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Um homem em chamas
Havia um homem em chamas. Ele queimava, queimava tanto. Chamaram tanta gente, mas ninguém conseguia apagar o fogo. Cobertores, água, não adiantava. As labaredas subiam e subiam. Ele não se debatia, sequer reagia. Parecia imerso em si mesmo. De repente, levantou-se molhado, recolheu o próprio fogo e partiu. Os outros continuaram em chamas, sem vê-las e recolhê-las.
Fogo no matadouro
O fogo estava faminto, e tudo que um dia serviu para ceifar tantos animais conheceria o seu próprio fim
Escuto a chuva. Não é violenta, até que é calma. Começou a esfriar ontem. Não faz diferença. Aqui dentro poucas coisas importam. Minha mente continua lá fora; dizem que com o tempo você se acostuma. Será? Não sei, vou vivendo como dá. Eu poderia morrer agora, mas por eles prefiro viver, não vou dar esse prazer. Falaram que vou apodrecer aqui, que jamais vou ganhar a liberdade. Faz sentido, só que é estranho porque lá fora também é uma prisão.
Louco, psicopata, doente, terrorista, perturbado; me chamam assim agora. O dinheiro tem o poder de garantir esses nomes pra você na mídia. Falsos diagnósticos médicos sempre ajudam. Pagando bem que mal tem, não é mesmo? Inventaram um histórico de instabilidade psicológica e emocional que nunca tive. Sempre fui um cara pacífico, e muita gente virou as costas pelo que fiz. Não me arrependo.
Ah! Sou um risco para a sociedade. Isso é engraçado de se reconhecer quando a sociedade é um risco para si mesma. Autofagia! A sociedade come a si mesma. Ontem, um sujeito mal-encarado veio me visitar. Ajeitou o chapéu de couro de boi sobre a cabeça, cuspiu um naco de fumo em minha direção, levantou os olhos, mostrou os dentes amarelecidos e disse: “A gente tem juiz no bolso e força no Congresso. Você já era, filho da puta! Você não é ninguém!” Mostrei o polegar pra ele, sorri e comentei que se eu tivesse mais tempo teria feito muito mais.
Ficou puto e vi nos seus olhos a vontade de me matar. “Não, cara! Não aqui e agora.” Sugeri que parasse de mascar fumo se não quisesse ficar com os dentes iguais aos do Beetle Juice. Ele não entendeu. Recebi visitas de outros tipos estranhos. Outro dia, mandaram um engravatado, parece que a mando de um deputado, me oferecer uma boa grana para entregar meus amigos. Se fosse por dinheiro, não teria feito o que fiz.
O dinheiro é a raiz de toda essa desgraça. Não que eu seja contra ganhar dinheiro; sou contra a escravidão que ele gera. Talvez você esteja se perguntando o que fiz para estar neste buraco. Tem gente me apoiando aqui, e acho que se a coisa ficar feia pode ser que eu não esteja sozinho. Neste momento, registro minha história neste papel higiênico.
Tudo começou em 2015, quando eu participava de um fórum na darknet. Havia pessoas de vários estados do Brasil. Era um grupo de ativistas pelos direitos animais. Nosso lance era ciberativismo mesmo. A gente se articulava por lá e produzia textos e vídeos para rebater falácias especistas e conscientizar as pessoas sobre a indústria da exploração animal. Era legal, mas chegou um momento em que tudo aquilo começou a parecer pouco, muito pouco.
Afinal, qual é o propósito de dedicar tanto tempo a algo que proporcione poucos resultados? A gente queria mais, muito mais. Lembrei da lei de Thelema, do Aleister Crowley dizendo “Faze o que tu queres, há de ser tudo da Lei.” Não demoraria; a gente faria. “Porra, vamos colocar fogo no mundo, cara!”, disse Nikolai. Figura de expressão, hipérbole. Sim, não no mundo, mas algo iria queimar, com certeza. Tínhamos pessoas o suficiente para fazer isso acontecer. Amadores com corações profissionais, isso nos define até hoje.
Acordamos de madrugada naquele domingo e nos dividimos em dois carros e um caminhão. Dirigimos pouco mais de 150 quilômetros até chegarmos ao nosso destino – um dos maiores matadouros do Paraná, situado em uma área rural, ladeado por uma lagoa com a água mais suja que já vi em toda a minha vida.
Senti náuseas diante do odor intenso daquele depósito de lixo flutuante. Restos de animais, fezes, resíduos químicos e outras porcarias se misturavam enquanto a água espumava e esfumaçava como um cenário de um filme do Ed Wood ou da Troma. “Que diabos é isso?”, perguntou Sonia.
