David Arioch – Jornalismo Cultural

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Seis meses vendendo crack e morando na zona

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“Tinha cara que nem ia na zona pra transar. Só queria a mulherada em volta e fumando com ele”

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“A cada cinco pedras vendidas [ao custo de R$ 5 por unidade], o lucro de três pode ficar pra você”, prometeu (Foto: Reprodução)

Dantão conheceu a zona por causa de uma mulher. Ela chegou um dia na sua casa na Vila Alta, na periferia de Paranavaí, e o encontrou dormindo depois de cheirar meio litro de cola de sapateiro. Sem ocupação, sem dinheiro e vivendo na miséria, não pensou duas vezes antes de reunir os “trapos” dentro de uma sacola e partir para uma casa de prostituição que funcionava em uma chácara no Jardim São Jorge.

Ainda “noiado”, não tinha certeza de onde estava ou o que faria. Apelidado de Monstrão, foi colocado para trabalhar na portaria do bordel. Ganhava R$ 25 por noite e se tornou o xodó da mulherada com seu jeito remansoso e paradoxalmente enérgico de impedir conflitos entre desordeiros. “Eu não era casado, nem nada. Me sentia em casa morando na zona com aquela mulherada avulsa. Se tivesse striptease, eu chegava junto pra não deixar os folgados tocarem nas moças”, conta.

A dona da casa gostou tanto de Dantão que permitiu que ele trouxesse o que quisesse da velha moradia. Depois da meia-noite “trombava” com advogados, juízes, promotores, políticos, médicos e empresários. “Era tudo da alta sociedade. Até dono de usina, agroindustrial. Eu começava às 19h e ia até 7h, 8h da manhã”, afirma. Em dia de grande movimentação, a casa disponibilizava de 25 a 30 moças com faixa etária de 18 a 30 anos. “A maioria dizia que vivia naquela vida porque não conhecia outra coisa. Uma me falou que não via a hora de arrumar um homem sério pra cuidar dela e dos filhos”, relata.

Algumas moças sofriam de depressão e choravam alegando que não aguentavam mais viver se prostituindo. “Dava dó. E eu entendia isso porque sei o que é não ter oportunidade. Quem vem de baixo normalmente passa a vida vendo os outros virando as costas pra você”, declara. Quando havia discussão por causa de mulher, o rapaz entrava no meio e discursava: “Quem tem mais dinheiro fica com a moça. O nome daqui é zona, então leva quem tem mais.”

Após dois meses no prostíbulo, Dantão foi abordado por um traficante. A princípio não quis se envolver, até que o homem o convidou para fumar crack e sugeriu que ele vendesse algumas pedras só para “sentir o gosto da coisa”. Depois de uma nova conversa foi convencido a entrar no negócio.

“A cada cinco pedras vendidas [ao custo de R$ 5 por unidade], o lucro de três pode ficar pra você”, prometeu. Empolgado, Dantão pegava 200 e até 300 pedras nos dias de grande demanda. “Eu só vivia lá dentro. Nunca saía pra nada. Rapidinho fiquei famoso entre os frequentadores da zona que buscavam mais do que sexo. Era tudo nego do dinheiro. Numa noite um dono de usina chegou com R$ 5 mil e foi embora liso”, narra.

No entanto, conforme as vendas aumentavam, a parcela de lucro de Dantão seguia na contramão, caindo. “Arrastava até três mil reais numa noite e o patrão ficava com quase tudo. Pra mim sobrava uns R$ 500, R$ 600. Mas é sempre assim. Patrão não se mata, quem se mata são os laranjas e os mulas. Ele só administra e manda. Quem se fode e corre risco é você”, desabafa.

Para piorar, Dantão conheceu uma loira e ex-detenta que veio de outra cidade para trabalhar na zona. Os dois se envolveram e o rapaz acabou viciado em crack. “Comecei a fumar pedra direto com ela, toda noite. Ela sempre queria fumar com os clientes, até que um dia foi embora e nunca mais a vi”, enfatiza.

