:
O tesouro da Fazenda Brasileira
O dia em que um colono encontrou um pote cheio de moedas de ouro na serraria da Braviaco
Em 1958, João Mariano, colono de uma das maiores fazendas de café de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, foi convidado por um amigo, também chamado João, para procurar um tesouro enterrado na velha serraria da Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco) nos tempos da Fazenda Brasileira.
“Ele estava bem animado em trabalhar na fazenda porque ganhou dinheiro o suficiente para comprar uma potranca e uns porquinhos para criação. Um dia, chegou pra mim e disse: ‘Aqui, Graças a Deus, estou muito bem, João!”, lembra Mariano que visitava o amigo com frequência quando anoitecia.
Em uma noite, o companheiro fez uma sugestão: “Ô, João, vamos arrancar um tesouro ali naquela serraria velha?” Sem entender do que se tratava, Mariano titubeou. “Tesouro?”, interpelou. Com olhar sereno e voz remansosa, o homem respondeu: “Sim, um pote cheio de moedas de ouro que enterraram lá há muito tempo, na época da Brasileira.”
Ainda com dúvidas sobre a proposta do amigo, Mariano questionou se ele recebeu algum aviso, teve um sonho ou visão com o tal tesouro enterrado. Depois de acenar negativamente com a cabeça, e justificar que apenas acreditava na crença de que todo lugar abandonado esconde algo surpreendente, o homem se calou. “Procurar algo à toa, sem base, sem cabimento? Falei que assim eu não iria não!”, argumentou.
Um dia, sem fazer alarde, João reuniu seus pertences e partiu com a família. Antes, sem explicar o motivo, avisou ao amigo que decidiu retornar para São Paulo, seu estado de origem. “Só estranhamos porque ele estava bem aqui. Mas no fim achamos aquilo normal, né? Afinal, era comum um ou outro deixar Paranavaí para tentar a vida em outro lugar”, comenta Mariano.
Mais tarde, caminhando em meio à invernada, o colono João Mariano decidiu dar um passeio pela velha serraria da Braviaco. Quando chegou lá, teve uma surpresa. “Vi um buraco no chão e uma marca ainda brilhante, arredondada e exata de um pote. Lá dentro tinha uma moedinha de ouro. Aí falei: ‘Puta merda! Agora sei porque ele foi embora. Voltei e contei pro meu irmão que me lembrou que quando alguém acha um tesouro tem de deixar uma moedinha pra trás, num sinal de boa fé”, narra.
Quando o proprietário da fazenda soube do acontecido, gritou: “Filho da puta! Esse dinheiro estava na minha fazenda, então era meu. “Mas o senhor não foi arrancar o tesouro, não é mesmo?”, questionou Mariano que nunca mais teve notícias do amigo afortunado.
Saiba Mais
A fazenda situada entre a estrada para Tamboara e a Vila Operária somava mais de 400 alqueires.
Contribuição
Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:
Livro sobre a história de Paranavaí está à venda na Fundação Cultural
A obra de autoria do escritor Paulo Marcelo foi publicada pela primeira vez em 1988
Está à venda na Fundação Cultural de Paranavaí, por R$ 30, a nova versão do livro “História de Paranavaí”, do escritor Paulo Marcelo Soares da Silva, publicado pela primeira vez em 1988.
Relançado após 27 anos com recursos do Fundo Municipal de Cultura, o livro oferece aos leitores entrevistas integrais com pioneiros já falecidos há muito tempo e que fizeram parte das primeiras gerações de moradores de Paranavaí – nos tempos da Vila Montoya e Fazenda Brasileira. Tentando ser o mais imparcial possível, Paulo Marcelo apresenta várias versões de muitos fatos históricos, o que foge da unilateralidade e favorece o debate.
E mais importante, com a reedição do livro “História de Paranavaí”, o autor abre um novo caminho para despertar nos mais jovens a identificação com Paranavaí, o reconhecimento da própria identidade cultural regional e a valorização das histórias de luta e sofrimento que centenas de pioneiros viveram, principalmente nas décadas de 1920, 1930, 1940 e 1950.
Além de escritor, Paulo Marcelo é bacharel em direito e possui licenciatura em geografia. Participou e foi premiado em muitas edições do Festival de Música e Poesia de Paranavaí (Femup). Também recebeu prêmios de menção honrosa no 15º e 19º Jogos Florais de Barreiro, Portugal, e no 1º Concurso de Romances Juvenis da Academia Paranaense de Letras.
Tem contos publicados pela Empresa Tipográfica Casa Portuguesa, de Lisboa, em Portugal, e Casa da Cultura dos Trabalhadores da Quimigal, de Barreiro, também em Portugal. Ademais, é autor dos livros “O Lendário Capitão”, de 2012, e “Xondó e o Furto da Vassoura”, de 2013. “Encantamento”, a sua mais recente obra, contém ilustrações do próprio escritor e traz um conto sobre a história de um casal que se apaixonou em Paranavaí nos tempos da colonização. Para mais informações, ligue para (44) 3902-1128.
A máfia italiana chega a Paranavaí
Rastejando, buscaram armas debaixo de suas camas e se posicionaram enquanto uma saraivada de tiros penetrava a sala
Em junho de 1943, o ítalo-brasileiro Vittorino Alambare e os italianos Paolo Vergatti, Battaglia Di Carlo e Sotero Comezzino atravessaram São Paulo e dezenas de cidadezinhas e lugarejos para chegarem ao Noroeste do Paraná. No caminho, encontraram muitos veículos abandonados, se deteriorando. Mas nada chamou mais a atenção dos quatro do que um caixeiro-viajante com idade entre 25 e 30 anos, deitado aos pés de uma bracatinga, ladeado por um jipe com as rodas soterradas.
O rapaz estava morto. Teve os órgãos vitais dilacerados, possivelmente por uma onça. Mas os vestígios de sangue e couro em suas unhas indicavam que lutou com ardor antes de sucumbir. Dentro do veículo, encontraram documentos e uma foto do jovem com a esposa e dois filhos. Paolo se sensibilizou ao ouvir Alambare ler uma carta que o caixeiro jamais entregou à mulher. Na correspondência, Ildefonso Castanho justificou a partida.
“Não quero ser caixeiro-viajante até o dia de minha morte. O que poderia deixar de herança aos nossos filhos? Dívidas? Prometo buscá-los tão logo eu consiga melhorar de situação em um lugar chamado Fazenda Brasileira, onde um amigo me disse ser o direito às terras ofertado a todos que nutrem no coração o sonho de realização. Prometo que lhe enviarei dinheiro o quanto antes. Mande beijos e abraços às crianças e diga que nos encontraremos em breve”, escreveu Castanho, de acordo com o aposentado Genaro Alambare, filho de Vittorino.
Vergatti ficou preocupado com a situação da mulher que teria de criar três filhos sozinha. Em muitos anos, foi a primeira vez que os amigos o viram com olhos marejados por trás de um papel. Enterraram o corpo do caixeiro-viajante na mata, subiram a bordo do jipe Land Rover e seguiram viagem observando o Sol se pondo por trás da densa mata da região de Londrina.
“Onde fica essa Fazenda Brasileira? Seria longe demais? Será que muitas pessoas vivem lá? Parece ser um local pouco habitado. Talvez compense conhecer”, analisou Vittorino Alambare. Os demais também ficaram intrigados. Ainda assim nenhum deles tinha mais interesse no lugar do que Vergatti. O rapaz guardou a carta de Ildefonso Castanho no bolso da calça.
Em Maringá, para onde planejavam se mudar antes do incidente com o caixeiro-viajante, decidiram seguir adiante. No dia 25 de junho, perto de onde surgiria Nova Esperança, um denso nevoeiro matutino atrapalhou a visibilidade da estrada quando Alambare sentiu o impacto e o barulho de algo preso às rodas traseiras. Di Carlo e Comezzino desceram armados e circularam o jipe cautelosamente, revezando olhares em direção à floresta.
Apesar do susto, não havia nada embaixo do veículo. Nas imediações, ouviram apenas um acirrante som de água ecoando entre as copas das árvores. Caminharam alguns metros e encontraram um córrego e uma cristalina mina d’água intocada pelo homem. “Depois do banho, Paolo Vergatti saiu para procurar frutas quando foi surpreendido por uma onça-parda. Com o focinho sujo de sangue, o animal se aproximou dele, o observou, cheirou suas mãos e se afastou, correndo mata adentro. Paolo ficou calado e imóvel, sem entender o que aconteceu”, relata Genaro.
Horas depois de reiniciado o trajeto, encontraram um homem cego de meia-idade sobre um cavalo de pelagem escura. Percorrendo em sentido norte a margem de um carreador da futura Alto Paraná, o sujeito trajava apenas uma calça de estopa. Alambare reduziu a velocidade do jipe e perguntou se havia algum vilarejo por perto. Antes de responder, o homem se apresentou como Adolpho Aureliano. “Perdão se minha voz soa atrofiada, mas faz mais de 20 anos que vivo sozinho. Podem seguir adiante que vão encontrar o que procuram. Não estão longe. Ah! Mas se tiverem fome ou sede, venham à minha casa”, convidou.
Seguiram o galope e a pouco mais de um quilômetro viram um casebre com desenhos esfíngicos nas paredes, registrados com uma mistura de jenipapo e urucum. Dependendo da incidência do sol, as imagens pareciam ganhar vida. “Cada desenho retratava uma fase vivida por aquele homem. Em um deles, o viram arando a terra e recebendo ajuda de crianças. Os cômodos da residência eram divididos por galhos longos, finos e bifurcados”, diz Genaro Alambare.