Não sei se aquilo era normal ou se tinha acontecido algum acidente, mas o solo estava carcomido por algum tipo de podridão. Fedor absurdo, banhado por um líquido nojento e pegajoso que emborcava lá longe, na nascente. Matava tudo que inspirava vida, desde a menor até a maior das plantas. Tudo naquele inferno inspirava à morte. E estávamos lá por isso.
Quando vi um homem parado no portão, caminhei até ele. Não subornei ninguém, senão seríamos tão sujos quanto qualquer um que vive da degradação social. “Seja como nós, ou seja contra nós”, concluí coçando a nuca. Acenei e Borges retribuiu a cordialidade:
— O senhor sabe o que a gente veio fazer aqui.
— Sei sim.
— E está bem com isso?
— Sim, faça o que tiver que fazer. Falei com os outros, já desativaram todo o sistema de segurança.
Borges era o chefe da segurança, e também tio de Alice, nossa amiga. Quando ele assobiou, três seguranças deram um positivo com a cabeça; caminhamos matadouro adentro. Não era limpo como a TV, os jornais, os vídeos institucionais e os folders mostravam. Talvez improvisassem bons ângulos, vai saber.
Eu andava e o ar pesava, uma energia ruim que emanava daquele ambiente onde entrava vida e saía pedaços de morte bem embalados. O matadouro tinha muros bem altos, como uma fortaleza. Imaginei os gregos invadindo o lugar dentro do Cavalo de Troia.
Do lado de fora, era impossível ver o que acontecia lá dentro. Enquanto Eu, Nikolai, Sonia e Alice entramos, Marcelo, Roberto, Lúcia e Bruna percorreram as imediações, confirmando que não havia nenhum animal, humano ou não, por perto.
Azulejo branco nas paredes e piso vermelho por onde escorria o sangue dos inocentes. Corredores estreitos, plataformas, grilhões, correntes, caixas, gaiolas, carretilhas, roldanas, ferrugem, torneiras, pias de lata, pistolas, facas, tubos, marretas, escadas, sangue seco, riscos no chão – marcas de luta; campos de concentração aprovados pela humanidade e legitimados pela legislação.
As dependências vazias contavam histórias de terror e medo. Borges relatou que milhões de animais morreram naquele lugar. Muitos resistiam em vão. Ele tinha razão. Ouvi porcos se contorcendo e grunhindo, presos aos grilhões enquanto o sangue quente jorrava. Famílias de bois, vacas e bezerros, assassinados em espaços diferentes – mortes sempre solitárias. Nenhum deles queria morrer; ninguém queria reconhecer.
Como podemos comer algo que um dia teve pernas para fugir, olhos e ouvidos para assistir e ouvir o próprio fim? Algo que um dia fez parte de alguém que sentiu calor, frio, fome e sede como nós mesmos; que não teve a oportunidade de viver o suficiente para descobrir algum prazer em existir, porque foi forçado a sucumbir. Morrer cedo demais é algo que animal nenhum deseja ou espera – jamais.
Poderíamos ter provocado um incêndio no departamento de expedição, causando uma pane no painel de controle da esteira que conduz os pedaços de cadáveres que eles chamam de produtos. Mas não teríamos como mensurar a proporção do estrago. Não! Tinha que ser feito à moda antiga.
Descarregamos galões de querosene e derramamos sem economia por todos os espaços. Alguns de nós gargalhavam e entoavam: “Para aqueles que só o que pesa no bolso pesa na consciência, ignorando dos mais fracos a capacidade de senciência.” Já em silêncio, terminamos de despejar os últimos litros de querosene pelas dependências.
O odor não era agradável. Pelo menos mascarava a álgida fedentina de morte. Pedi que os outros saíssem do matadouro e me esperassem na entrada. Me ajoelhei, inclinei a cabeça em direção ao chão e falei: “Que vocês me perdoem por tudo que não fiz.”
Acendi um coquetel molotov e arremessei com força, fazendo a garrafa atravessar dezenas de metros antes de explodir em chamas, como um pássaro dourado ganhando a liberdade. O fogo estava faminto, e tudo que um dia serviu para ceifar tantos animais conheceria o seu próprio fim.
Borges e os seguranças já tinham partido. Lá fora, assistimos a crescente cólera do fogo que representava a nossa própria. Assim que o prédio começou a desmoronar, Marcelo confirmou que não havia ninguém nas imediações. E o tempo previsto para a chegada do Corpo de Bombeiros não poderia ser outro – somente quando as chamas deitassem a última fundação.
