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Justine Butler: “Por que o leite é uma questão feminista”
“Ficamos indignadas com histórias de estupro e gravidez forçada, mas essas são práticas comuns na moderna pecuária leiteira”
Pesquisadora e autora da organização Viva!, recentemente a bioquímica Justine Butler, que tem no currículo um doutorado em biologia molecular e a publicação de um relatório científico intitulado “White Lies”, que teve repercussão internacional pela abordagem dos efeitos dos laticínios na saúde humana, republicou o seu artigo “Why milk is a feminist issue” – sobre as razões pelas quais o leite é uma questão feminista.
Justine começa o artigo declarando que o feminismo combina uma gama de ideias que compartilham um objetivo comum – apoiar os direitos das mulheres: “Não foi antes de 1991 que a violação física dentro do casamento se tornou um crime. Antes disso, a lei sugeria que o casamento implicava consentimento para o sexo, e uma vez casada, uma mulher poderia ser considerada como propriedade do marido.”
De acordo com a autora, nos últimos cem anos as mulheres têm lutado arduamente pelo direito de controlar o que acontece com seus próprios corpos. “Ficamos indignadas com histórias de estupro e gravidez forçada, mas essas são práticas comuns na moderna pecuária leiteira. As vacas vivem essa realidade repetidas vezes, em escala industrial, e sem escolha.”
Justine Butler, que testemunhou várias fases do feminismo no Reino Unido e em outras partes do mundo, explica que o feminismo ocorreu em ondas – tendo as sufragistas como pioneiras: “A segunda fase ocorreu nos anos 1960 com o feminismo liberal. Uma terceira onda surgiu na década de 1980 com o ecofeminismo, que se identificou com a opressão dos animais criados para consumo. Na década de 1990, os vínculos entre o abuso de animais e a opressão das mulheres foram rebaixados e um feminismo pós-moderno emergiu, priorizando os seres humanos, com pouca preocupação em relação aos animais e ao meio ambiente. O feminismo centrado no ser humano passou a dominar o pensamento feminista no início dos anos 2000.”
Hoje a autora diz que as feministas devem se questionar se está tudo bem para os seres humanos controlarem violentamente o sistema reprodutivo de um animal enquanto se opõem fundamentalmente a um tratamento similar dispensado às mulheres: “Por que escolher a qual forma de opressão nos opomos? Esse tipo de distinção é chamada de ‘especismo’. Envolve a atribuição de diferentes valores morais ou direitos aos indivíduos com base em quais espécies eles pertencem. ‘Sou uma feminista vegana porque sou um animal entre muitos e não quero impor uma hierarquia de consumo a essa relação’”, defende, citando a autora Carol J. Adams.
Justine também parafraseia a ativista Alice Walker, que parte do princípio de que os animais existem por suas próprias razões: “Eles não foram feitos para os humanos, assim como pessoas negras não foram feitas para os brancos ou as mulheres para os homens.” A suposição de que os animais criados para consumo não sofrem quando mantidos em condições que não seriam toleradas pelos seres humanos tem como base a ideia de que eles são menos inteligentes do que os seres humanos, e não têm senso de si mesmos.
Porém, isso é evidentemente errado – garante Justine Butler, que cita o trabalho do professor John Webster, da Universidade de Bristol, que dedicou décadas estudando o comportamento de animais criados para consumo e refuta tal afirmação: “As pessoas assumiram que a inteligência está ligada a capacidade de sofrer e que, como os animais têm cérebros menores, eles sofrem menos que os humanos. Essa é uma lógica patética.”
Inúmeras pesquisas mostram claramente que vacas criam laços de amizade, guardam ressentimentos e são estimuladas por desafios intelectuais. E claro, são capazes de sentir fortes emoções, como dor, medo e ansiedade, assim como alegria. “Todos nós gostamos do sol nas nossas costas. Características semelhantes foram encontradas em porcos, cabras, galinhas e outros animais”, exemplifica a autora.