Após o modesto banquete, Battaglia Di Carlo chamou a atenção dos amigos para uma foto com data de 21 de agosto de 1917 grafada com faca ou punhal na moldura de madeira. Jovial, Aureliano estava sentado em um sofá com a esposa e três filhos. O homem se aproximou e explicou que perdeu a família em 1921. “A maleita levou o que eu tinha de mais importante. A culpa foi minha por ter vindo pra cá em 1913. Não deu tempo de encontrar ajuda. Apesar de tudo, quero ficar aqui até o fim dos meus dias”, frisou.
Impotente e sentindo-se culpado pela morte da esposa e dos filhos que tinham entre cinco e nove anos, Aureliano descampou uma área erma a alguns metros de casa e lá ficou deitado, observando o Sol por horas até perder completamente a visão. “Eu sentia uma queimadura interna tão forte que até anestesiava a queimadura externa. Meu corpo pegava fogo, mas isso não era nada comparado ao meu coração que ardia em chamas”, confidenciou.
No canto da sala havia um piano francês Pleyel bem conservado e coberto por uma capa. Sobre ele, uma partitura de “A Sertaneja”, de Brasílio Itiberê. Sotero Comezzino, que estudou na Accademia Nazionale di Santa Cecilia, em Roma, pediu autorização para tocá-la. Aureliano, que circulava pelo ambiente como se a visão não lhe fizesse falta, acenou em aprovação e exibiu dentes tão brancos que pareciam esmaltados artesanalmente. Nos primeiros minutos, Alambare e Di Carlo ouviram um som estranho vindo do fundo da casa enquanto as mãos de Comezzino percorriam as teclas. Quando se aproximaram, Aureliano estava cuidando dos ferimentos de uma tranquila onça-parda rodeada de filhotes. Sem dizer palavra, se comunicaram com os olhos e voltaram para a sala.
“Aquele eremita transcendeu de alguma forma. Mesmo cego e solitário, não nutria desprezo pela vida, não praguejava. Meu pai dizia que Aureliano descobriu dentro de si algo que só poderia ser sentido ou compreendido por poucos seres humanos”, enfatiza Genaro. Depois da despedida, seguiram viagem. A floresta se tornou mais densa, tanto que em vários trechos tiveram de arrastar árvores tombadas e desviar de cipoais.
Assim que chegaram à Fazenda Brasileira, chamaram a atenção de curiosos na Avenida Paraná, a via mais movimentada da colônia. Crianças descalças cercavam o jipe e gritavam: “Oi, oi, oi, oi, oi!” e “Ô sinhô, de onde cês são?” Os italianos riam, se recordando da infância em Messina, na Sicília. Paolo Vergatti observou um vento repentino obrigando as mulheres a recolherem as roupas ainda úmidas do varal, evitando que a terra arenosa as sujasse. Alambare, que foi pedir informações em uma casa de Secos e Molhados, voltou dizendo que conheceu um fazendeiro chamado Marcolino Rufião. “Ele falou que tem uma terra boa a pouco mais de 20 quilômetros daqui. Quer vender pra voltar pra São Paulo. Se for viável, fechamos negócio”, sugeriu Vittorino.
No trajeto até a fazenda de Rufião, situada na região onde surgiu o Povoado de Cristo Rei, assistiram crianças saltando sobre pequenos tocos, jogando pião, gargalhando e correndo em círculos. “Aqui seremos homens comuns, passíveis de morrer no anonimato”, pontuou Paolo Vergatti. Quando chegaram à propriedade de pouco mais de 110 alqueires, gostaram do que viram. Só que alertaram Marcolino sobre as consequências de uma suposta trapaça.
“Confiamos na sua palavra e acredito que sua intenção de ir embora seja verdadeira. Só que se por ventura formos enganados ou alguém aparecer por aqui reclamando esta terra, vamos atrás do senhor para saldar a dívida”, prometeu Battaglia Di Carlo usando uma flanela do bolso para limpar cuidadosamente uma pistola Parabellum guardada em um estojo com forro de veludo vermelho. Marcolino pediu calma, sorriu e garantiu que eles não teriam problemas.
Na semana seguinte, Rufião não foi mais visto na Fazenda Brasileira. No entanto, após 15 dias, numa noite de sábado, Vittorino, Paolo, Battaglia e Sotero estavam conversando na sala quando ouviram dois disparos contra a porta principal da casa. Rastejando, buscaram armas debaixo de suas camas e se posicionaram estrategicamente enquanto uma saraivada de tiros penetrava a sala e atravessava a cozinha, causando buracos de diversos tamanhos. Os italianos ficaram em silêncio. Sem reagir, observaram quais eram os pontos menos atingidos pelos invasores.
Os quartos de Vergatti e Comezzino ocupavam as duas áreas menos vulneráveis da casa. Então se dividiram em duplas e aguardaram a aproximação dos atiradores. Em menos de uma hora, os sicilianos mataram os 12 invasores com tiros de curta e longa distância à base de pistola e carabina. Usaram como ponto de partida algumas fendas que permitiam ver quem se aproximava da entrada. A vantagem é que só podiam ser notadas por quem estava dentro da casa. Os dois últimos tiros foram disparados por Sotero que atingiu a cabeça de um invasor que tentou fugir.
Entre os mortos havia homens de 20 a 40 anos. A maioria se vestia com simplicidade. A exceção era um sujeito que trazia joias e ouro nas mãos, na boca e nos pés. O homem era Marcolino Rufião que num momento de desespero correu para tentar salvar a própria vida. “A inexperiência deles era tão grande que parecia que estávamos abatendo animais indefesos”, comentou Comezzino com os amigos.
Os corpos foram colocados dentro do caminhão de Rufião e enterrados numa área de mata nativa a cerca de dez quilômetros da fazenda, com exceção do cadáver de Marcolino, depositado em um buraco mais distante. O posicionaram com o peito para o chão. Suas pernas e braços foram cruzados e amarrados com retalhos das roupas ensanguentadas dos homens que morreram sob seu comando. Antes de taparem o forame com terra, seguraram a cabeça de Rufião e introduziram em sua boca dezenas de bagas de beladona.
“As pernas e os braços cruzados simbolizavam o desencontro, a perdição. Um desejo de que aquele homem nunca mais encontrasse o seu caminho, nem em outra vida. E os frutos tóxicos colocados em sua boca indicavam que foi condenado a passar a eternidade ébrio. Queriam que ele fosse reconhecido no outro mundo como um perene repositório de erva daninha”, relata Genaro, acrescentando que a boca do fazendeiro foi lacrada com a manga longa de uma camisa encharcada com o sangue do homem mais jovem do bando. Dias depois, o caminhão de Marcolino foi abandonado no Ranchão de Zinco, um cemitério de veículos perto do Porto São José.
Mesmo com o desaparecimento de Rufião, ninguém apareceu na Fazenda Niente, dos italianos. E conhecendo a má fama do homem, a polícia ficou satisfeita com o sumiço. Mais tarde, os quatro amigos foram até a Brasileira fazer compras num armazém na Avenida Paraná. Lá, ouviram uma história sobre uma família de italianos que estava se mudando para a Brasileira, trazendo um baú de barras de ouro. “A última vez que vi Marcolino, ele me disse que tinha uma proposta a fazer a esses italianos”, falou um senhor de olhos miúdos segurando um copo de cachaça durante conversa com um compadre.
A ideia de que Rufião confundiu os sicilianos com outra família de italianos que nunca chegou ao povoado intrigou Comezzino e Bataglia. Sotero gargalhou tanto na saída do armazém que chegou a esticar uma grande cicatriz que possuía embaixo do queixo. Paolo Vergatti se mantinha disperso, alheio às brincadeiras dos amigos. Em julho de 1943, pediu a ajuda de Alambare e pagou a um advogado de origem polonesa para datilografar uma carta com destino a Palmas, no extremo Sul do Paraná. A correspondência foi despachada pelos Correios de Londrina através do motorista da catita que fazia a linha Londrina – Fazenda Brasileira.
Junto da carta, Vergatti, se passando por Ildefonso Castanho, enviou um pouco de dinheiro. Dois meses depois, recebeu uma correspondência de Júlia Ramalho contando como os filhos estavam crescendo. Paolo se extasiava com o carinho e compreensão embutidos à escrita da moça. Era como se a chegada daquele pedaço de papel fosse a razão de sua existência, mesmo ciente de que as cartas eram destinadas ao falecido, não a ele.
Na segunda carta de Júlia, duas das crianças escreveram seus nomes no rodapé. Com o tempo a mulher ficou muito surpresa. Ela recebia por mês até três vezes mais do que o necessário para as despesas familiares. Era um sonho a possibilidade do marido ter se tornado alguém tão bem-sucedido em pouco tempo. Por correspondência, Vergatti se apaixonou por Júlia e adotou a personalidade de um pai de família. A natureza gentil e fraternal da moça o encantava. Júlia estranhou apenas quando o suposto marido pediu-lhe que banhasse a carta em seu perfume antes de enviá-la a ele. Ildefonso talvez fosse amável, mas não parecia dominado pelos rompantes passionais de Vergatti.
