David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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Um gato no telhado

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Arte: Desiree Bernhard

Existe um gato que mora no telhado. Ele nunca deixa ninguém tocá-lo. Observa a cidade dia e noite, passeando sempre pelo alto, jamais pelo baixo. Seus olhos são incomuns, como esferas de caramelo. Quando o observo tarde da noite, nem preciso ligar a luz porque o que o brilho dos seus olhos reluz perfaz um caminho que ilumina e satisfaz o que a curiosidade conduz.

Às vezes, ele muda de cor. Já o vi caramelo, preto, branco, castanho, verde, azul, púrpura, mas sempre o reconheço pelos seus olhos. Tentaram capturá-lo em vão, sempre em vão, porque ele não quer ninguém, não depende de ninguém. Dizem que tem um traço genético raro que remete aos seus ancestrais selvagens que viviam nas florestas que cercam o Rio Paraná.

Ele não aparece para todo mundo, mas todo mundo quer vê-lo. Os mais supersticiosos falam que quem toca o “gato de caramelo” é abençoado com muita alegria e fortuna. Já a fortuna do “gato de caramelo” é não ser tocado por ninguém. Jamais o viram comendo. Falam que ele se alimenta da luz do luar. Não duvido, porque algumas vezes o vi alheio a tudo, simplesmente mirando a lua que lançava sobre ele uma luz anilada que o fazia ronronar por minutos.

É um zíngaro dos telhados. Sim, eu o chamo de Zíngaro, porque acho que combina mais do que “gato de caramelo”. Ele nunca responde aos meus chamados, mas me observa com um olhar de quem não nega e não rejeita o fato de que aquele é apenas mais um dos nomes que recebeu ao longo de sua vida.

Sua idade? Não tenho a mínima ideia, mas sua postura revela a maturidade de um ancião. Talvez seja o gato mais velho do mundo, vivendo em um corpo jovem, ou talvez não, seja apenas um animal que rejeitou a vida doméstica. Será que ele é feliz? A verdade é que isso não importa, porque a felicidade é um parâmetro humano, não felino. Gatos vivem pelos seus próprios termos, e talvez nem vejam sentido na felicidade.

Quem sabe, Zíngaro desapareça nos próximos dias, e retorne no ano que vem. Ele sempre faz isso quando os humanos insistem na indesejada aproximação. O gato não teme ser notado, observado, mas nem por isso deseja ser mais uma vez domesticado. Como será que ele vê os outros animais cativos? Acho que ele não se importa com isso. Talvez entenda que aquela é a vida dos outros, não a dele.

Parece tão tranquilo na cumeeira, com as patas cruzadas, observando o silêncio na baixada. “Boa noite, Zíngaro!”, repito três vezes. Ele não responde, mas lança um último e longo olhar antes de saltar em direção ao telhado vizinho. Zíngaro corre, e vejo a ponta do seu rabo desaparecer. E com ele, toda a liberdade que a noite ajuda a enternecer.

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Written by David Arioch

June 24th, 2017 at 1:17 am

O gato que caiu no quintal

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De repente, um gato saltou o muro e caiu na minha frente (Foto: Reprodução)

De vez em quando, deito no quintal, sentindo a brisa no rosto, na barba; e reflito um pouco. Hoje, enquanto me distraía com algumas ideias, ouvi um barulho estranho entre os arbustos do quintal vizinho. De repente, um gato saltou o muro e caiu na minha frente, quase entre as minhas pernas. Sem que eu pudesse entender o que estava acontecendo, o bichano veio para cima de mim.

Me afastei, e ele continuou mostrando as garras, um olhar cabuloso e nada amistoso. Mesmo parecendo tão pequeno diante de mim, o gato insistiu em me cercar.

— Que mal pode acontecer? É só um gato pequeno – inferi.

Mas aquele gato pequeno saltou em minha direção e, se eu não o tivesse segurado no ar, talvez tivesse até mesmo furado um dos meus olhos. Enquanto se debatia, ele tentava atingir ou puxar a minha barba de alguma forma. Tudo bem. O mantive à distância segura do meu rosto e caminhei até a casa vizinha.

— Este gato é da senhorita? Ele pulou no quintal de casa – expliquei, o entregando nas mãos da vizinha.

— É sim. Me desculpe pelo transtorno, ela está assim porque doamos um dos gatinhos que nasceu há algumas semanas.

— Ah, entendi. Não tem problema — comentei sem graça.

A moça não conseguiu velar a vontade de rir. Constrangido, me despedi, ela agradeceu, e caminhei de volta para casa. A primeira coisa que fiz foi entrar no banheiro. Me observei no espelho e tentei entender como a minha barba parece um filhote de gata.