Não são poucos os cientistas que sugerem que os animais podem ser tão semelhantes aos seres humanos em alguns aspectos que as leis de bem-estar precisam ser urgentemente repensadas. Christine Nicol, professora de bem-estar animal na Universidade de Bristol, reconhece que muitos animais não humanos têm notáveis habilidades cognitivas e de inovação cultural.
“A imagem bucólica de uma vaca e seu bezerro em um ambiente pastoral é um mito. As vacas não produzem constantemente leite, e como nós, só o fazem depois de uma gravidez e um parto de nove meses. Uma vaca leiteira moderna será confinada e obrigada a engravidar logo após o seu primeiro aniversário, usando um aparelho de contenção denominado rape rack [em que uma vaca é imobilizada e inseminada]“, relata Justine.
Após dar à luz, a vaca amamentaria o bezerro por até um ano, mas na pecuária leiteira é comum a separação em um ou dois dias. “Bezerros machos são subprodutos indesejáveis, e todos os anos, no Reino Unido, 100 mil ou mais são abatidos, enquanto outros são vendidos para a produção de carne de vitela”, informa a autora, acrescentando que a imensa demanda física leva à infertilidade e infecções graves (mastite e laminite), reduzindo produtividade e expectativa de vida. Nesse sistema, um animal que poderia viver naturalmente pelo menos 20 anos, é morto com não mais do que seis anos.
Justine Butler não considera um exagero dizer que o leite é produto do estupro, sequestro, tortura e assassinato, considerando que as vontades e os anseios da vaca são completamente desconsiderados:
“Atos de violência sexual ou atividade sexual forçada com animais geram repulsa na maioria das pessoas. Então, por que fechamos os olhos para esse tratamento dado às vacas leiteiras? O leite é o produto da exploração das capacidades reprodutivas de um corpo feminino. Considerar isso uma questão feminista não é radical, mas uma posição política totalmente defensável. As vacas compartilham conosco a arquitetura básica do cérebro responsável pela emoção. As vacas mães se sentem extremamente angustiadas quando as suas crias são tiradas delas – elas choram e berram. Elas ainda estão de luto quando a máquina de ordenha suga o leite de seus úberes. Um torturante ciclo de tormento físico e emocional é imposto sobre elas até sucumbirem. O leite vem de uma mãe enlutada e isso é uma questão feminista.”
Referência
Butler, Justine. Why milk is a feminist issue (2015).
Dias Fernandes: “Fazer mal aos animais é indício de mau-caráter”
O poeta e jornalista paraibano que lutou pelo vegetarianismo nas primeiras décadas do século 20
Teria uns 45 anos. Frugal e vegetariano, nem fumava, nem bebia. Apresentava um aspecto juvenil de atleta, mantendo a forma através da ginástica sueca. Era alvo e corado, o cabelo esvoaçante, castanho claro. Algumas vezes ostentava petulante monóculo nos olhos azuis. Foi quem inaugurou andar sem gravata e sem chapéu. Com essas palavras, o intelectual Osias Gomes narra a chegada do jornalista, escritor e ativista vegetariano Carlos Dias Fernandes à redação do jornal A União, de Parahyba do Norte, atual João Pessoa, em 1919. Gomes dizia que Fernandes era o maior poeta da Paraíba, inclusive considerava seu trabalho superior ao de Augusto dos Anjos.
E para além das preferências pessoais, de acordo com o jornalista paraibano Gonzaga Rodrigues, Fernandes fez do Jornal A União uma escola de jornalismo por onde passou quase toda a juventude intelectual das primeiras décadas do século 20. Era muito admirado e respeitado, e justamente porque destoava da maioria. Não se importava com casamento formal, tinha uma dieta avessa à das pessoas com quem convivia, gostava de atividades físicas, se vestia sem atender as normas sociais e possuía imensa bagagem cultural.