Sempre que o questionava sobre o dia em que poderia partir com os filhos para encontrá-lo, ele inventava alguma desculpa. Júlia suspeitou que o marido tivesse outra mulher na Fazenda Brasileira. A verdade é que Paolo temia a reação de Júlia. “À mesa, imagino ela me pedindo para levá-la à vila. No campo, vislumbro Roberto e Paula [filhos de Júlia] me convidando para brincar de esconde-esconde. Ah, Romeu! [o terceiro filho ainda bebê] O embalo no colo e o levo para conhecer os cafezais, onde seus intensos olhos negros, como pequeninos diamantes abissais, idealizam no solo arenoso o arquétipo de um parque. Sinto-me neste momento como um verme; incapacitado, inútil, infrutuoso! Se ei de pertencer a morte, que me leve para os umbrais rapidamente! Irrita-me a espera, mesmo quando o destino é deixar de ser humano para tornar-me húmus para esta terra”, segredou Genaro, citando trechos do rascunho de uma carta.
Em agosto de 1945, completou dois anos que os italianos se dedicavam à produção de café, milho e algodão. Sem contar com ajuda externa, trabalhavam apenas para ocupar o tempo e evitavam interagir com curiosos. Iam até a área urbana da Brasileira apenas quando necessário, passando despercebidos pela maioria. Em fevereiro de 1946, Júlia se irritou porque não recebia cartas do marido há mais de um mês. Então viajou para a Brasileira com o irmão Agnaldo Ramalho e os três filhos.
Graças à ajuda de um rapaz chamado Pedro, que era balconista em uma casa de secos e molhados, ficou sabendo que ninguém conhecia Ildefonso. Mas o jovem percebeu que a descrição do lugar de acordo com a correspondência era a mesma da propriedade de quatro italianos que faziam compras ocasionais no armazém. Então Julia decidiu se arriscar. Achou a fazenda, se aproximou da entrada da casa e antes que chamasse alguém foi recebida por Gernaro Alambare que trazia uma faixa preta no braço. De aspecto taciturno, não se importou em ser visto pálido, com os olhos inchados e vermelhos de tanto chorar.
Paolo Vergatti, Battaglia Di Carlo e Sotero Comezzino estavam mortos desde janeiro de 1946, vítimas de uma epidemia de leishmaniose tegumentar americana (LTA) que assolou a região. “Meu pai pediu que o irmão de Júlia levasse os sobrinhos para passear pelo pomar e contou a verdade a ela. Disse que Ildefonso Castanho morreu em 1943 e por compaixão Paolo Vergatti se passou por ele. Se apaixonou por Júlia, só que não teve tempo de ganhar coragem para relatar toda a história, preferindo se corresponder por dois anos e meio, enviando até três cartas por semana”, menciona Genaro.
Vittorino a levou para ver os túmulos dos três amigos, enterrados lado a lado, numa área coberta por acácias, a sudoeste da casa principal. Não havia nada escrito nas modestas e pequenas lápides brancas que traziam o mesmo desenho de três punhos unidos. Confusa sobre tudo que ouviu, e com as pernas trêmulas, Júlia agarrou o próprio vestido com as unhas e começou a chorar e soluçar diante do túmulo de Vergatti.
Sozinho, Alambare, que nunca entendeu porque a doença não o matou, retornou para Santos. Antes entregou a Júlia todo o dinheiro de Paolo Vergatti, guardado em uma mala escondida numa tulha. Acompanhada da família, a moça se mudou para a propriedade com o consentimento de Vittorino. Em pouco tempo, aprendeu a amar o homem que nunca conheceu. Todos os dias pela manhã, Júlia carregava um banquinho de cedro até o túmulo de Paolo Vergatti. Sentava ao seu lado e lia as dezenas de cartas enviadas por ele. Foi assim até outubro de 1967, quando Júlia faleceu em decorrência de um acidente vascular cerebral (AVC).
Vittorino recebeu a notícia em dezembro do mesmo ano, junto com a informação de que os filhos dela venderam a fazenda. Em janeiro de 1968, o novo proprietário demoliu a casa, as lápides e as acácias, relegando ao esquecimento a passagem dos amigos italianos por Paranavaí.
Sicilianos articularam o assassinato de um líder da Ndrangheta
Membros de um clã da Cosa Nostra de Messina, na Sicília, Paolo Vergatti, Battaglia Di Carlo, Sotero Comezzino e Vittorino Alambare ocupavam posições de destaque na organização. De acordo com Genaro Alambare, Vergatti e Di Carlo eram caporegimes (capitães) especialistas em minimizarem conflitos entre as famílias, evitando guerras desnecessárias.
Comezzino, conhecido como o “carrasco de sottocapo”, era um dos soldados mais temidos da Sicília nos anos 1930, considerado o responsável pela morte de cinco subchefes da Camorra e da NDrangueta. Alambare era um associado da Cosa Nostra e contrabandista com passagem livre pelo Porto de Santos.
O irmão mais velho de Battaglia, Domenico Di Carlo, foi um guerrilheiro da Resistência Italiana que ajudou a capturar e assassinar o ditador italiano Benito Mussolini. Os três fugiram da Itália após articularem o assassinato de um dos principais líderes da Ndrangheta, a máfia calabresa. O clã de Paolo, Battaglia e Sotero era contra a exploração de crianças que se expandia pelo país.
Curiosidade
Mesmo depois de Paranavaí ser desmembrada de Mandaguari em 1951, muitos ainda se referiam ao município como Fazenda Brasileira por causa do nome que surgiu na década de 1930.
Paranavaí, uma colonização centenária
A Braviaco começou a desbravar a atual área do Noroeste do Paraná em 1910
A história de Paranavaí teve início em 1910, quando a Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco), de propriedade do jornalista e empresário baiano Geraldo Rocha e do agrônomo baiano Landulpho Alves de Almeida, começou a desbravar o Noroeste do Paraná, mais tarde nominando Paranavaí e região como Gleba Pirapó.
Em 1926, o engenheiro agrônomo baiano Joaquim da Rocha Medeiros, funcionário da Braviaco, coordenou a derrubada de uma área para o plantio de 1,2 milhão de cafeeiros. À época, tiveram de criar uma estrada com 110 quilômetros de extensão ligando a Fazenda Ivaí, da qual a Vila Montoya faria parte, ao Porto São José, com a finalidade de promover transações comerciais com Guaíra e Porto Mendes, no Oeste do Paraná, e Argentina, para onde o café produzido seria transportado. Pelo mesmo caminho foi enviado todo o equipamento necessário para a viabilização de uma serraria, empreendimento sem o qual jamais seria construída a sede da Fazenda Ivaí, onde mais tarde surgiria Paranavaí.
Joaquim Medeiros viajou a Pirapora, Minas Gerais, em 1927, onde buscou 300 famílias de migrantes para trabalharem no plantio de café. Os levou até Presidente Prudente em um trem especial. Suportaram chuvas torrenciais que perduraram por 40 dias. Para piorar, a estrada estava intransitável. A única ponte que existia, do Rio Santo Anastácio, tinha caído, então tiveram de reconstruí-la assim que parou de chover. O engenheiro e os migrantes chegaram à Fazenda Ivaí uma semana depois. “Só mesmo o nordestino para suportar tanto desconforto”, registrou Medeiros em um diário pessoal.
A década de 1920 é apontada como a mais difícil para os moradores da colônia pelo fato de terem vivido isolados no meio da mata, correndo o risco de serem atacados por animais selvagens. Além disso, o difícil acesso a outras localidades complicava mais ainda a situação. Era preciso percorrer mais de cem quilômetros para encontrar algum povoado. Até mesmo a carne consumida na Fazenda Ivaí vinha de muito longe, era comprada no Mato Grosso (atual Mato Grosso do Sul), para onde um encarregado e alguns peões viajavam enfrentando uma série de desventuras para trazer a boiada em um barco a vapor. A viagem durava até semanas. Às vezes, era preciso percorrer mais de 500 quilômetros.
Quem cuidava dos negócios da Braviaco na colônia e em toda a região de Paranavaí era o diretor e engenheiro agrônomo Landulpho Alves de Almeida, que se tornaria senador e interventor federal da Bahia. Irmão de Landulpho, Humberto Alves de Almeida era o responsável por coordenar o transporte de café e tinha como empregado de confiança o pioneiro pernambucano Frutuoso Joaquim de Sales, considerado o primeiro cidadão de Paranavaí, homem que evitava falar abertamente sobre o início da colônia.
Em 1928, a Vila Montoya, baseada na monocultura cafeeira, ganhou contornos de cidade. A colônia oferecia tudo que era necessário à sobrevivência dos mais de seis mil moradores. No entanto, o único acesso ao distrito era a estrada do Porto São José, na divisa com o atual Mato Grosso do Sul. Todos que iam para Montoya usavam a mesma via, que servia também para ligar a colônia ao Porto Ceará e a Presidente Prudente, no Oeste Paulista, de acordo com dados do livro “História de Paranavaí”, do escritor Paulo Marcelo Soares Silva, e publicado pela Prefeitura de Paranavaí.
No passado, pela mesma estrada se chegava à Gleba-1 Ivaí, Piracema e Povoado de Cristo Rei. Quem precisava viajar para outras cidades do Paraná era obrigado a atravessar a divisa com o Estado de São Paulo, embarcar em um trem que percorria a antiga Estrada de Ferro Sorocabana até Ourinhos, e de lá partir para Tibagi, no Centro Oriental Paranaense, a quem a Vila Montoya pertencia. Por muitas vezes, o pioneiro Frutuoso Sales fez esse trajeto. Percorria parte do caminho a pé e depois a cavalo até chegar à Sorocabana. Para Sales, que quando se mudou para a região atravessou o Rio Paranapanema a nado, por maiores que fossem as dificuldades da época, nada superava o empenho e a vontade dos migrantes, principalmente nordestinos, de se restabelecerem sob o signo do ouro verde, que já despontava no Noroeste e amealhava os sonhos de muita gente.