Ao longo de oito meses morando na zona e seis meses comercializando crack, Dantão perdeu as contas de quantos homens chegaram pedindo 50 a 60 pedras de crack para fumarem nos quartos. “Tinha cara que nem ia na zona pra transar. Só queria a mulherada em volta e fumando com ele, até porque a pedra corta o tesão do homem. Lembro de um magnata aí pra quem servi 100 pedras numa noite. Ele fumou tudo com algumas moças. E elas não podiam recusar porque mulher na zona acaba tendo que se submeter a tudo”, revela o rapaz que se afastou das drogas e hoje trabalha como servente de pedreiro.

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Sabrina, o nascimento de uma mulher

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Sorriu como nunca e notou no próprio olhar um brilho diferenciado, de alguém redescobrindo o mundo

“A Alana que tem a mesma idade que eu me ajudou muito. Ela que me batizou com o nome de Sabrina” (Foto: Arquivo Pessoal)

“A Alana que tem a mesma idade que eu me ajudou muito. Ela que me batizou com o nome de Sabrina” (Foto: Arquivo Pessoal)

Sabrina tinha 16 anos quando experimentou pela primeira vez um vestido. Se sentiu bonita e realizada diante de um espelho que mostrava não apenas o seu reflexo, mas quem ela realmente era no seu íntimo até então velado. Sorriu como nunca e notou no próprio olhar um brilho diferenciado, de alguém redescobrindo o mundo que lhe parecia negado pela possibilidade de viver uma das mais pungentes formas de preconceito – a homofobia.

Com a mesma idade, começou a fazer programas escondida da mãe. Muitos clientes procuravam sexo enquanto outros pagavam apenas pela companhia. Se aconchegavam em seus braços, conversavam, desabafavam, choravam ou simplesmente se extasiavam com um pouco de calor humano. Outros iam além nos pedidos mais inusitados. “Teve um cara uma vez que pediu pra eu penetrar um pepino na bunda dele”, conta rindo.

Quando Sabrina completou 18 anos, a mãe descobriu tudo. Então a jovem explicou que fazer programas é uma forma de trabalho, justificando que quer alcançar seus objetivos o mais rápido possível para futuramente ter uma vida normal. “Tive experiências muito boas com clientes, mas também algumas estranhas, como ser paga para assistir a pessoa ficar se drogando. Ofereciam pra mim, só que nunca gostei disso”, diz.

Com 1,80m, 60 quilos, pele oliva, cabelos longos e bem alinhados, um rosto fino cuidadosamente maquiado e expressivos olhos pretos, Sabrina chama atenção por onde passa e não nega as transformações que viveu nos últimos anos para ser quem é hoje. “Tenho três litros de silicone no bumbum e nas pernas. Sou uma garota em fase, com seios pequenos. Em breve vou colocar uma prótese de silicone”, garante sem esconder a empolgação seguida por um riso fácil.

Em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, Sabrina integra uma irmandade de 15 jovens que fazem programas. Sempre que necessário, uma protege a outra, principalmente quando aguardam clientes em algumas das esquinas mais movimentadas da cidade. “Tenho amigas que ainda continuam na rua, mas eu já não faço isso com frequência”, informa a jovem que tinha como ponto um dos cruzamentos da Avenida Distrito Federal.

Com clientes fixos, que atende ocasionalmente, e perfis em mídias sociais como Tinder e Badoo, Sabrina não vê necessidade de tanta exposição nas ruas para conseguir dinheiro. “Estou há quatro anos nesta vida. Também fiz programas ao longo de quatro meses em Ponta Grossa [no Centro Oriental do Paraná] por indicação de amigas que me falaram muito bem de lá. Foi ótimo! Conheci várias meninas”, narra com tom de voz vibrante.

Quando não está trabalhando, Sabrina leva uma vida bem tranquila e caseira. Desinteressada em festas e baladas, prefere assistir TV, limpar a casa da mãe, conversar com familiares ou bater papo pelo Whatsapp. “Sim, penso em casar e ter filhos depois que estiver totalmente feita”, confidencia Sabrina que nasceu homem, porém nunca se sentiu como um.