“Aos 15 anos, segundo testemunho de Castro Pinto, amigo de infância, Carlos Dias Fernandes confundia os professores na análise gramatical dos mais difíceis trechos de Os Lusíadas. Foi influenciado por Cruz e Sousa [de quem era muito amigo] e esteve ao lado de outras diversas personalidades jornalísticas e poéticas do cenário brasileiro. Atuou na imprensa de Pernambuco, do Rio de Janeiro, do Pará e da Paraíba. Sua obra é extensa e variada, abarcando romances, discursos, poesias, monografia e livro didático”, informa a pesquisadora Fabiana Sena.
Embora hoje não seja muito conhecido fora do meio literário paraibano, o satírico e prosaico Fernandes lançou importantes obras, como Solaus, de 1901; Palma de Acantos, de 1907; A Renegada, de 1908; O Cangaceiro, também de 1908; Mirian, de 1920 e A Vindicta, de 1931. No entanto, se suas qualidades literárias não fizeram dele um autor famoso, as suas perspectivas sobre o ideal civilizatório fizeram menos ainda.
Um homem à frente do seu tempo, ao longo de anos realizou conferências e palestras sobre vegetarianismo, defendendo que a abstenção do consumo de alimentos de origem animal era o único meio de assegurar o respeito aos animais em um contexto moral e ético. E para reafirmar sua posição, o autor apresentou argumentos envolvendo saúde e higiene, considerando-os imprescindíveis como ferramentas de convencimento.
Controverso, Carlos Dias Fernandes chamou muita atenção quando publicou na edição de 5 de junho de 1918 do Jornal A União uma matéria em que defendeu fervorosamente a prática da medicina natural, confrontando laboratórios farmacêuticos. Também realizou uma grande conferência sobre feminismo em 1924, justificando que os direitos e deveres das mulheres precisavam estar de acordo com suas aspirações. Muito antes de livros como The Sexual Politics of Meat: A Feminist-Vegetarian Critical Theory, de Carol J. Adams, lançado em 1990, o escritor já argumentava que as mulheres, de forma semelhante aos animais, eram subjugadas, privadas de liberdade.
Para Fernandes, a melhor forma de ampliar a aceitação do vegetarianismo seria incentivando o desenvolvimento intelectual das mulheres e preparando-as para ocuparem grande espaço na vida pública. Ele tinha fé que elas poderiam ser o novo norte de uma educação que mostrava às crianças, logo nos primeiros anos, a importância de uma alimentação isenta de ingredientes de origem animal.
Suas inclinações ideológicas tiveram pouca repercussão no Brasil, mas foram bem recebidas na Europa, tanto que Fernandes aparece com destaque na edição Nº 11 da revista portuguesa O Vegetariano, de 1917. Prolífico, o escritor publicou 38 livros, abordando inclusive temas como feminismo e direitos dos animais. Oscilando principalmente entre o naturalismo e o simbolismo, Dias Fernandes obteve prestígio quando lançou em 1936 o seu romance autobiográfico Fretana, inspirado pelo simbolismo francês.
Sua defesa do vegetarianismo era frequentemente publicada no jornal A União, onde ele tinha total liberdade sobre o que escrever. Exemplos são três matérias veiculadas em agosto de 1916 sob o título O Regime Vegetariano, um desdobramento do que Fernandes já defendia no livro Proteção aos Animais, de 1914. Na obra, Fernandes, que não era religioso, cita religiões e crenças que endossam o papel do ser humano como protetor dos animais e da natureza. Polêmico, chegou a discutir com profissionais de saúde da época que defendiam o consumo de carne. Talvez o maior exemplo tenha sido a sua rixa com o então conceituado médico José Maciel.
A seu favor, o poeta e jornalista tinha o médico higienista Flavio Maroja que publicou no jornal A União de 30 de agosto de 1916 um artigo intitulado Hygiene Alimentar: Regimen Vegetariano e Regimen Carneo, confronto de opiniões, como penso a respeito, que fala dos benefícios do vegetarianismo. Em 26 de janeiro de 1917, Carlos Dias Fernandes comemorou a fundação da Sociedade Vegetariana Brasileira, sediada no Rio de Janeiro, e publicou matéria sobre o assunto. “Vai ganhando surto em todo mundo civilizado o regime vegetariano como solução prática do problema moral, economico e therapeutico dos povos. (…) Vegetarianismo quer dizer vida de accôrdo com a natureza”, registrou.