Talvez tenha sido o maior espetáculo de nossas vidas. Afinal, ninguém dança melhor que o fogo quando suplanta a sevícia humana contra outras espécies. Ele é livre, mais do que nós na nossa incompletude existencial que perpetuamos por empáfia e pedantismo.
— Sentimos muito pelas pessoas que podem ficar desempregadas, mas ninguém deveria se profissionalizar em tirar vidas. Isso destrói o outro e você, mesmo que você não perceba – disse Sonia.
— É, não acho que alguém consiga ser feliz trabalhando num lugar desgraçado desse, ainda mais num ambiente onde se gera mais morte do que emprego; e menos ainda qualidade de vida – acrescentou Lúcia.
Fomos embora, não crentes de que estávamos salvando o mundo, mas acreditando que uma mensagem foi dada – nem todos abaixam a cabeça ou se mantêm calados diante da intransigência humana, de suas ações escusáveis, caprichosas e gananciosas.
Me entreguei à polícia no dia seguinte, e insisti para que ninguém fizesse o mesmo. Se eu não me entregasse, as pessoas não saberiam o que aconteceu no matadouro. Ah! Algumas matérias dizem que sou um piromaníaco, desequilibrado; alguém sem qualquer motivação. A mídia independente e as redes sociais estão aí para provar o contrário.
Ainda não fui a julgamento. Faz dois meses que estou em prisão preventiva. Muita gente se afastou de mim; pessoas que não me fazem falta. Os poucos e bons amigos me trazem notícias. Fiquei sabendo que mais de 30 matadouros foram incendiados até agora. Não sei onde e quando. Ninguém se feriu ou morreu. Isso é bom. Dizem que sou o mentor intelectual. Isso é ruim. A única coisa que fiz foi mostrar que hoje não é ontem, e que o fogo também representa o renascimento daquilo que amortece o desconhecimento.
O pendão e o pé de feijão
Me dava a impressão de que queriam romper o telhado e ganhar os céus
Um dia, quando eu tinha seis anos, eu e meu irmão Douglas estávamos em casa, na sala de estar, ladeados pelos colossais pendões ornamentais de minha mãe. Eram sarapintados e tão bonitos que ficamos em torno deles os observando e tocando. “Parece cabelo de milho, só que colorido!”, comentei.
A maneira como se esforçavam para acariciar o teto quando a brisa invadia a sala me dava a impressão de que queriam romper o telhado e ganhar os céus. Suas formas delgadas e perfiladas convidavam nossas mãos miúdas a fazerem cócegas um no outro com suas franjas. Em pouco tempo, e mais vermelhos do que um dos pendões, rolávamos pelo chão às gargalhadas, coçando a cabeça, o rosto e os braços. As cutucadas nas orelhas intensificavam as casquinadas.
A balbúrdia era tão grande que o piso de tacos, recém-lustrado pela minha mãe, vibrava e ganhava marcas de dedos, cotovelos e solas de pé. A verdade é que os pendões nos serviam até para brincadeiras de esconde-esconde. Sofria diante de nossa presença, e às vezes eu suspeitava que ele tremulava mais por medo do que por incidência fortuita da aragem.
“Agora vêm esses loucos em miniatura”, talvez aventasse, contraindo-se timidamente. Parecia que se encolhia com a nossa chegada, como menina empenhada em não ser notada. Muitas vezes, assim que cheguei da escola, joguei a mochila sobre a cama e fui até a sala. Corria em torno dos pendões, imitando um índio aprendiz de guerreiro. Ocasionalmente, enfiava a cabeça entre eles, observando a ausência de luz de um candeeiro. Fechava os olhos e sentia um quimérico e tenro perfume alvissareiro.
Imaginava um rio caudaloso, para onde eu poderia fluir como suas águas, se me lançasse sem sobrosso. Com as canetinhas de colorir, fazia alguns riscos no rosto. Urrava com voz falsa e continuava a incomodar os pendões até a hora de ir para a escola. Um dia, arrastei o vaso para mudá-lo de posição e senti uma força me impelindo quase à exaustão. Embora dissessem que os pendões não tinham vida, me assustei ao ver um pouquinho de água no piso de tacos, em torno e debaixo do vaso.