Desde criança já gostava de “coisas de mulher”, só que por receio de sofrer com a homofobia se obrigava a reprimir seus anseios para atender convenções sociais. “Nunca me vi como homem e nunca gostei de nada de homem. Resolvi me assumir pra todo mundo no ano passado, com 19 anos. Estou lutando para ter o que não tenho, o que quero. Odeio a minha parte masculina”, desabafa.

O reconhecimento da identidade feminina veio acompanhado de uma cerimônia realizada pelas amigas da jovem. “A Alana que tem a mesma idade que eu me ajudou muito. Ela que me batizou com o nome de Sabrina. O batismo foi uma forma de simbolizar o carinho dela por mim, de dizer que sempre posso contar com ela”, enfatiza.

Se assumindo como transexual, a jovem começou na mesma época a pesquisar sobre terapia de reposição hormonal e cirurgia de redesignação sexual (CRS). “Nunca me vi como travesti e meu desejo é ser tratada como mulher. Para alcançar meu objetivo, comecei consumindo hormônios como Climene, Mesigyna e Perlutan. Ah! Estou feliz porque em fevereiro vou pra outra cidade aumentar meus seios”, comemora.

Sabrina também tem planos de fazer cirurgia plástica no nariz, com a intenção de afiná-lo e diminuí-lo, e concluir a cirurgia de mudança de sexo antes dos 25 anos. “Quem é trans não é feliz do jeito que nasceu e corre atrás do que quer. Eu mesma tenho certeza do que quero. Ainda não me sinto bem do jeito que sou. Não estou satisfeita”, confessa.

“Olha o veado! Olha o veado!”, grita ocasionalmente algum encrenqueiro em tom de deboche quando vê Sabrina. Ela simplesmente ignora – continua em silêncio e desvia o olhar. Sem se importar com a opinião alheia, desconsidera qualquer piada ou ofensa. “Até hoje o máximo que fizeram foi provocar, xingar e caçoar. Graças a Deus, ninguém foi além disso”, garante.

Por outro lado, na contramão da homofobia, a jovem passou por muitas situações que fazem da sua vida uma gratificante jornada, principalmente quando circula por algum lugar e as pessoas observam com bons olhos a sua transformação.

“Tem gente que faz você se sentir bonita só com o olhar. Recebo muitos elogios, e assim vou me sentindo uma garota mais realizada. Passei a maior parte da minha vida sem saber o que é ser desejada e isso mudou. Você se sente bem consigo mesma quando começa um relacionamento e vê que um cara gosta de você pelo que você é”, afirma sorrindo.

“Não sinto desejo por mulher”

Sabrina sempre teve o apoio da mãe que lidou muito bem com a situação quando soube da homossexualidade do filho – antes de se tornar transexual. “Ela só ficou muito preocupada com a parte de transgênero. Tinha medo da reação do povo, sabe? Como a sociedade iria reagir. Fui sincera e falei que era assim que me sentia bem e iria ser feliz. Então ela acabou entendendo. Hoje minha família me aceita como sou”, conta a jovem de Paranavaí, onde vive desde que nasceu.

O que endossa a identidade sexual de Sabrina é o fato de que ela nunca se interessou por mulheres. “Nunca aconteceu. Não sinto tesão, desejo ou atração. Não sinto nada por mulher. Sempre gostei de homem. Só que pra gente namorar é complicado. Não é fácil pra pessoa assumir isso e tive várias decepções, desentendimentos, mas a gente consegue levar”, pondera.

A jovem que se define como simpática, extrovertida e ao mesmo tempo estressada e casca grossa admite que hoje é mais reservada porque foi muito magoada. “Sou fácil de se lidar. Só não gosto mais de mostrar demais meus sentimentos. Me dou bem com todo mundo, nunca fui de briga. Não gosto disso. E não nego que às vezes me acho um pouquinho. Isso acontece porque gosto de me sentir bonita”, revela com uma voz bem feminina e descontraída, seguida por um riso efusivo.

