David Arioch – Jornalismo Cultural

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Um garoto com raiva

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Arte: The Slum Boy 2, de Bijendra Pratap

Conheci um garoto na Vila Alta que vivia com raiva, com uma notável expressão carrancuda. Ele disse que não tinha controle sobre o que sentia.

— Você está com raiva?
— Sim.
— Com que frequência?
— Todo dia, toda hora.
— Há quanto tempo?
— Não sei dizer não, senhor.
— O que te deixa alegre?
— Não sei dizer – respondeu com um sorriso tímido.
— Cadê seus pais?
— Tenho não. Moro com minha vó.
— Você tem raiva de alguém em específico?
— Tenho raiva da vida.
— Por que a vida te deixa com raiva?
— Porque eu não existo.
— O que é existir pra você?
— As pessoas me enxergarem de verdade.
— Quem te enxerga de verdade?
— Acho que quase ninguém.
— Como você sabe disso?
— Porque ninguém me elogia, nunca.
— Então ser elogiado é uma forma de existir?
— Sim…
— Por quê?
— Sei lá. Porque significa que alguém acha que faço alguma coisa certa, que tenho alguma coisa boa, qualidade.
— E quantas vezes já te elogiaram?
— Poucas.
— E como você se sentiu?
— Feliz…
— Se você recebesse um elogio sincero por dia acha que não sentiria mais raiva?
— Acho que sim, né?
— Que tal começar a anotar os elogios que recebe das pessoas para não esquecê-los?
— É…pode ser.
— Talvez você não se recorde dos elogios que já recebeu porque recebe mais críticas, mas isso não significa que tenha recebido poucos elogios ao longo da sua vida. A verdade é que quando somos criticados com muita frequência, temos uma tendência a esquecer as coisas boas que já nos disseram. Nossa mente nos força de algum modo a relegá-las à insignificância quando nos mantemos em estado de negatividade. Coisas boas acontecem, mesmo que não tanto quanto gostaríamos. Elas existem, e surgem, em algum lugar, até quando fechamos os nossos olhos. Os elogios podem saltar da nossa própria mente, como um presente para nós mesmos.
— Acho que sim…
— Sempre que alguém te falar algo de bom, memorize e anote.
— Você vê alguma qualidade em si mesmo?
— Às vezes…
— Me dê um exemplo…
— Nunca prejudiquei ninguém…
— Isso é muito bom.
— E por que você nunca prejudicou ninguém?
— Porque é errado. Não gosto de fazer mal para ninguém, nem gente nem bicho.
— Isso é um exemplo de que você tem um bom caráter.
— Será?
— Sim.
— Não tenha dúvida disso, porque nesse caso a dúvida serve apenas para dificultar a sua própria aceitação. Quero dizer, se você não reconhece uma qualidade que atribuem a você, isso pode ser um problema, porque significa que você se recusa a se ver como os outros o veem. Se fosse mentira, tudo bem, mas não é o caso. Se falam de uma qualidade genuína, que tem a ver com a forma como você vive e age, não tem porque não concordar.
— É…acho que sim.
— Em muitos casos, as pessoas dizem coisas ruins não porque elas são más. É uma forma de defesa. Por exemplo, estou incomodado com algo, logo me sinto vulnerável, e acabo por direcionar isso para alguém. Então se eu não tiver controle, acabo por ofender e magoar as pessoas. Você já fez isso?
— Sim…
— Foi bom?
— Não…
— Pois então…
— Você ainda está com raiva?
— Não.
— Por quê?
— Porque você disse que tenho bom caráter, e eu tenho mesmo.

É importante enxergar a intenção para além das palavras. Muitas vezes o que parece ácido ou agressivo pode ser a couraça da sensibilidade.

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Written by David Arioch

June 25th, 2017 at 10:44 pm

Um crime sem solução

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Mulher foi assassinada na propriedade onde construíram a Escola Elza Caselli

Cenário de um crime nos anos 1950 (Foto: David Arioch)

Nos anos 1950, muitos migrantes chegavam a Paranavaí, no Noroeste do Paraná, sem qualquer documento de identificação. Então quando acontecia algum homicídio era muito difícil reconhecer a vítima ou criar uma lista de suspeitos. Dependendo da situação, o caso sequer era solucionado. Exemplo foi o assassinato de uma mulher na propriedade onde foi construída a Escola Municipal Professora Elza Grassiotto Caselli.

Certo dia, uma criança que deixou o Ceará e se mudou para Paranavaí com a família estava guiando o gado pelas imediações de uma área erma e silvestre. Ao sentir um mau cheiro que vinha do matagal logo em frente, o garoto, mesmo curioso, não teve coragem de adentrar a mata. Quando chegou em casa contou ao irmão mais velho e pediu que fossem juntos até lá para descobrir a causa de tanto odor.

Segundo pioneiros, à época, o lugar ainda estava coberta por mata virgem, o que justificou o medo do garoto em entrar no local sozinho. Depois de caminharem dezenas de metros, os dois irmãos viram um cadáver já em estado avançado de decomposição. O corpo estava irreconhecível e só foi possível saber que era uma mulher por causa das roupas.

Não havia nenhum documento de identificação junto ao cadáver, somente inúmeras garrafinhas de fortificante Biotônico Fontoura. Hipoteticamente, a mulher era uma jovem migrante de origem humilde que veio a Paranavaí em busca de melhores condições de vida. O corpo foi encontrado poucos dias depois do crime. Suspeita-se que a moça sofreu assédio, não cedeu e acabou assassinada.

À época, o local era coberto por mata virgem (Foto: David Arioch)

Infelizmente, a mulher foi tratada como indigente e logo a polícia desistiu das investigações. O caso jamais foi solucionado. A partir desse assassinato, a população local se uniu e tomou a iniciativa de exigir que todos os moradores de Paranavaí portassem documentos, o que era raro numa época em que muita gente negociava apenas com a garantia da palavra.

Entretanto, quem não concordasse em tirar os documentos não poderia fixar residência na cidade. Anos depois, com o desenvolvimento de Paranavaí, o matagal que um dia serviu como palco de um crime contra uma jovem migrante foi derrubado, dando espaço a Escola Municipal Professora Elza Grassiotto Caselli, no Jardim Farroupilha, nas imediações da “Rodoviária Nova”.

Saiba Mais

O garoto que encontrou o corpo da jovem assassinada é irmão do pioneiro Joaquim Ferreira.