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Posso pedir um favor?
Amanheceu chovendo muito. Estacionei o carro perto do centro e saí caminhando. Tentei me proteger da chuva sob a marquise das lojas. Quando virei em uma esquina, veio um homem em minha direção. Mesmo com um guarda-chuva, em vez de me dar passagem, ele manteve o corpo no mesmo lugar. Então parei e o cumprimentei.
— Bom dia. Posso pedir um favor? Estou sem guarda-chuva, e acho que seria legal se o senhor pudesse me dar espaço para que eu não precisasse me molhar desnecessariamente.
O homem, então com um sorriso amarelecido, estranhando a abordagem, me deu passagem e segui o meu caminho.
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“Ô Dona Menina, como vai a senhora?”
Em uma época da minha infância, toda semana um senhor baixinho e barbudo passava em frente a nossa casa. Gritava sorrindo para a minha mãe: “Ô Dona Menina, como vai a senhora? Vai querer vassoura hoje?” O velhinho gostava de fazer barulho, de ser notado, de mostrar que estava na rua.
Quando faleceu, para a surpresa de sua pequena família, seu velório foi acompanhado por centenas de pessoas. Muitos não sabiam sua história e até mesmo seu nome, mas jamais esqueceram das muitas manhãs em que foram cumprimentados graciosamente pelo velhinho bonachão.
O dono da rua
Em Paranavaí, voltando para casa, passei por uma rua estreita onde os motoristas insistem em estacionar seus veículos dos dois lados, inviabilizando o tráfego. Até aí, tudo bem, nada de anormal. Passo por lá todos os dias e, sempre que vejo um carro vindo na mão oposta, costumo encostar o meu rente ao meio-fio e aguardo ele passar para seguir meu caminho.
Mas tem hora que é difícil não se surpreender com a falta de cortesia das pessoas. Exatamente em frente ao Salão do Reino das Testemunhas de Jeová, que fica no meio do quarteirão, um homem parou sua caminhonete importada e ficou lá bloqueando a passagem, pouco se importando se eu queria trafegar pela mesma rua.
Uma mulher e mais algumas pessoas desceram do veículo e o sujeito ainda continuou conversando. Depois de um tempinho, elas entraram no salão. Então o motorista passou por mim e seguiu seu caminho como se não houvesse mais ninguém naquela rua além dele e sua caminhonete. Talvez fosse doloroso demais pra ele ser gentil e fazer um aceno de mão em agradecimento.
A atendente e o café expresso
Perto do horário do almoço, passei com minha mãe em uma cafeteria. Ela pediu um café expresso e eu também. Fazia muitos anos que eu não tomava um expresso, tanto que me aproximei da atendente e perguntei a ela como o preparavam, qual era a composição. “Vocês adicionam açúcar?”, questionei. Ela respondeu que não, que a bebida vinha pura para ser adoçada ao gosto do cliente. Então comentei: “Bom! Então você pode me servir na menor xícara.”
Também fiz algumas perguntas sobre um assado de palmito recém-colocado na estufa. Ela se mostrava confusa nas respostas, mas isso não me incomodou porque notei que era nova na função. Enquanto ela me atendia, um homem sisudo a assistia atentamente. Percebi que ele era o gerente e talvez até o dono do lugar. Em pouco tempo, o telefone da cafeteria tocou e ouvi a mesma moça conversando com a filha. Parecia que a menina estava agitada por algum motivo desconhecido e a mãe se esforçava para acalmá-la.
Tão logo desligou, ela veio até a nossa mesa e nos serviu. Suas mãos tremiam. Agradeceu mais uma vez e caminhou em direção ao balcão. Comi o assado, nada mal, porém não era dos melhores. Minha mãe se serviu do café expresso extremamente forte e amargo, bem diferente do que ela pediu. Quando levei a xícara à boca, notei no primeiro gole um gosto extremamente acentuado de açúcar. Ali tinha no mínimo umas duas colheres de chá bem cheias.
Depois de anos sem sentir o sabor do açúcar em estado puro, tive a mesma sensação de quando se é criança e come bolo de festa de aniversário bebendo refrigerante – a língua chega a acidular. Atrás do balcão, a moça e o seu patrão continuavam nos observando. Um espelho lateral os denunciava. Me senti comendo cubos de açúcar em forma de expresso.
Malgrado isso, mantive a expressão serena, assim como minha mãe que só se queixou do café no carro. Quando me levantei para ir embora, caminhei até a atendente e disse: “Foi o melhor café expresso que tomei na vida. O assado também estava excelente. Parabéns!” Acanhada, a moça sorriu, assim como o gerente que desfez o semblante carrancudo e acenou com a cabeça, numa respeitosa reverência. Parti tranquilo, mas ainda sinto na boca o gosto hiperbólico do açúcar.