Sobre homens, Sabrina diz que o mais importante é o jeito do cara. Ser educado, simpático e carinhoso está entre os predicados de maior relevância. “Não ligo muito pra sexo. A maioria dos homens liga. Acho que legal mesmo é o cara saber tratar uma pessoa. E claro que se ele te trata bem, ele vai ser bem tratado”, argumenta, numa referência incidental da ética da reciprocidade, também conhecida como regra de ouro.

Depois de abandonar o colégio no ensino médio, Sabrina pretende voltar a estudar em 2017. No entanto, reclama que os colégios de Paranavaí não estão preparados para receber jovens na mesma situação que ela. “Eles evitam falar disso nas escolas. O preconceito sempre existe. Nunca tive problemas porque sempre ignorei quem tentava me ofender. Seria bom ter algum tipo de orientação nesse sentido. Ser homossexual não é opção, não é nenhum bicho de sete cabeças. Você nasce assim e não pede mais do que compreensão e respeito”, defende.

Frases de Sabrina

“Há jovens de Paranavaí se prostituindo em muitas cidades e estados do Brasil”

“Para quem é travesti ou trans, a parte de apoio é muito difícil. Seria bom se isso mudasse”

“Acho que temos uma boa união entre transgêneros em Paranavaí. Nos vemos como iguais. Isso faz a gente se sentir mais segura”

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Written by David Arioch

December 27th, 2015 at 12:36 pm

Garota de programa, intemperança e transtorno de personalidade

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Na internet, se tornou cada vez mais fácil encontrar pessoas com transtorno de personalidade (Foto: Francesco Pirrone)

Está cada vez mais fácil encontrar pessoas com transtorno de personalidade no meio virtual (Foto: Francesco Pirrone)

Hoje, li uma notícia sobre uma moça que atuava como garota de programa em Uberlândia, Minas Gerais. Ela foi assassinada porque chegou atrasada ao encontro com um cliente. No Facebook, um homem com cerca de 35 anos e uma foto de perfil em que aparece sorrindo com dois filhos e a esposa comentou exatamente o seguinte: “Que sirva de exemplo para essas quengas kkkk.”

E há quem se pergunte o que existe de errado na sociedade atual. Pessoas aparentemente normais, bastante sociáveis, muitas vezes se tornam irreconhecíveis na internet. Alimentam a intolerância e deixam bem claro que nutrem desprezo pela vida daqueles que lhes são diferentes.

Se você é afeiçoado à generalizações, incapaz de dialogar abertamente ou de aceitar e discutir diferenças sem apelar para clichês, estereótipos ou senso comum, há grandes chances de que você seja um inimigo do conhecimento e do livre-arbítrio.

Infelizmente, ter uma visão limitada do que deve ou deveria ser o mundo revela um tipo peculiar de intemperança e até de megalomania. No fundo, todos nós temos nossos pré-conceitos e preconceitos. No entanto, o problema se torna crônico quando nos recusamos a entender ou analisar em profundidade algo que poderia nos tornar pessoas melhores.

Hoje em dia, o que tem chamado muita atenção de estudiosos do comportamento humano é a tal dissonância entre quem você é na internet e quem você é fora dela. É um assunto preocupante porque nos últimos anos descobriu-se que em âmbito online houve um crescimento imensurável dos mais diversos tipos de transtorno de personalidade.

Para situar melhor, acho plausível citar um exemplo que considero o mais comum na atualidade. Se uma pessoa conversa com outra fora da internet e a primeira diz que a segunda age de modo completamente diferente quando está online, surge aí um grande indício de que a segunda sofra de algum tipo de transtorno de personalidade.

Acredito que hoje a vantagem é que comportamentos suspeitos são facilmente monitorados pela internet. Então quando uma pessoa tem uma atitude nociva em uma mídia social ou faz apologia à violência, ela não apenas mostra quem realmente é como também pode correr o risco de um dia ser responsabilizada por um comentário inconsequente.