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Written by David Arioch

May 14th, 2017 at 10:32 pm

O gato

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Voltando da academia, um gato saltou no capô do meu carro. Quando uma moça se aproximou para pegá-lo, ele pulou em meu colo e começou a miar e a esfregar as unhas na minha barba, como se procurasse alguma coisa.

Depois de tanta insistência, e já me sentindo sem jeito diante da situação, da minha barba caiu um pedaço de pão. O gato comeu, miou, saltou e bebeu a água que a moça serviu em um potinho na calçada.

Satisfeito, deu uma última olhadela para mim e para a moça antes de correr para a escuridão, onde vi seus olhos denunciarem intenção. Estava feito! Um pneu furado e riscos na lataria.

O gato cobrou de quem o destratou. Deixou sua assinatura em uma caminhonete estacionada sob a luz bruxuleante de um poste, onde seus riscos cintilavam como faíscas de azar e sorte.





Written by David Arioch

April 19th, 2017 at 1:05 am

O gato da Vila Paraná

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siamesecat

Foto: Reprodução

Querubim ouviu tiro de espingarda seguido de miado. Lá fora, na rua de terra arenosa, Ranulpho nem se mexia, estatelado sobre uma porção de folhas miúdas de sibipiruna. A boca continuava entreaberta, denunciando que a dor da morte não poupava nem os mais inocentes.

Com receio de parecer sentimental demais, o menino engoliu o choro. Fez tanto esforço que as quentes lágrimas que ameaçavam escorrer dos cantos dos olhos desapareceram. Nem conquistaram o princípio de liberdade. Encolerizado, Querubim observou Matias sobre o pé de manga, sorrindo e mirando a espingarda em sua direção. “Você quer também? Dou em você, trouxa!”, avisou o moleque. Querubim não disse nada. Só coçou a cabeça, sem se importar com a nuvem poeirenta que se formava ao redor de sua cabeça, como névoa alaranjada.

De costas para o assassino, o menino agachou e fez carícias na barriga do gato que já não sentia suas mãos sobre o pelo claro. Onde havia um par de olhos azuis, restaram pequenas massas disformes. Duas lágrimas caíram pejosas, umedecendo a boca seca do felino. Era tarde demais.

As horas passavam, e a natureza sepultava Ranulpho, cobrindo seu corpo com o solo arenoso, pouco a pouco transportado do bosque pelo vento sul. “Ô Querubim! Leva esse bicho daqui. Já vai começar a feder”, diziam. Ele só acenava com a cabeça em concordância, sem sequer mover as pernas alinhadas sobre o meio-fio.

Quando a terra arrastada pela aragem invadia a boca do gato, o menino se aproximava e a limpava usando uma toalhinha umedecida com água. No final da tarde, tentou enterrar Ranulpho no canteiro de plantas de sua mãe. Foi repreendido enquanto cavava a terra com a colher de pedreiro de seu avô. “Tá louco, menino! Aqui não é lugar de enterrar bicho!”, reclamou o avô.

O velho pegou o gato morto pelo couro do dorso e o lançou dentro de uma sacola grossa e escura. Parecia um saco para cadáver em PVC. A pendurou no guidão da bicicleta de aros tortos e pedalou até o lixão do bairro mais próximo. Retornou sem dizer palavra. Entrou na cozinha, tomou um gole de café amargo e deitou na rede.

Querubim assistia o velho, querendo saber o que ele fez com Ranulpho. Sem coragem de perguntar, lembrou de uma lei imposta na Vila Paraná na década de 1970, quando três cães de grande porte mataram dois bebês. “Ninguém mais pode entrar aqui com animais. E se alguém matar, não pode chorar nem enterrar, senão vai se ver comigo”, declarou Mandino Conselheiro, a quem a população recorria sempre que surgia algum problema no bairro.

Sob um pé de mamão, Querubim observou o avô até a hora em que o velho dormiu na rede. Chorou e gritou com a mão na boca. Também açoitou as próprias pernas e costas com os galhos do mamoeiro. Ninguém ouvia. Os vergões se multiplicavam. Ele não se importava. Deitou na terra e sentiu gosto acre na boca, misto de terra e sangue.

Amanheceu no seu colchão velho, enrolado num lençol branco encardido e cheio de furos. Pelo buraco no teto, o sol mirava pacotinho de ração ladeado por tampa com água. Querubim levantou e correu até a entrada do barraco onde vivia com a mãe e o avô. O casebre ameaçava cair há anos, porém resistia.

Sentou no chão e usou pedaço de graveto para desenhar Ranulpho. Quando terminou, cochilou com as costas escoradas na cerca de madeira e arame farpado. Em sonho, ouviu um ronronar que lhe arrepiou até os pelos que não possuía. Abriu os olhos e, sob sua mão esquerda, Ranulpho marcava território mais uma vez, esfregando o pelo sujo e macio.