Achei que os pendões tivessem chorado por minha causa e parei de incomodá-los até a tarde em que conheci o conto “João e o Pé de Feijão”, do inglês Benjamin Tabart. À noite, em casa, deitei no beliche com olhos intumescidos, divaguei pela história narrada pela professora Inês, e considerei: “Se não tem vida, por que ele parece maior? Estranho…muito estranho…”
No dia seguinte, minhas dúvidas aumentaram exponencialmente quando vi que estavam maiores do que nunca. Contei ao meu irmão Douglas o que aconteceu e ele também se aproximou para confirmar a minha suspeita do pendão se passando por pé de feijão.
Minutos antes do almoço veio a certeza de que algo precisava ser feito. Havia grãos de feijão em torno do pendão. Sorrimos com chiata, coçamos as mãos e olhamos um para o outro, movimentando maquinalmente a cabeça de cima para baixo, em concordância. “Quer dizer que não consegue mais fingir? Uhum…”, concluí.
No dia seguinte, enquanto minha mãe e meu tio conversavam na varanda, eu e meu irmão fomos até a sala. Antes observamos o entorno para ter certeza de que não seríamos surpreendidos por ninguém. Douglas tirou um isqueiro do bolso e eu tirei outro. Frente a frente, acenamos com a cabeça, e acendemos os dois – encostando-os nos pendões que queimaram como gigantescos busca-pés silenciosos, privados de assobiar.
Logo se transformaram em um nada incandescente. O fogo subiu tão rápido que me lancei para trás, sentindo o corpo quente e a visão ligeiramente turva. Inclinando a cabeça para cima, enxerguei o teto esbraseado. O fogo, vivo como nunca tinha visto, transfigurou suas formas até o momento em que Tio Lu, com o auxílio de minha mãe, se aproximou para impedir que ele se espalhasse.
Assistimos tudo em inércia. A intervenção rápida só não impediu que o forro ficasse preto. E assim ganhamos o nosso próprio céu enlutado, sem lua ou estrelas, apenas uma estática escuridão que ofuscava a réstia escabreada que tentava iluminar os restos de pendão.
Ficamos de castigo por um bom tempo. Apesar disso, nos sentíamos heróis, crentes de que evitamos que o gigante comedor de gente jamais desceria pelo pé de feijão transformado em pendão. “Não ia demorar até ele chegar. Fizemos bem”, comentamos. Depois de algumas cintadas e uma semana sem sair para brincar, minha mãe descobriu porque ateamos fogo nos pendões.
No dia da revelação, fiquei sabendo que antes do acontecido o vaso dos pendões foi trocado por outro igual, porém com fundo raso, dando a impressão de que eram maiores. Além disso, a água em torno dos pendões foi derramada na manhã em que minha mãe foi ao nosso quarto com um balde de água para limpar o piso.
“Os grãos caíram no chão quando corri pela sala com um pacote aberto de feijões para atender ao telefone”, confidenciou. Ouvimos em silêncio, entendemos e reconhecemos nossa culpa. De volta ao quarto, sorrimos um para o outro. Atirei um grão de feijão cru em meu irmão e ele atirou outro em mim. Não era preciso articular palavra. “A inocência não se envergonha de nada”, dizia Jean Jacques-Rousseau.
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A casa queimada e o início da alvorada
Glutão, o fogo tomou conta do local, formando vultosas labaredas que chamuscavam as paredes
No dia 6 de novembro de 1985, quando eu ainda era bebê e estava dormindo, minha mãe conversava na sala com um amigo chamado Jamil. De repente, meu irmão, também pequeno, se aproximou e disse: “Nossa! Tem um vermelhão enorme lá na cozinha. Vai lá ver!” Quanto mais se aproximava, mais minha mãe sentia cheiro de queimado. Glutão, o fogo tomou conta do local, formando vultosas labaredas que chamuscavam as paredes nevadas e limpas. Obscurecia tudo sem reservas e derrubava sobre o piso quente e úmido os restolhos que abrasava sem muito esforço.
Sem pensar nos danos materiais, minha mãe me pegou em seus braços, chamou o Jamil e gritou o nome do meu irmão algumas vezes: “Douglas! Douglas! Venha aqui! Venha aqui! A casa está pegando fogo. Vamos sair! Vamos sair!” E continuei dormindo no caloroso aconchego materno que me protegia da destruição que se intensificava. Minha fisionomia persistia serena. Era cedo demais para reconhecer uma tragédia. Estava imerso num mundo cândido de sonhos onde crianças são sempiternas.