Em 1930, foram trazidas a Montoya cerca de 1,2 mil famílias de migrantes para trabalharem nas lavouras de café sob regime de colonato. O trabalho foi interrompido inesperadamente um ano depois. Após a Revolução de 1930, o título de propriedade da Gleba Pirapó foi cassado, o que comprometeu o desenvolvimento da Vila. De acordo com Joaquim da Rocha Medeiros, essa foi a punição do Governo Federal contra a Braviaco, de Geraldo Rocha e Landulpho Alves, que apoiou a candidatura de Júlio Prestes, eleito, mas deposto pelos aliados de Getúlio Vargas.
“Colonos e funcionários da empresa, inclusive eu, tiveram que abandonar Montoya, obrigados a deixar tudo para trás e percorrer a pé, levando família, uma distância de 220 quilômetros”, revelou o engenheiro agrônomo em registro pessoal. Em vez de assegurar o emprego dos milhares de trabalhadores que viviam na Vila Montoya, assumindo a colonização da região ou repassando a concessão a uma nova colonizadora, supostamente o Governo Federal preferiu, por questões ideológicas políticas, ignorar toda a problemática socioeconômica que surgiu na colônia.
Em 1932, o tenente-coronel Palmiro, da Polícia Militar do Paraná, e o diretor da Companhia Brasileira de Viação e Comércio, o engenheiro agrônomo Landulpho Alves de Almeida, retornaram a Montoya. De acordo com informações do livro “Pequena História de Paranavaí”, de autoria do juiz de direito Sinval Reis, e publicado em 1962, Palmiro e Almeida se surpreenderam ao ver a colônia desabitada. Se depararam com muitas casas destruídas, completamente queimadas. Restaram poucos moradores, dispersos por vários pontos. “Estavam aqui Frutuoso Joaquim de Sales, José Firmino da Silva, João Clariano, Velho Caboclo, Marins, Velho Roque e mais alguns”, citou o juiz.
Os remanescentes continuaram na fazenda porque não achavam que valeria a pena migrar novamente, reviver as mesmas dificuldades que tiveram quando chegaram ao distrito. Além disso, ainda havia cafeeiros para serem explorados. Os poucos colonos deram continuidade à produção, levando o café para ser comercializado em Presidente Prudente, no Oeste Paulista, conforme fazia a Braviaco antes de ter a concessão de terras da colônia revogada. Quem também veio à região em 1932 foi o arrendatário Mario Pereira que construiu em Montoya a residência mais luxuosa do Noroeste do Paraná, criada sob o padrão estético europeu. A mansão também foi consumida pelas chamas. Sobre tais fatos, ao longo de décadas, os pioneiros de Paranavaí levantaram três possíveis suspeitas.
Especula-se que o Governo Vargas, em represália à Braviaco, tenha enviado uma tropa do Exército Brasileiro ao distrito para promover a destruição das residências, além da queima de milhares de pés de café. A segunda hipótese levantada por pioneiros é a de que a própria companhia poderia ter feito isso para se vingar do Governo Federal e também evitar que outros usufruíssem de suas benfeitorias. Já a terceira suspeita diz respeito aos grupos de criminosos que viajavam pelo Oeste Paulista e Norte do Paraná no princípio dos anos 1930, realizando atos de vandalismo, assaltos e saques em colônias pouco povoadas.
Em novembro de 1930, quando Vargas se tornou presidente do Brasil, o Paraná ainda preservava 87% de vegetação primitiva. O Governo Federal tinha grande interesse na quase inabitada Vila Montoya. A área então, antes colonizada pela Companhia Brasileira de Viação e Comércio, foi repassada ao jornalista e político gaúcho Lindolfo Collor, um dos participantes da Revolução de 1930, que se tornou o responsável legal pela região de Paranavaí por alguns meses, até que decidiu se afastar do Governo Vargas, tornando-se oposicionista.
Em 8 de abril de 1931, ano em que a extinta Vila Montoya foi nominada como Fazenda Brasileira, o interventor federal do Paraná, o general Mário Tourinho, assinou um decreto retomando as terras da localidade e autorizando o início dos loteamentos. A morosidade para se conseguir um lote fez muitos moradores irem embora para outros povoados, locais onde o acesso era mais fácil e menos burocrático. O ponto positivo é que o decreto afastou muitos colonizadores que exploravam os colonos nordestinos e nortistas, vistos como mão de obra barata. A informação de que o governo acompanharia de perto tudo que acontecia intimidou muita gente, principalmente os exploradores.
Em 1933, o interventor Manoel Ribas visitou a Fazenda Brasileira para acompanhar de perto a situação da colônia. O acesso ao povoado era muito difícil e se restringia a mesma estrada que findava no Rio Paranapanema. Para facilitar o contato com outras colônias e cidades do Paraná, além de diminuir a influência paulista na localidade, Ribas pediu que o engenheiro civil Francisco Natel de Camargo iniciasse a abertura de outra estrada que começava em Arapongas, no Norte Central, se estendendo até a antiga Estrada Boiadeira. Entretanto, é válido ressaltar que a colonização da Brasileira só voltou a ser intensificada em 1935, fato que gerou especulações sobre o destino da colônia, pois surgiram incertezas sobre quais procedimentos seriam adotados pelo governo para o repovoamento.
A década de 1930 entrou para a história de Paranavaí como um período bastante obscuro, marcado por muitos crimes e injustiças. Quem fixava residência na brasileira para trabalhar nas lavouras de café, e mais tarde tomava a decisão de ir embora, era punido brutalmente. Ingênuo, não raramente o migrante insatisfeito ia até o encarregado para quem informava o desejo de partir, então acertava os vencimentos e recolhia os pertences. Enquanto aguardava às margens do Rio Paranapanema a chegada de uma balsa com destino ao Porto Ceará, no Estado de São Paulo, o colono e toda a sua família eram assassinados a tiros por jagunços que trabalhavam para os colonizadores.
Alguns eram mortos às margens do rio. Outros eram abatidos quando estavam de costas, durante a travessia. Segundo relatos de pioneiros, os capangas abriam os corpos das vítimas, extraíam todas as vísceras, enchiam de pedras, costuravam e jogavam no Paranapanema, conhecido pelo enorme cardume de piranhas. Os relatos sobre os crimes praticados contra os colonos impediram que muita gente fosse embora da Fazenda Brasileira. As histórias que disseminavam terror e medo se espalhavam pelo Paraná, São Paulo e Mato Grosso.
Nem mesmo os balseiros do Porto Ceará ousavam se aproximar do povoado, inclusive alertavam todos os passageiros sobre os perigos da Brasileira. Tal experiência foi vivenciada pelo pioneiro paulista Natal Francisco e seu irmão que seguiram a recomendação de um balseiro e deixaram um veículo Ford movido a gasogênio no porto. “Ele disse que perderíamos o veículo se o guiássemos até a Brasileira”, justificou Natal Francisco em entrevista registrada no livro “História de Paranavaí”, do escritor Paulo Marcelo Soares da Silva. Após a visita que teve duração de oito dias, Francisco e o irmão estavam retornando ao Porto Ceará quando ouviram o som de um acordeão. Surpresos, mas curiosos, adentraram a mata. Antes que vissem qualquer coisa, uma mulher gritou.
“Pelo amor de Deus, não mata nóis. Tamo fugindo, mas tamo quase morto.” Mesmo assustado, Natal e o irmão ligaram a lanterna para ver se tinha mais alguém ali. O marido da moça estava caído no chão com a roupa rasgada e uma sanfona sobre o peito todo ensanguentado. O casal de colonos enganou os jagunços e fugiu da Fazenda Brasileira. Às margens do Paranapanema, improvisaram uma jangada para a navegação. Enquanto isso, alguns capangas chegaram até a beira do rio. De lá, atiraram e acertaram o rapaz. A ambição e a ganância custaram muitas vidas, e não apenas de colonos, mas também de quem era capaz de enfrentar qualquer conflito por questões de posse.
Mesmo com o esvaziamento populacional, a briga por terras acirrou-se. Posseiros trocavam ameaças sem se importar com os transeuntes, o que já dava a ideia de que algo muito ruim viria depois. Quando o Governo do Paraná decidiu intervir, dando prazo de 90 dias para os grileiros desocuparem as áreas invadidas, a situação já estava fora de controle. Chegou um momento em que ninguém mais trocava ameaças, simplesmente matava o seu desafeto. À luz do dia, não era raro ouvir tiros vindo de várias direções. Cadáveres eram vistos no centro da Brasileira, caídos sobre o solo arenoso. Dependendo da intensidade da corrente de ar a terra cobria superficialmente o morto. Aqueles que não tinham familiares eram deixados onde estavam, abandonados sobre o chão, até começarem a se decompor. Apenas quando o odor da volatização de cadaverina e putrescina começava a tomar conta do ambiente que alguém dava um jeito de se livrar do corpo.