Written by David Arioch

January 25th, 2015 at 9:28 pm

“Sou prostituta sim, acompanhante não”

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Mar, uma profissional do sexo sem falsos pudores

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Mar: “Sou vaidosa porque preciso me sentir bem comigo mesma”

Nas imediações do Terminal Rodoviário Urbano de Paranavaí, no Noroeste Paranaense, é possível encontrar muitos personagens marginalizados que fazem parte da história underground da cidade. Enquanto alguns têm pouco a dizer, outros têm muito. Um exemplo é a mulher que prefere ser identificada apenas como Mar.

Há quase 20 anos atuando como profissional do sexo, Mar conta que perdeu as contas de quantos clientes atendeu. “A gente tenta registrar tudo no começo, cheguei até a ter uma caderneta. Depois se perde o interesse e o sexo mais do que nunca se torna apenas uma parte da rotina”, comenta enquanto retoca o batom vermelho no canto da boca.

Mar não esconde a vaidade. Mantém os cabelos escovados, a postura altiva, o entorno dos olhos bem pintados e admite que se veste como se se preparasse para um encontro. “Me sinto bem assim. Não faço pelos clientes porque já passei dessa fase. Preciso me sentir bem comigo mesma”, confidencia.

O expediente de Mar, que já trabalhou em inúmeras “casas de mulheres” e hoje tem um local próprio de atendimento, começa no final da tarde, mesmo com muita claridade. A jornada de trabalho oscila muito, mas reconhece que já atendeu até sete clientes em um dia. “Não aceito mais de um por vez. Teve época que eu ainda aceitava casais, agora não”, diz a mulher que já fez programas com homens dos mais diversos perfis, classes sociais e faixas etárias.

Com 35 anos e muita experiência, Mar explica que nunca entendeu porque tantas profissionais do sexo não toleram o termo prostituta. “Deveriam ser vistas como acompanhantes se realmente fossem contratadas para acompanhar alguém, mas eu nunca vi nenhuma mulher ganhar apenas pra isso. Então eu digo que sou prostituta sim, acompanhante não”, destaca em tom de voz acalorado.

Dos clientes que já atendeu, se recorda de alguns que tinham desejos incomuns. Houve um podólatra que pediu para roer os dedos dos pés de Mar enquanto ele movimentava o corpo no chão, como um réptil. “Falou que isso o excitava muito. Também teve um cara que trouxe pedaços de elástico pra eu prender seus testículos”, exemplifica. Segundo Mar, só quem trabalha nesse ramo sabe que há muita gente aparentemente normal velando seus anseios pela perversão sexual.

“Você não tem ideia de como existem homens que gostam de apanhar. Há pouco tempo, atendi um senhor que me trouxe um daqueles rolos antigos de massa de macarrão. O sujeito pediu que eu batesse em sua bunda com aquilo porque lhe trazia lembranças da infância”, revela com um sorriso enviesado. Os pedidos mais bizarros partem de quem ocupa posição social mais elevada.

Aparentemente, são pessoas infelizes na vida pessoal que a procuram na tentativa de se desvincular da realidade e criar uma nova identidade, nem que seja por tempo bem curto. “Mesmo quando revelam o nome verdadeiro, eles preferem que sejam chamados por outro nome ou apelido”, confidencia. Mar jamais foi desrespeitada pelos clientes, embora alguns tenham sido um pouco agressivos e demonstrado certa inabilidade social.

A mulher relata que apesar do estilo de vida nem sempre estável, não se arrepende da sua trajetória. Garante que como prostituta lucra mais que muitos profissionais despejados no mercado de trabalho pelas universidades. “Sou graduada em pedagogia, mas optei por não atuar na área porque na época eu ganhava muito mais do que uma profissional do ramo”, justifica. Sem filhos e vícios, Mar não gosta nem do cheiro de álcool e fumo. Ao longo dos anos, conseguiu comprar uma casa em um bairro nobre, carro e ainda guardar dinheiro em uma conta poupança, investir no visual e fazer até cinco viagens nacionais e internacionais por ano.