Só abri os olhos grandes, pretos e redondos como duas jabuticabas quando estava fora de casa, como se ainda não me fosse permitido testemunhar os infortúnios da vida. Balancei as pernas no colo de minha mãe e num sorriso singelo e desdentado tentei consolá-la involuntariamente. Estiquei os braços para tocar-lhe o queixo, mas eram curtos demais. Mesmo assim, lágrimas mornas escorriam pelo seu rosto e desciam pelos meus braços curtos que formavam uma ponte disforme.
Soltei uma curta gargalhada e minha mãe voltou sua atenção pra mim. Percebeu que as águas salinas que desciam dos seus olhos me levaram ao riso assim que invadiram uma das aberturas da minha camisetinha regata, tocando minhas axilas e fazendo cócegas. Ela riu e me asseou com uma fralda que trazia uma estampa do Pernalonga comendo cenoura. Passivas, muitas pessoas se aproximavam para assistir a desfortuna como se estivessem prestigiando um espetáculo de piromania. As paredes da casa de madeira da Rua Antônio Fachin, perto da antiga Antarctica, em Paranavaí, caíam uma a uma, como num jogo de dominó. Vencidas pelo fogo, retumbavam e deitavam sobre o chão calcinado, expondo ao público a destruição de um todo que exigiu milhares de horas de trabalho.
Em meio ao intenso bodum de queimado, todos sentiam o sutil aroma dos pães que minha mãe fazia todos os dias. Alheia aos cochichos dos estranhos, ela se mantinha inerte, observando o empenho dos bombeiros. Nada mais podia ser feito. Tarde demais. O rompimento do teto e a queda violenta das telhas de cerâmica vermelha ecoavam um som labiríntico seguido por cortinas de poeira trigueira que velavam um vazio vertical. Tudo parecia rasteiro, menos a tristeza de minha mãe que se amplificou com a chegada das suas irmãs Paula e Smaida e do seu pai João. Eles também moravam na casa e não conseguiam acreditar no que viam. Paula que chorou desesperadamente trouxe na cesta da bicicletinha Caloi verde alguns pães caseiros que não teve tempo de vender naquele dia.
Antes que minha mãe pudesse contabilizar os estragos, alguns repórteres se aproximaram e perguntaram como ela se sentia ao ver a casa em ruínas. Apesar da voz fragilizada e rareada, respondeu educadamente: “Me sinto mal. Muito mal. Tudo que eu tinha estava lá dentro.” Minha mãe, com 27 anos, se afastou da plateia e me carregando no colo caminhou em direção aos escombros. A cada passo, sentia uma pontada no peito. O corpo estremecia e ela resistia, mais pela família do que por si mesma.
“Ainda bem que queimou só essa casa aí. Imagine se o fogo se espalhasse até as nossas? Hunf!”, comentou uma mulher. Com a chegada da polícia, os curiosos foram dispersados. Quando ficamos sozinhos, minha mãe circulou por mais de hora no centro da residência que não existia mais. Observava tudo atenciosamente e caminhava com sapatos sujos entre os detritos, tentando encontrar algo que pudesse ser aproveitado. Meu irmão, minhas tias, Jamil e meu avô faziam o mesmo. Mas a verdade era uma suplantadora de crenças e expectativas, reforçada por duas tábuas caídas no chão. Com pregos mirando o chão, formavam uma cruz acinzentada. Então minha mãe, responsável por criar dois filhos e duas irmãs, não chorou mais.
Mais tarde, Seu Dino, um alemão supersticioso que morava na Rua Minas Gerais e era amigo da minha família, nos procurou para dizer que uma casa queimada marcava o início de uma alvorada. “Não fiquem tristes. Olhe, o fogo queima todo o azar e com ele leva o arremedo de um pesar. Marca um renascimento, um sinal de reavivamento”, profetizou e citou a lenda de Benu, o pássaro egípcio nascido do coração de Osíris e que se aninhava entre ervas aromáticas antes de ressurgir após atear fogo em si mesmo.
Trinta minutos depois que Seu Dino partiu, o calor primaveril deu trégua e o sol complacente desapareceu atrás da copa de um enorme pé de manga que cobria e arrefecia nossa casa. A brisa repentina e duradoura afastou o mau cheiro de crestado, trazendo junto com o frescor da tarde, no seio do descampado, um chuvisco vaporoso com gosto adocicado.