O odor de lixo passou despercebido, não o miado de fome. Chorando, Querubim tomou o gato cego e derreado nos braços. O levou para dentro de casa e de lá não saiu mais naquele dia. A história de Ranulpho e Querubim mudou a Vila Paraná no final dos anos 1990: “Quem não vê amor num animal, não vê amor em si mesmo”, disse Neto Conselheiro, filho de Mandino.

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Written by David Arioch

September 24th, 2016 at 5:57 pm

A oncinha de estimação

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Animal foi criado em cativeiro até fazer a primeira vítima

Henrique Wunderlich: “Triturava tudo que tocava com as garras” (Acervo: Ordem do Carmo)

Na década de 1950, os padres alemães que viviam em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, foram presenteados com um filhote de onça. O animal foi criado em cativeiro até o dia que fez a primeira vítima.

No início de 1953, um caçador de Paranavaí deu aos freis alemães da Ordem dos Carmelitas um filhote de onça-pintada em agradecimento aos serviços prestados à comunidade. De acordo com o padre Henrique Wunderlich, era um animalzinho muito bonito, mas que já demonstrava forte comportamento selvagem. “Triturava tudo que tocava com as garras”, afirmou Wunderlich em uma das cartas enviadas à revista alemã Karmelstimmen em 1953.

A jovem onça vivia confinada numa jaula revestida em madeira. À época, o presente exótico foi muito bem recebido pelos padres. Só que o animal cresceu e, de acordo com sua natureza, se tornou agressivo. “Nosso cachorrinho era tão bobo e curioso que foi olhar no interior da jaula e levou uma patada. Em seguida, a onça o puxou para dentro e o devorou”, relatou frei Henrique.

Quando completou um metro de comprimento, o animal se tornou muito perigoso. Adquiriu o hábito de morder a madeira que revestia a jaula. Naquele ritmo, logo a onça escaparia e poderia fazer outras vítimas. “Tivemos que nos desfazer do animal. Não dava nem para aguentar o mau cheiro”, declarou Wunderlich que acompanhado dos padres germânicos Alberto Foerst, Burcardo Lippert e Adalbert Deckert viveu muitas aventuras na mata virgem de Paranavaí.

O tamanduá que correu atrás dos padres (Acervo: Ordem do Carmo)

O abraço do tamanduá

Em viagens noturnas pelos picadões, os freis confundiam os enormes cipós, que quase se entrelaçavam aos jipes, com as mais diversas espécies de cobras. “Lembro quando um tamanduá obstruiu a estrada. É um animal que se torna perigoso quando consegue abraçar uma pessoa com suas garras enormes”, relatou Alberto Foerst no artigo “Noch ein Missionsbericht“, publicado na revista alemã Karmelstimmen em outubro de 1954.

Segundo o padre, o tamanduá-bandeira estava estirado no centro da estrada, fingindo que dormia. Quando os freis se aproximaram, o animal se levantou e os perseguiu. Um dos missionários usou um pau para ludibriar o tamanduá. Quando o bicho abraçou o pedaço de madeira, entraram no jipe e partiram.

Jipe com o qual os missionários viveram muitas aventuras (Acervo: Ordem do Carmo)

Os “olhos de fogo” na escuridão

Inesquecível também foi o dia em que o jipe dos missionários atolou na estrada. Como era muito tarde, decidiram passar a noite na mata. O problema é que havia um silêncio perturbador naquela madrugada tão escura que mal conseguiam enxergar árvores a poucos metros de distância. “Algo medonho aconteceu. As cobras fizeram ruídos entre ramagens e madeiras apodrecidas na floresta. Ao mesmo tempo, os macacos gritaram terrivelmente. Aí veio o pior!”, frisou frei Alberto.

Na escuridão, viram duas luzes, os “olhos de fogo” de uma onça, conforme palavras dos missionários que na hora não esconderam o medo. Enquanto o animal farejou o jipe, os padres se calaram, seguraram até a respiração. O que os livrou da felina foi um macaco que passou perto do jipe gritando e saltando sobre os galhos. “A onça o viu e seguiu no encalço”, lembrou Foerst.

Frei Alberto: “A onça viu o macaco e seguiu no encalço” (Acervo: Ordem do Carmo)

Em outra oportunidade, quando percorriam a mata, os freis quase pisaram sobre uma serpente listrada nas cores preta, vermelha e branca. Ao verem o réptil, ficaram imóveis. “Ela também ficou e depois descobrimos que se pisássemos na cabeça dela, a cobra ergueria o rabo para inocular o veneno”, enfatizou frei Alberto. Para se livrar do réptil que mais tarde apelidaram de “cobra nazista”, os padres se dispersaram, deixando-a perdida, sem saber quem atacar primeiro. Aproveitaram a distração do animal e subiram em uma árvore. A cobra então desistiu e foi embora.