Estima-se que dezenas de pessoas foram assassinadas nesse período, embora seja impossível precisar o total de vítimas. Muitos crimes eram ocultados pelos jagunços que se livravam dos cadáveres nas imediações do Porto São José, na Lagoa do Jacaré, confluente do Rio Paraná. Lá, os corpos eram despejados porque os jacarés eliminavam as provas do crime. Em 1936, quando a Fazenda Brasileira já era famosa pela onda de crimes, o Governo Federal exigiu uma medida radical do interventor federal Manoel Ribas. A decisão foi enviar o tenente gaúcho Telmo Ribeiro, famoso por métodos menos ortodoxos de impor ordem. Com o tenente, conhecido como rápido no gatilho, veio um grupo de mercenários paraguaios de Pedro Juan Caballero. Não levaram mais do que alguns meses para dar fim ao clima de faroeste que imperava na Brasileira. Segundo pioneiros, melhoraram a situação, mas também mataram muita gente.
Em 1942, Ulisses Faria Bandeira, funcionário da Inspetoria de Terras do Estado, dirigida por Francisco de Almeida Faria, foi transferido de Londrina à Fazenda Brasileira para demarcar a primeira via da colônia, a Avenida Paraná. O trabalho de Bandeira tinha relação direta com a chegada de migrantes e imigrantes à Brasileira. Aparentemente a demarcação simbolizava o interesse do Governo do Paraná em investir no desenvolvimento do povoado, o que atrairia a atenção de todos que por aqui passassem. A estratégia deu certo, e em setembro de 1943 um grande número de pessoas chegou à Fazenda Brasileira, onde compraram muitos lotes de terras.
Naquele tempo, atrair quem buscava melhores condições de vida era uma tarefa complicada, pois o acesso a Paranavaí era tão precário que nenhum caminhoneiro de Londrina, no Norte Central Paranaense, cidade por onde passavam os muitos migrantes que vieram para cá, aceitava realizar um frete até a Brasileira por menos de 1,5 mil cruzeiros, preço muito elevado se comparado a outros destinos. Ainda assim, muitos insistiam na viagem, pagavam o que fosse necessário para chegar ao povoado do qual ouviam falar muito bem. Mas como a propaganda sempre supera a realidade, a verdade é que a colônia era bem desorganizada, se resumia a um amontoado de pessoas de diferentes etnias dispersas por todos os lados. “Quando cheguei aqui só a Gleba 1-A tinha sido demarcada, um trabalho do engenheiro Alberto Gineste”, lembrou o pioneiro Ulisses Faria Bandeira.
No ano seguinte, o marceneiro curitibano Hugo Doubek estava participando de uma exposição de artes em Curitiba quando conheceu o diretor do Departamento de Geografia, Terras e Colonização (DGTC) do Governo do Paraná, Antonio Batista Ribas. O diretor convidou Doubek para ser o administrador geral da Fazenda Brasileira; o marceneiro aceitou. Hugo Doubek já conhecia a Brasileira, onde trabalhou desmanchando casas em algumas áreas para reconstruí-las em outros pontos. Em 1942, não havia mais residências disponíveis na Brasileira, pois as que restaram da época de Montoya foram desmanchadas e realocadas em outras áreas. Por muitas vezes, os colonos pensaram em ir para o mato derrubar árvores para aproveitar a madeira. Porém, ninguém na colônia tinha equipamento necessário para o serviço e o transporte. A madeira ainda era trazida de Marialva, até que decidiram construir uma serraria.
O inspetor Ulisses Faria e o administrador da colônia, Hugo Doubek, fizeram o trabalho de demarcação territorial da colônia a pé, tendo como referência a localização de todos os moradores do povoado. “Recebi a ordem para achar toda aquela gente, obedecendo certa metragem que margeava córregos e rios. Foi tudo feito sem condução, e só achei os primeiros colonos a vinte quilômetros da Inspetoria de Terras”, destacou Doubek.
Em 1944, a Gleba 1-A, ocupada principalmente por paulistas, mineiros, cearenses e pernambucanos, já somava 30 quilômetros de estrada que a ligava à Fazenda Brasileira. Em entrevista ao jornalista Saul Bogoni, Bandeira revelou que havia inúmeras colônias em Paranavaí porque muitos pioneiros chegaram antes de 1940, o que foi percebido somente durante o trabalho de campo. A Gleba 2 foi a única área da Brasileira não demarcada por Doubek e Bandeira. Quem se encarregou do trabalho em janeiro de 1944 foram os engenheiros Artur Oliva e Lota Chimoca, que percorreram uma área superior a 15 mil alqueires, onde ainda havia muita vegetação primitiva. “A Gleba 2 tinha como ponto de partida a estrada que vai para o Porto São José”, garantiu Ulisses Faria que naquele ano tomou a iniciativa de investir no abastecimento de água. Bandeira conseguiu uma bomba com motor a gás para fazer a captação. A ideia beneficiou mais de cem famílias.
Pelo fato da colônia ter surgido sob a égide da cafeicultura, as principais ruas e avenidas foram traçadas visando o escoamento das produções, não o desenvolvimento da cidade. Prova de tal fato é que mesmo com o passar dos anos as vias foram asfaltadas, mas não redimensionadas para atender a demanda advinda com o progresso. Exemplos são as ruas e avenidas estreitas do centro da cidade. As vias dos bairros mais tradicionais de Paranavaí, como o Jardim Ibirapuera, Jardim Iguaçu, Jardim Ouro Branco e região do Colégio Estadual de Paranavaí (CEP), também foram abertas para facilitar o transporte de café, arroz e outras culturas. Paranavaí se ligava ao Porto São José, para onde toda a produção era escoada até outros estados, como Mato Grosso e São Paulo.
Embora a colonização de Paranavaí tenha sido uma consequência da formação da Gleba Pirapó em 1910, o nome Paranavaí surgiu apenas em 1944, por sugestão do engenheiro Francisco de Almeida Faria que destacou a necessidade de batizar a cidade com nome único. Pouco tempo depois, a partir do neologismo que é uma junção dos Rios Paraná e Ivaí, surgiu a Colônia Paranavaí. Naquele ano o povoado tinha cerca de 500 habitantes, distribuídos por 80 casas feitas de tabuinhas velhas. Os pontos de referência da colônia eram o Hotel da Imigração, que ficava ao lado do Fórum Dr. Sinval Reis, a Inspetoria de Terras, o primeiro Grupo Escolar e o Hospital Professor João Cândido Ferreira, conhecido como Hospital do Estado, onde se situa a Praça da Xícara e o Colégio Nobel. Muitos investidores se interessaram pela região considerada ideal para a cafeicultura em função das grandes áreas de solo virgem. Um dos colonizadores que apostou no progresso do Noroeste do Paraná foi o engenheiro civil Francisco Beltrão, da Sociedade Técnica Engenheiro Beltrão, que começou a comercializar lotes da Colônia Paranavaí em 1946.
O interesse de Beltrão pela região surgiu bem antes, no final da década de 1930, porém, só recebeu o aval do Ministério da Justiça em 14 de dezembro de 1943. Depois ainda teve de aguardar a expedição do título de propriedade liberado pelo Ministério da Agricultura em junho de 1946, segundo informações do escritor Paulo Marcelo Soares da Silva. Todos os documentos diziam respeito à compra de 17 mil hectares de terras que até então pertenciam ao Governo Federal em área próxima às propriedades da Companhia Norte do Paraná. Boa parte das posses do engenheiro na região de Paranavaí se situava em áreas que mais tarde se tornariam o município de Tamboara, Seara, Suruquá e Anhumaí. Na década de 1950 foi a vez de pioneiros como Carlos Antônio Franchello e Enio Pipino, da Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná (Sinop), apostarem no progresso regional.
Em 14 de dezembro de 1951, com o empenho do primeiro vereador de Paranavaí em Mandaguari, Otacílio Egger, que teve ajuda do pioneiro paulista Paulo Tereziano de Barros, a colônia conquistou a emancipação política por meio da lei estadual nº 790. No entanto, foi necessário esperar mais um ano para a elevação de Paranavaí a município, após a eleição que elegeu o médico José Vaz de Carvalho como prefeito de Paranavaí. Ele obteve 2702 votos contra 1607 do adversário Herculano Rubim Toledo. De acordo com informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Paranavaí contava com 22.260 habitantes em 1951. À época, Mandaguari tinha 15.434 e Maringá possuía 8.898 moradores. Em 14 de dezembro de 1952, quando Paranavaí se tornou município, a população local somava 25.520 habitantes, segundo o IBGE.
A colonização na região de Paranavaí, intensificada em 1946, ganhou tanta força que anos depois superou as regiões de Maringá e Umuarama. O que contribuiu para o desenvolvimento local foi o trabalho das colonizadoras de capital privado. Além disso, de acordo com dados do Instituto Ambiental do Paraná (IAP), a região de Paranavaí somou 90 milhões de pés de café antes do final da década de 1950, uma marca que deu visibilidade nacional ao Noroeste do Paraná. As campanhas publicitárias veiculadas por todo o Brasil, mas principalmente em cidades do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, surtiram tanto efeito que em Paranavaí foram vendidos milhares de imóveis, entre lotes urbanos, chácaras e sítios. Segundo informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), isso justificou os 307 mil habitantes da região de Paranavaí em 1960.