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1959: Incêndio criminoso na Prefeitura de Terra Rica
Prédio municipal foi destruído no dia da posse de James Clark
Terra Rica, no Noroeste Paranaense, se tornou oficialmente distrito de Paranavaí em 5 de agosto de 1952, embora o povoado tenha surgido em 1950 com o nome de Estrela do Norte. Em 26 de novembro de 1954, a colônia foi elevada a município, mas a história política da localidade só teve início em 1955, quando o candidato Francisco Ramirez Galeoti conseguiu se eleger como prefeito. Quatro anos depois, um incêndio criminoso destruiu o prédio da prefeitura, fato que chocou a população e entrou para a história com uma das maiores tragédias de Terra Rica.
Após a eleição municipal de 1955, a população também soube que Ovídio Damiani, João dos Santos, Oswaldo Menoti, Izídio Modena, Vitalino Rodrigues da Silva, Alberto Filipak, Durval Veronese, Serafim dos Santos e Francisco Antônio de Oliveira se tornaram os primeiros vereadores da recém constituída Câmara Municipal de Terra Rica. Em menos de dois anos, o município somou 20 mil habitantes, a maior parte vivendo sob a égide da cultura do café, algodão e cereais. “Tínhamos quase sete milhões de pés de café plantados em Terra Rica”, disse o pioneiro Joaquim Luiz Pereira Briso em entrevista concedida ao autor deste blog em 2006.
A alta produtividade cafeeira contribuiu para que o município alcançasse a marca de 146 estabelecimentos comerciais em pleno funcionamento em 1957. Segundo o pesquisador Edson Paulo Calírio, Terra Rica estava se desenvolvendo muito bem, além das expectativas. “Havia quatro hotéis na cidade, cinco pensões e um cinema com capacidade para pelo menos 200 pessoas”, contou. Entre os meios de transporte, o mais popular era o caminhão, até pela facilidade de tráfego nas precárias e íngremes estradas de chão da região. A frota de veículos circulando no município era de 52 caminhões, 14 automóveis e 3 jipes.
Em 1959, um novo prefeito trouxe mais esperanças à população. O engenheiro de origem inglesa James Patrick Clark assumiu a administração municipal quando a cidade atravessava um bom momento econômico. Há dez anos vivendo em Terra Rica, Clark foi enviado à região pela Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná (Sinop), comandada por Ênio Pipino e João Pedro Moreira de Carvalho, com a missão de coordenar a abertura de estradas, delimitação do perímetro urbano e divisão de lotes rurais. James Patrick começou a gostar do lugar e dos moradores, então adotou a cidade como lar definitivo.
Com bastante conhecimento sobre a realidade local e regional, não foi difícil para o engenheiro conquistar os eleitores e se eleger prefeito. O trabalho liderado na mata fez até os mais humildes se identificarem com Clark. No entanto, a postura de James Patrick não agradava a todos, principalmente a oposição política que não aceitou muito bem o resultado registrado nas urnas. “Exatamente no dia 4 de dezembro, quando Clark assumiu como prefeito, atearam fogo na prefeitura, deixando somente as cinzas do antigo prédio de madeira. Supostamente, a intenção era eliminar papéis comprometedores que estavam em posse do novo gestor. A maior parte dos documentos tinha relação com apropriação de terras”, revelou o pioneiro Joaquim Luiz Pereira Briso.
No momento da tragédia, não havia ninguém na prefeitura. Outros antigos moradores de Terra Rica declararam que James Patrick Clark tinha uma postura de trabalho bastante rígida e provavelmente não cedeu aos interesses de outros políticos. Por isso atearam fogo na prefeitura como forma de punição e destruição de provas. Apesar da gravidade, ninguém foi responsabilizado pelo incêndio criminoso.
Considerada uma autoridade de “pulso firme”, o engenheiro de origem inglesa tinha fama de rejeitar acordos que não beneficiassem diretamente a população. “Naquele tempo de pioneirismo, havia muita rixa política, era algo absurdo. Vendo tudo isso, eu nunca quis me meter com política, sempre tive nojo. É muita sujeira”, desabafou Pereira Briso. Mais tarde, mesmo não cedendo aos adversários, Clark foi surpreendido por uma grave doença que o obrigou a se afastar da prefeitura para se tratar fora de Terra Rica.
Nesse período, a administração municipal foi comandada por José Teixeira Prates, Agostinho Vicenzi, Antônio Gerlach e Alberto Filipak. James Patrick planejava retomar a vida política, mas a doença já estava em estado avançado. Clark faleceu antes de colocar em prática seus planos para Terra Rica. “Ninguém jamais soube o que poderia ter mudado se ele tivesse vivido mais”, comentou Briso.