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O cotidiano do boia-fria
Falta pouco para as 6h, e no horizonte já é possível avistar os boias-frias descendo do ônibus em uma propriedade rural próxima a Paranacity, no Noroeste do Paraná. Há homens e mulheres das mais diversas faixas etárias.
Primeiro eles participam de uma aula de ginástica laboral, um momento do dia que inspira confraternização. Depois se dividem em turmas e caminham em direção ao eito do canavial. Os melhores no manejo do facão seguem na frente. Os outros vão atrás. Essa metodologia de trabalho foi criada para que os mais experientes abram caminho para os demais.
O tempo não dá trégua e os boias-frias trabalham em ritmo acelerado, tanto que por volta das 9h o chão já está forrado. “Ninguém pode perder tempo porque o tanto que a gente recebe no fim do mês depende da quantidade de cana cortada por dia”, explica o experiente cortador de cana Geraldo Soares dos Santos enquanto enxuga o suor da testa com a manga da camiseta. Geraldo ganha cerca de R$ 980 por mês. É apontado pelos outros boias-frias como um sujeito bom de facão.
Santos, assim como os demais colegas, não abre mão dos óculos de proteção durante o trabalho. O equipamento evita irritação nos olhos e também protege contra a fuligem. “É a única parte do rosto que não fica escura”, brinca o cortador de cana José Luiz do Prado que herdou o ofício dos avós e dos pais. No canavial, os homens estão sempre vestidos com calça e camiseta de manga longa.
As mulheres também, mas usam saia por cima da calça. Muitas cortam tanta cana quanto os homens. Contudo, o que mais chama atenção no campo é a vaidade. A ala feminina faz questão de trabalhar com unhas e até rostos pintados. Batons e brincos são considerados essenciais. Questionadas se o sol não destoa a beleza, uma delas é enfática. “O chapéu ajuda a segurar a maquiagem. É nosso porto seguro”, declara a jovem Maria Fernanda Silvestre com um largo sorriso que destaca um suave batom rosáceo.
O trabalho é pesado, doloroso, mas pra quem já se acostumou com a atividade o tempo passa mais rápido com as cantorias e as piadas. As brincadeiras são constantes e quase sempre inofensivas. Às 10h, o motorista do ônibus aciona a buzina indicando que é a hora da boia. Todos, independente da localização, abrem suas bolsas e mochilas. Alguns parecem até ter ensaiado o movimento, tamanha é a sincronia.
Na marmita, o básico de sempre. O almoço é bem tranquilo, tanto que em alguns pontos se ouve o atrativo som de uma brisa repentina. Dependendo da localidade, alguns almoçam sozinhos, sentados sobre o cantil. Já outros, em duplas ou grupos. A solidariedade também chama atenção no canavial. Parte dos boias-frias sempre leva mais comida, no caso de algum colega continuar com fome. É uma atitude que corrobora o companheirismo no campo.
Terminado o almoço, o cantil vira travesseiro na hora da sesta. Mas nem todos cochilam. Alguns optam por fazer uma roda para conversar com os amigos e colegas de trabalho. “Prefiro ficar acordado porque senão depois fico indisposto”, justifica Geraldo Soares. Passado um curto período de descanso, a buzina toca de novo. Alguns cortadores logo desaparecem em meio ao canavial enquanto outros começam a amolar os facões.
José Pedro de Oliveira, conhecido como Tio Zé, é um dos que afiam a lâmina da ferramenta. O homem atua como boia-fria há mais de 45 anos. Hoje, com 64, admite que o vigor não é mais o mesmo. “A mente sempre resiste, mas o corpo não obedece, né?”, comenta em tom de resignação.
Enquanto observa e manipula o facão com as mãos cobertas de fuligem, Tio Zé rapidamente relembra fatos da juventude, momentos da época em que trabalhava nas lavouras de café. “Eu era muito forte, não tinha pra ninguém. Agora consigo apenas cortar o suficiente pra não perder o serviço”, revela o boia-fria de mãos completamente calejadas. Os cortadores mais jovens costumam usar luvas, algo que Tio Zé descarta. “Sou de outro tempo. A gente prefere sentir a cana nas mãos”, justifica com um sorriso tímido e um olhar disperso.
Mesmo acostumados a elevadas temperaturas, no início da tarde o Sol afeta os boias-frias com muita intensidade. Para aguentarem a jornada de trabalho, recorrem a um isotônico conhecido como “sorinho”. O produto que tem consistência de suco artificial ajuda a evitar câimbras e desidratação.
O intervalo pra tomar o repositor energético é rápido. Mesmo sob o calor escaldante, seguem na lida. Para quem não está acostumado a se expor tanto aos raios solares, o calor chega às raias do insuportável. No meio da tarde, é comum sentir a pele queimando, mesmo usando camiseta de manga longa.
O corte de cana prossegue até as 16h30, quando os boias-frias ouvem novamente a buzina do caminhão e deixam o eito. Ao fundo, atrás da grande massa de trabalhadores, o canavial parece menor após mais um dia de trabalho. Todos recolhem seus pertences e rumam em direção ao ônibus. É hora de ir pra casa e passar o pouco que restou do dia com a família.
Muitos dos boias-frias não demonstram tristeza pelo trabalho no campo, inclusive afirmam que, apesar da atividade braçal ser muito desgastante, é possível ganhar mais do que muitos que trabalham na área urbana.
“Quem trabalha em uma loja no centro da cidade não é capaz de deixar o emprego que tem pra trabalhar no campo, mesmo que o salário seja melhor. Isso acontece porque hoje em dia as pessoas têm tanta preguiça quanto vergonha do serviço rural. Se preocupam demais com a aparência”, desabafa o cortador de cana Jonas Cabral.
Ter como horizonte os limites que vão do cabo do facão até o toco da cana-de-açúcar não impede os boias-frias de almejarem um futuro melhor, se não para si, pelo menos às próximas gerações. “Todo mundo aqui tem filhos na escola. Nosso trabalho é digno, mas ninguém deseja ver sua criança tendo que pegar no pesado. Queremos que eles estudem e tenham uma vida melhor”, finaliza a cortadora de cana Paula Roberta dos Campos.
Curiosidade
Os boias-frias que cortam menos cana-de-açúcar são chamados de “borracheiros”. Já os bons de facão são conhecidos como “facãozeiros”.
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