Entre os anos de 1940 e 1950, já viviam em Paranavaí, além de migrantes de todas as regiões do Brasil, portugueses, italianos, alemães, poloneses, russos, ucranianos, espanhóis, japoneses, franceses, suíços, húngaros, sírios e libaneses, além de povos de outras etnias. Muitos moradores diziam que Paranavaí tinha tudo para ser a “terceira capital do Paraná”, logo atrás de Curitiba e Londrina. Os habitantes se baseavam no fato de que a região de Maringá somava 237 mil habitantes e a de Umuarama cerca de 253 mil, conforme registros do IBGE. Em 1960, com exceção de Curitiba, se tratando de desenvolvimento, Paranavaí só perdeu para a região de Londrina que chegou aos 600 mil moradores. Paranavaí teve uma evolução exemplar. A cidade era vista como símbolo de progresso no Paraná, uma imagem que ganhou solidez em 1956, quando uma pesquisa da Associação Brasileira dos Municípios apontou Paranavaí como uma das cinco cidades com maior índice de desenvolvimento do país.
Saiba Mais
O ensaio “Paranavaí, uma colonização centenária” foi premiado em Curitiba em 2011, no Concurso Estadual de Ensaios, realizado pelo Instituto Histórico e Geográfico do Paraná (IHGPR), com curadoria da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Referências
SILVA, Paulo Marcelo Soares – História de Paranavaí – 1988.
GOEVERT, Ulrico – História e Memórias de Paranavaí – 1992.
FOERST, Alberto; WUNDERLICH, Henrique; LIPPERT, Burcardo; Deckert, Adalberto – As Aventuras de Três Missionários Alemães em Paranavaí – 2011.
BECK, Jacobus – Minha Viagem à Região Missionária de Paranavaí – 1952.
REIS, Sinval – Pequena História de Paranavaí – ?
STECA, Lucinéia Cunha e FLORES, Mariléia Dias – História do Paraná: do século XVI à década de 1950. Editora UEL. Londrina – 2002.
FILHO, José Vicente – As Nossas Histórias – 2005.
Revista Grande Noroeste – edição de dezembro de 1991.
Jornal Diário do Noroeste – edição de 14 de dezembro de 2002.
Pesquisa oral feita com pioneiros de Paranavaí.
Depoimentos do projeto Memória e História de Paranavaí.
Contribuição
Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:
O paraíso das borboletas
Nos anos 1950, os estrangeiros chamavam Paranavaí de paraíso das borboletas
No verão dos anos 1950, o sol atingia Paranavaí, no Noroeste do Paraná, com tanta intensidade que as crianças aproveitavam para brincar arremessando pequenas porções de areia quente.
As mesmas crianças corriam descalças pela cidade, sem se importar com as bolhas que se formavam nas solas dos pés depois de minutos em contato com o chão cálido. Para os pequenos, tudo era diversão na época em que as roupas do varal secavam em tempo recorde. As crianças também penduravam em cipós e se lançavam com o objetivo de atingir buracos cavados no chão. Quem acertasse mais vezes, era o vencedor da brincadeira.
Para os estrangeiros, Paranavaí era o paraíso das borboletas. Tal afirmação foi feita pelo padre provincial alemão Adalbert Deckert, de Bamberg, em artigo publicado na revista alemã Karmelstimmen em 1955. “Borboletas grandes e coloridas cruzavam nosso carro o tempo todo. Algo que para nós europeus era uma original lembrança”, comentou Deckert. A opinião era partilhada por muitos estrangeiros.
Havia tantas espécies de borboletas em Paranavaí que era comum milhares pousarem nas rodas de um jipe. Quando o motorista parava o veículo, ele via os pneus adornados pela policromia das borboletas. “Também havia muitas mariposas com até seis centímetros de comprimento. Eram tão grandes e numerosas que quando invadiam a igreja zumbiam de tal maneira que dava até dor de cabeça”, revelou frei Adalbert.
Contribuição
Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:
Sobre matanças e os temidos quebra milho
Experiências e impressões sobre criminosos que viveram em Paranavaí nos tempos de colonização
Embora tenha falecido há muitos anos, o frei alemão Ulrico Goevert, um dos pioneiros religiosos de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, tinha o hábito de registrar muito do que via e ouvia na antiga Fazenda Brasileira. O primeiro diário de Goevert sobre os fatos aqui vividos data de 1951. Sete anos mais tarde, a convite do padre provincial Adalbert Deckert, de Bamberg, no estado alemão da Baviera, o frei começou a publicar suas experiências em Paranavaí na revista germânica Karmel-Stimmen, onde ganhou uma coluna periódica.
Entre os relatos que mais chamaram a atenção dos alemães está um sobre as matanças promovidas pelos quebra milho, como eram chamados os jagunços e grileiros violentos que viviam na região de Paranavaí entre os anos 1940 e 1950. “Muitos que aqui chegavam de outros estados e países buscavam construir uma nova vida. Tudo isso resultou em uma grande mistura internacional”, conta Ulrico Goevert, acrescentando que no meio de tanta gente havia famílias sonhadoras, oportunistas gananciosos e aventureiros preocupados apenas com o presente.
O frei alemão admitiu anos mais tarde que entre 1951 e 1958 foi procurado por quebra milho das mais diversas origens. “Não foram poucas as confidências de assassinatos e crimes hediondos. Me procuravam pedindo para ajudar a tirar as mortes da consciência”, lembra. O contato frequente com a comunidade fez Goevert se aprofundar um pouco mais sobre o passado duvidoso de uma significativa parcela da população local. “Eu era procurado até por aqueles que não queriam mais do que continuar a sua velha safadeza neste novo lugar”, declara. Boa parte pedia informações ao padre sobre como providenciar novos documentos para dar início a uma nova vida, se isentando dos crimes do passado.
Em Paranavaí, no final dos anos 1940 até a metade da década de 1950, muita gente conseguiu mudar de nome, enganando a polícia e os perseguidores que percorriam milhares de quilômetros para acertar as contas. “Aqueles que demonstravam verdadeira boa vontade, eu consegui ajudar, possivelmente os livrando da morte. O que mais podia fazer se não contribuir para torná-los membros úteis de uma comunidade?”, questiona o frei alemão na coluna mais lida da revista Karmel-Stimmen em 1958.
Perdulários, os quebra milho eram temidos e chamavam muita atenção em Paranavaí pelos gastos astronômicos com bebidas, comidas e orgias em locais como a Boate da Cigana. No entanto, algumas festas eram particulares e aconteciam em locais afastados da cidade. “Eles apenas ordenavam que buscassem as moças, escolhidas a dedo, que iriam servir para o lazer”, confidencia o pioneiro cearense João Mariano.
Tudo era custeado com pequenas fortunas conquistadas em um curto período de tempo explorando mão de obra barata na derrubada de mata e lavouras ou cobrando dívidas e desapropriando terras ilegalmente. “Eram promotores de um estilo de vida totalmente imoral e leviano. Não tinham interesse em mudar. Viviam em função da sequência roubo, homicídio e morte”, registra o alemão.
Apesar de não haver dados sobre a quantidade de quebra milho nos tempos da colonização, é possível inferir que era o suficiente para amedrontar a população. “Não se passava um mês sem eu ter de dar a unção a alguma vítima de assassinato, nem sempre o morto fazia parte desta leviana corja. Tivemos muitos homicídios por causa de direitos de posse”, frisa Ulrico Goevert.
Os crimes eram quase inevitáveis quando dois ou mais proprietários de um mesmo pedaço de terra se encontravam. Um apresentava ao outro o documento que dizia ser legal e reivindicava o direito da área. “Um não queria ceder e muito menos o outro. A discussão só acabava quando puxavam o revólver”, afirma o frei que presenciou algumas dessas situações. Com o tempo, o alemão começou a tentar entender como várias pessoas tinham diferentes escrituras de uma mesma terra. Depois de muito pesquisar, Goevert descobriu que a diferença entre um documento e outro ultrapassava décadas.
A verdade é que em outros tempos alguns oportunistas compraram terras em áreas não colonizadas de Paranavaí e desistiram de construir, levando em conta o investimento com derrubada de mata e povoamento. Então esperavam anos, até alguém iniciar a colonização da região. O tempo passava e o governo autorizava uma nova venda de uma área comercializada muito tempo antes. “Quando tudo ficava aberto, limpo e habitável aparecia gente até com documentos do Século XIX e a confusão se armava”, detalha o líder religioso.
Não é à toa que até hoje há pioneiros em Paranavaí que culpam o governo federal e o governo paranaense por diversos assassinatos provocados por conflitos de posse e comissão de terras. “A situação esquentava e ninguém fazia nada. Se o poder público entrasse no meio para tentar amenizar a situação, quem sabe até disponibilizando uma nova terra à parte lesada, teríamos evitado tantas mortes. Com o sangue quente, e ninguém para ajudar, o peão perdia o controle e matava”, pondera Mariano.
As colonizadoras também ignoravam as negociações anteriores e simplesmente continuavam a atrair mais colonos com a venda de lotes pagos em pequenas parcelas. “Também perdi as contas de quantas mulheres apareceram reclamando a paternidade do filho e mostrando a foto do pai que já tinha outra família em Paranavaí”, desabafa o frei.
Normalmente o homem fugia de madrugada, abandonando as duas mulheres. A vontade de escapar da responsabilidade era tão grande que o sujeito atravessava a densa mata fechada habitada por animais silvestres e ainda cortava o Rio Paraná com algum bote. “É quase certo que no Mato Grosso o fujão começava tudo de novo”, lamenta frei Ulrico.