Segundo a pesquisadora Amanda Sousa Galvíncio, Fernandes reforçava seus argumentos sobre o assunto através de referências internacionais. Algumas delas foram os médicos Dujardin-Beaumetz, do Hôpital Cochin, na França; João Bentes Castel-Branco, autor do livro A Cultura da Vida, e Amilcar de Souza – diretor da revista O Vegetariano, além do biólogo Ernest Haeckel e do químico Eduard Buchner.
Porém, foi a própria literatura que conduziu Carlos Dias Fernandes ao vegetarianismo. Ele deixou de consumir alimentos de origem animal depois de ler Liev Tolstói, Lord Byron e Jean-Jacques Rousseau. Conforme Amanda Galvíncio, Fernandes citava com frequência pensadores como Sócrates, Hipócrates e Plutarco, além do Buda e Jesus Cristo, principalmente em suas palestras.
O que também reafirma a influência do vegetarianismo na vida e na obra do poeta são seus personagens que não raramente eram animais. No geral, a natureza sempre foi um tema recorrente em seus poemas e contos. Nascido em Mamanguape, na região da Mata Paraibana, em 20 de setembro de 1874, Carlos Dias Fernandes faleceu no Hospital da Cruz Vermelha no Rio de Janeiro em 9 de setembro de 1942.
Infelizmente, poucas pessoas compareceram ao seu enterro, um intrigante paradoxo na vida do homem que vivia rodeado de pessoas. Em seus últimos versos, jamais publicados, os animais ainda ocupavam posição de destaque. E apesar de esquecido pela literatura que tanto amou, uma de suas frases mais famosas, sobrevive ao tempo: “Fazer mal aos animais é indício de mau-caráter.”
Briário e Centímano (um dos poemas mais conhecidos de Fernandes)
Solitário coqueiro miserando,
Que as tormentas não deixam sossegar!
E, de contínuo, as palmas agitando
Pareces um vesânico a imprecar.
Desgraçada palmeira, como e quando
Irão teus pobres dias acabar;
E com eles ou teu destino infando
De cativo da Terra ao pé do Mar?
Hemos conformes nossos tristes fados.
Tu, germente Briaréu dos vendavais
Eu, Centímano de cem mil cuidados.
Um retorcido aos ventos outonais
Outro com os seus anelos sossobrados…
Nem sei qual de nós dois braceja mais
Saiba Mais
Carlos Dias Fernandes assumiu a direção do jornal A União em 1913. O convite foi feito em 1912 por Castro Pinto. Em 1928, o governador João Pessoa o demitiu do cargo. Desapontado, ele se mudou para o Rio de Janeiro, onde viveu até falecer.
Referências
Galvíncio, Amanda S. Atuação Educacional de Carlos Dias Fernandes na Parahyba do Norte (1913-1925): jornalismo, literatura e conferências (2013).
Sena, Fabiana. A tradição da civilidade nos livros de leitura no Império e na Primeira República. João Pessoa, PB. Tese de doutorado. PPGL/UFPB (2008).
Sena, Fabiana. A imprensa e Carlos Dias Fernandes: o processo de legitimação como autor de livro didático. Educação Unisinos, vol. 15, núm. 1, enero-abril, 2011, pp. 70-78.
Coutinho, Afrânio; Sousa, J. Galante de. Enciclopédia de literatura brasileira. São Paulo. Editora Global (1995).
O Vegetariano: mensário naturista ilustrado, Volume VIII, Nº 11 (1917).
Rodrigues, Gonzaga. Surgimento de A União. Disponível em http://auniao.pb.gov.br/nossa-historia/a-uniao-uma-viagem-no-tempo/leitura-contextual-do-surgimento-de-a-uniao.
Vegetarianismo. Imprensa Oficial. Parahyba (1916).
Santos, Idelette Fonseca. Antologia Literária da Paraíba. João Pessoa. Grafset (1993).
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