Criada em uma família desestruturada, Mar é filha única de um alcoólatra e uma viciada em medicamentos e jogatina. “Se endividavam e vendiam até móveis e roupas para alimentar o vício. Era raro o dia que o meu pai não me batia. Me espancava com qualquer coisa que estivesse ao alcance da mão. Tinha tanto medo dele que às vezes fazia xixi nas calças só de ouvir seus passos”, lembra.

Mar fugiu de casa aos 12 anos. Morou na rua alguns meses e foi localizada por uma tia que lhe deu abrigo até os 16 anos, quando a mulher faleceu em decorrência de um câncer no estômago. Sozinha, Mar tinhas duas opções: voltar para casa ou morar na rua. “Foi aí que uma amiga me falou que estava se prostituindo para sobreviver. Relutei muito no começo, mas acabei cedendo e hoje estou aqui”, enfatiza.

Sobre o amor, Mar nunca nutriu esperanças em demasia. Prefere ser prática, mas não radicalmente pragmática. “Sim, já tive alguns bons relacionamentos durante a vida, mas sempre busquei um certo equilíbrio. Nunca menti sobre a minha profissão. Não tenho motivo pra isso. Sou quem sou, me aceitei há muito tempo e isso me basta para ser feliz do meu jeito”, assegura.

Uma garota de programa em paradoxo

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Godard e a perspectiva humanista sobre uma personagem marginalizada

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Musa de Jean-Luc vive a prostituta Nana (Foto: Reprodução)

Vivre Sa Vie, Lançado no Brasil como Viver a Vida, é um clássico da Nouvelle Vague de 1962, do controverso cineasta francês Jean-Luc Godard. O filme conta a história de Nana, uma garota de programa que sonha em ser atriz e vive o paradoxo de preservar a própria integridade.

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Natureza de Nana revela humanismo em crise (Foto: Reprodução)

Viver a vida é protagonizado por Anna Karina que empresta beleza a personagem Nana. Por si só, o rosto angelical e expressivo da atriz propõe um paradoxo ao encarnar uma meretriz. Sem cenas tórridas de lascívia, exibicionismo, exaltação da sexualidade ou até mesmo beijos quentes, o filme é uma perspectiva humanista sobre uma personagem marginalizada. Na obra, a garota de programa assume uma notoriedade idiossincrásica em que citações literárias e filosóficas determinam o cotidiano.

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Protagonista assiste ao enlace entre a modernidade e a decadência (Foto: Reprodução)

Embora depreciada pela sociedade, Nana é uma caricatura expressionista vivendo sob um prisma de valores criados por ela mesma, totalmente desvinculada do caráter maternal imposto às mulheres. O contexto, quando imaterial, se resume a um universo reflexivo, onde a objetividade e o concreto só existem em razão da subjetividade. Tudo é transmitido no filme por etapas, já que Viver a Vida se divide em doze atos.

Do início ao fim, é permitido invadir a intimidade de Nana, representante de um ideal de liberdade que tenta ignorar tudo a sua volta. Mas nem sempre consegue. A protagonista se mostra frágil ao entregar o corpo por exigência do ofício. Sente que algum tipo de emoção e sentimento nasce ou morre antes de cada relação sexual.

O espectador, que assume os olhos de Godard, presencia muitas das cenas como testemunha; alguém o tempo todo ao alcance de Nana. A primeira cena em que a câmera, de uma posição privilegiada, destaca as costas e os ombros da personagem, mantendo o rosto oculto enquanto conversa em um café, é o exemplo primordial.

A natureza de Nana ratifica a ideia de que o humanismo está em crise há muito tempo. Como sobrevivente do submundo parisiense, ela assiste ao enlace entre a modernidade e a decadência. Na capital francesa, surgem cinemas, cafés e máquinas de fliperama enquanto morrem pessoas, sonhos e ideais.