O perfil e a conduta dos quebra milho
De acordo com o pioneiro cearense João Mariano, os quebra milho eram homens das mais diversas origens que podiam andar em grupos, duplas ou sozinhos. Chegavam a Paranavaí com um plano de ação definido. Eram contratados para comandar as mais diversas atividades, desde grupos de peões atuando na derrubada de mata até cobranças de dívidas e comissões de terras. “Um quebra milho não sentia remorso em tirar uma vida, mas também não fazia isso de graça ou por qualquer coisa. Eram como mercenários, mas com código de conduta”, explica Mariano.
A conduta era ditada pelo dinheiro, não por vingança ou punição. Quanto maior a recompensa, menor a preocupação com a exposição. Se o retorno financeiro fosse grande, não se importavam em invadir um bar cheio de gente para assassinar três ou quatro pessoas. “Ele ia, fazia o serviço e partia, sem olhar para ninguém a sua volta, a não ser as vítimas. Só que se fosse incumbido de cobrar alguma coisa sem matar ninguém, o sujeito também atendia a exigência”, esclarece o pioneiro que ao longo da vida conheceu muitos quebra milho, inclusive teve amizade com alguns.
Ao contrário do senso comum, dificilmente reagiam quando eram provocados por alguém sem envolvimento com seus negócios. Isso porque não traria retorno financeiro – a lógica da função. Metódicos, os quebra milho da Fazenda Brasileira dificilmente agiam por impulso. Além disso, não atuavam apenas em Paranavaí, mas em todo o Paraná, chegando a prestar serviços em São Paulo, Mato Grosso (incluindo o Mato Grosso do Sul), Santa Catarina e Rio Grande do Sul, principalmente a serviço de grandes empresários e latifundiários.
“Sei de alguns que encheram caminhões de cadáveres lá pelas bandas de Querência do Norte numa desapropriação ilegal e forçada. Tudo foi feito a mando de uma família tradicional da região de Maringá”, segreda Mariano que viu quando o caminhão estacionou em frente ao antigo Hospital João Cândido Ferreira (Hospital do Estado), onde é hoje a Praça da Xícara.
O veículo encostou e de longe os curiosos sentiram um forte odor de sangue que invadiu o centro da cidade. João Mariano diz que nunca tinha visto tanta gente morta em um mesmo local. “Havia dezenas. A maioria foi levada direto para um necrotério improvisado. Tinha tanto sangue que escorria até pelos pneus”, assegura.
Por medo, nos anos 1940 e 1950, quando se falava em quebra milho, a maior parte da população não se manifestava sobre o assunto. Habilidosos com armas de fogo e armas brancas, inúmeros foram identificados como ex-jagunços, ex-guerrilheiros, criminosos condenados ou procurados, antigos membros de brigadas e de grupos paramilitares, além de desertores do Exército Brasileiro.
À época, como Paranavaí era apenas uma colônia, podiam ser facilmente identificados, mas ninguém queria se meter em confusão. Personagens controversos, os quebra milho fazem parte da história de Paranavaí, onde já viviam no princípio da colonização da Fazenda Brasileira na década de 1930. “Policiavam” e impediam que os migrantes atuando nas lavouras de café abandonassem o trabalho. Quem tentasse era abatido em barrancos às margens de algum rio ou durante a travessia. Antes do descarte de cadáveres, os criminosos os abriam, os enchiam com pedras, costuravam e os lançavam na água para afundar rapidamente, impossibilitando a localização.
Contribuição
Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:
Paranavaí e a sociedade de “colonização bruta”
Uma cidade que de tão heterogênea surgiu com grandes falhas sociais
Não são poucos os pioneiros que afirmam que Paranavaí, no Noroeste do Paraná, é uma cidade formada a partir de uma sociedade de “colonização bruta”. Mas qual é o significado disso?Declarações como essa são justificadas por fatos envolvendo principalmente distinções culturais. Paranavaí foi colonizada pelo governo paranaense, ou seja, houve pouca participação ou abertura para a colonização de iniciativa privada ou planejada. Assim a organização precisava partir da própria comunidade.
Nos anos 1940, nos tempos da Fazenda Brasileira, Paranavaí contava com uma sociedade restrita, pouco sociável e formada pela política da conquista de novas terras. A colônia atraía todo tipo de gente porque os lotes eram baratos e, em algumas situações, até doados. “Havia a coletividade, mas sem articulação social. A maior parte das pessoas vinha pra cá com esse interesse em comum. Não socializavam quase. Assim surgiu uma sociedade com uma colonização bruta, sustentada apenas pelos mesmos objetivos econômicos”, afirma o pioneiro Ephraim Marques Machado.
Como havia povos das mais diferentes origens, por vários anos persistiu uma segregação entre os moradores. Muitos se relacionavam apenas com pessoas que vieram do mesmo estado, região ou país. “Em Paranavaí, naquele tempo, mineiro era chamado de nortista e nortista aqui era considerado ladrão para os migrantes preconceituosos. Sofri muito com isso”, lembra o pioneiro Sátiro Dias de Melo. O testemunho é endossado pelo pioneiro cearense João Mariano que viu muitos peões e colonos nordestinos serem escravizados por migrantes do Sul e Sudeste nos anos 1950 e 1960.
De acordo com Ephraim Machado, a heterogeneidade podia ser vista como um problema social, já que Paranavaí lembrava uma colônia dividida em pequenos povoados. “Os nortistas e os sulistas eram muito diferentes, então o distanciamento foi inevitável. Sem dúvida, algo que interferiu na evolução local. Paranavaí demorou para começar a se constituir como o que chamamos de sociedade nos moldes atuais”, avalia Machado.
A facilidade de acesso às terras fez Paranavaí receber muita gente diferente, não apenas migrantes que sonhavam com um pedaço de terra para construir uma moradia, plantar e assegurar o futuro da família. Aventureiros e oportunistas das mais diversas regiões do Brasil, até mesmo assassinos e ladrões, vinham para a região, crentes de que encontrariam um lugar isolado e de muitas riquezas. “O governo até fretava aviões para abandonar criminosos nas matas virgens das imediações de Paranavaí. O objetivo era não ter despesas e responsabilidades com essa gente”, diz João Mariano.
Pelo país afora, a colônia era conhecida como um local administrado pelo poder público, com pouca interferência da iniciativa privada. “Muitos gostaram daqui por isso”, declara Mariano. Já cidades colonizadas por companhias não atraíam tanta gente assim. O custo de vida não era barato e o investimento era maior em função do planejamento minucioso. E claro, também tinha mais exigências e mais burocracia. Outro diferencial é que em áreas loteadas pelo poder público havia menor participação de autoridades e maior facilidade na realização de negociações escusas.
Intimidada pelo baixo custo dos lotes da antiga Fazenda Brasileira, a Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP), conhecida por vender imóveis por preços mais altos, criou uma situação desconfortável entre as décadas de 1940 e 1950. “A companhia chegou até Nova Esperança e ali parou. Eles queriam nos isolar. Não deixavam ninguém fazer nada em Paranavaí, inclusive convenciam quem queria investir aqui de que seria um mau negócio”, lamenta Mariano.
Nos tempos de colonização, Paranavaí foi palco de muitas brigas de corretores de imóveis. “Não esqueço que em 1950, antes de me casar, eu morava no Hotel Real, na antiga Rua Espírito Santo, e ali mesmo o Cangerana assassinou um sujeito por causa de comissão de terras”, relata Machado. Os pioneiros também se recordam do episódio em que um homem matou na Avenida Paraná, no prédio do antigo Banespa, três pessoas que o enganaram em uma negociação.
“Os maiores crimes dos tempos da colonização foram provocados por causa de comissão e não disputa de terras”, ressalta Ephraim Machado, embora admita que houve muitas situações em que o capitão Telmo Ribeiro, braço direito do ex-diretor da Penitenciária do Estado do Paraná, Achilles Pimpão, e amigo do interventor federal Manoel Ribas, teve de intervir em casos de grilagem de terras. Ribeiro foi proprietário de uma fazenda que se transformou no Jardim São Jorge.
No entanto, nada se sabe sobre as implicações legais das atuações de grileiros em Paranavaí, deixando subentendido que muita gente pode ter construído fortunas sem se submeter, em qualquer momento, aos rigores da lei. “Desconheço qualquer caso de alguém de Paranavaí que foi punido por causa disso. Ainda assim, sei que encrenca maior se deu na Gleba Sutucu, Areia Branca, dos Pismel e também na Gleba 23. Teve quem foi tirado da terra à força. Juridicamente, não tenho a mínima ideia de como tudo foi feito”, comenta Machado.
O fato de Paranavaí ser tão grande até o início dos anos 1950 facilitava a grilagem de terras. À época, a colônia tinha uma vasta área que ia até as fronteiras com os estados do Mato Grosso (área do atual Mato Grosso do Sul) e São Paulo. Quem iria fiscalizar tudo isso e com quais recursos, sendo que hoje, mesmo com tantos avanços, ainda existe grilagem no Brasil?”, questiona João Mariano.
Uma transformação social imposta pela pecuária
O pioneiro Ephraim Marques Machado explica que até os anos 1960 era comum um proprietário de terras contratar meeiros para se responsabilizarem pela produção agrícola. “O camarada ia até São Paulo e Minas e falava: ‘Olha, eu tenho 200 alqueires em Paranavaí e vou produzir 100 mil pés de café. Preciso de cinco famílias e dou a ‘meia’ para plantar. Então ele dividia tudo em partes iguais e cada um cuidava de um pedaço”, exemplifica. Com isso, o bom resultado financeiro foi garantido até o surgimento das geadas. A última que castigou a região foi a de 1975.
Nas décadas de 1960 e 1970, Machado viu centenas de meeiros de Paranavaí migrarem para as regiões de Toledo, Marechal Cândido Rondon, Umuarama e Naviraí, no Mato Grosso do Sul. Outros se mudaram para o Norte. Muitas propriedades foram transformadas em pasto depois de 1964 e 1965, quando a colonização caiu bastante. “É aquela: ‘onde entra o boi sai o homem’. O café já não tinha mais tanto valor e o pasto acabou com o que sobrou”, pondera Ephraim. Quem partiu para novas frentes de trabalho trocou a lavoura de café por algodão, amendoim e arroz.
Fazendas que tinham 300 alqueires e garantiam o sustento de pelo menos 15 famílias passaram a ser ocupadas por apenas uma. Em outros casos, nem isso. “A migração modificou a sociedade local. A própria cultura da cidade passou por uma transformação”, enfatiza Ephraim Machado. A partir da década de 1970, Paranavaí, que até então atraiu tanta mão de obra para as lavouras, chamou muita atenção de empreendedores e pecuaristas de outras cidades e estados. Eram pessoas de alto poder aquisitivo que aqui se fixaram para ocupar posição de grande status econômico e social.
Saiba Mais
Nos anos 1950, já viviam em Paranavaí, além de migrantes de todas as regiões do Brasil, portugueses, italianos, alemães, poloneses, russos, ucranianos, tchecos, iugoslavos, húngaros, espanhóis, neerlandeses, japoneses, franceses, suíços, sírios e libaneses, além de outros povos.
Contribuição
Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:
O declínio econômico de Paranavaí
Quando o desenvolvimento foi comprometido pela monocultura e ausência de políticas públicas
A história mostra que Paranavaí, na região Noroeste, poderia ser um dos municípios mais importantes do Paraná, no entanto, em função da falta de diversificação econômica e ausência de políticas públicas para o setor agrícola, a cidade entrou em declínio a partir de 1970.
Paranavaí teve um progresso exemplar até o início da década de 1960. À época, a cidade era vista como símbolo de progresso no Paraná, uma imagem que ganhou solidez em 1956, quando uma pesquisa da Associação Brasileira dos Municípios apontou Paranavaí como uma das cinco cidades com maior índice de desenvolvimento do país.
As consequências humanas
Contudo, como tinha um perfil essencialmente agrícola, baseado na monocultura cafeeira, a ex-Fazenda Brasileira experimentou um declínio sem precedentes. As primeiras geadas que castigaram as lavouras da região de Paranavaí e atingiram profundamente a economia local foram registradas em 1962 e 1964, de acordo com informações da Secretaria Nacional de Defesa Civil. “Na segunda geada, o prejuízo foi tão grande que tive que vender meu sítio. A partir do acontecido, nunca mais quis mexer com a cafeicultura”, revelou o pioneiro paranaense Orlando Otávio Bernal.
Para piorar, a intempérie voltou a devastar as propriedades do Noroeste Paranaense em 1969, destruindo pelo menos 80% da produção cafeeira regional. “Quando meu pai viu aquela camadinha fina de gelo sobre o cafezal, ele entrou em pânico. Nunca o tinha visto chorar daquele jeito, jogado sobre um pé de café. Perdemos tudo, não deu pra recuperar nada”, confidenciou o empresário Fabrício Gomes Soares. Dias depois, a mãe de Soares flagrou o pai se preparando para ingerir um rodenticida conhecido como chumbinho. Felizmente, conseguiu evitar o pior.
A mesma sorte não teve o pai da aposentada Catalina Prado Ruiz que tinha uma propriedade rural às margens da Rodovia BR-376. “Ele contraiu muitas dívidas com as geadas anteriores, então quando veio a mais forte, em 1969, não aguentou”, enfatizou Catalina com a voz calma e pausada, sem velar os olhos marejados. O homem foi encontrado morto, após um ataque cardíaco fulminante, agarrado à base de um cafeeiro.
O agricultor capixaba Orlando Brás de Mello, radicado em Paranavaí desde 1957, preferiu não citar nomes, mas contou que teve vários conhecidos que não superaram os prejuízos, se endividaram e cometeram suicídio. “Meu cunhado quase enlouqueceu. Ele pôs fogo no cafezal e num barracão enorme onde costumava estocar o café”, complementou.
As consequências econômicas
Como consequência econômica das geadas, o preço do café subiu, surgindo um ciclo de especulações que pareceu infindável. “A situação era preocupante demais, muito triste. Quase ninguém tinha ânimo pra continuar porque aqui a gente já tinha outro problema grave que era o solo empobrecido”, relatou o pioneiro cearense João Mariano, se referindo também ao surgimento das erosões hídricas que se intensificaram a partir dos anos 1960.
Com a queda da cafeicultura, que preservava um caráter familiar na região Noroeste do Paraná, houve grande abertura para a formação dos latifúndios, o que intensificou mais ainda as desigualdades sociais. Logo as lavouras começaram a ser substituídas por pastagens e, como a pecuária absorveu pouca mão de obra, milhares de trabalhadores rurais ficaram desempregados. “Que eu me lembre, quando deixei o trabalho na lavoura e não consegui nada na área urbana de Paranavaí, pelo menos da fazenda onde eu trabalhava e de outra propriedade vizinha mais de 200 pessoas foram embora pra Maringá”, disse o taxista Jurandir Romano de Paula.
No Noroeste do Paraná, entre as cidades mais prejudicadas pela intempérie estavam Paranavaí, Tamboara, Paraíso do Norte, Nova Aliança do Ivaí e Mirador que em 1960 representavam 1/3 de toda a produção agrícola regional, conforme registros do extinto Instituto Brasileiro do Café (IBC). Em 1970, a região de Paranavaí somou 336 mil habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dez anos depois, em 1980, perdeu quase 50 mil habitantes, somando 288 mil moradores.
Foi um retrocesso para a região que em 1960 contou com mais de 307 mil habitantes. “Em 1970, tive que fechar minha mercearia porque fazia mais de seis meses que estava trabalhando no vermelho. Teve mês que não vendi nada porque ninguém tinha dinheiro. Nem conseguia mais honrar os compromissos com fornecedor”, destacou o ex-comerciante Geraldo Marques.
Em 1980, a produção cafeeira do Noroeste Paranaense foi quase reduzida pela metade, caindo de 30 milhões de cafeeiros para 16 milhões. O solo frágil e comprometido pela falta de técnicas adequadas de plantio, manejo e cultivo fez com que o milheiro de pés de café rendesse apenas 27 sacas, quantia muito inferior as 150 da década de 1960, revelou estatísticas do extinto IBC.
Do melhor ao pior índice de desenvolvimento
Orlando de Mello frisou que a lavoura era o “carro-chefe” da economia regional de Paranavaí, por isso, o impacto foi tão grande. “Eu mesmo não tinha nenhum conhecido, amigo ou parente que trabalhasse com outra cultura que não fosse o café”, assinalou Jurandir de Paula. A falta de diversificação econômica deu ao Noroeste Paranaense reflexos muito negativos. Nos anos 1970, a região encabeçada por Paranavaí teve os piores índices de desenvolvimento do Paraná.
O que ilustra bem esse fato é uma pesquisa do IBGE que foi lançada em 1980 sobre industrialização e geração de empregos. A microrregião de Paranavaí ocupou a última posição, com uma ínfima contribuição estadual de 0,5% enquanto as regiões de Ponta Grossa e Londrina despontaram com 10,4% e 9,5%. “Na cidade, não tinha emprego, então a gente tinha que ir pra onde dava. Cheguei a passar uma temporada trabalhando em lavouras em Minas Gerais pra poder sobreviver. Tinha mulher e filhos pra sustentar”, argumentou o aposentado Bernardo Ricardi Proença.
Conforme a pecuária se desenvolveu, o homem se afastou cada vez mais do campo. Um estudo do escritor Paulo Marcelo Soares da Silva indicou que nos anos 1980, o gado já ocupava mais de um milhão de hectares na região de Paranavaí enquanto as lavouras mal ultrapassavam 180 mil. “Eu era acostumado a ver muitas plantações e muita gente trabalhando no campo. Isso acabou. O que a gente viu depois foi só boi e deserto”, desabafou Proença.
No livro “História de Paranavaí”, o escritor Paulo Marcelo levantou duas hipóteses sobre o declínio econômico de Paranavaí a partir de 1969. A primeira foi a ausência de uma política oficial para o setor agroindustrial. Já a segunda, a adoção de um sistema tributário centralizador que prejudicou os municípios da microrregião, inviabilizando o surgimento de novos incentivos fiscais.
Pesquisadores e pioneiros são unânimes em afirmar que o retrocesso de Paranavaí nos anos 1970 e 1980 teve raízes na supervalorização da monocultura. “Muita gente fez o mesmo depois com a pecuária. Mas o problema é que criar gado só beneficiou uma minoria, não teve um aspecto social, ao contrário da cafeicultura, apesar da exploração do trabalho rural ter surgido na nossa região logo nos primórdios da colonização”, avaliou o sociólogo Otávio Bernal Filho, acrescentando que os nordestinos foram os mais lesados pelas injustiças sociais que transcorriam no campo.
Contribuição
Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar: