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O Mito da Caverna de Platão e Barravento
Vocês já viram alguma versão do Mito da Caverna de Platão feita com negros? É só assistir Barravento, lançado por Glauber Rocha em 1962. Não sei se foi intencional, até porque ele nunca falou sobre isso. Também nunca vi ninguém fazer tal associação, mas está lá, segundo minha cognição.
Deus e o diabo no sertão
Glauber Rocha conta a história de dois nativos da exclusão social
Lançado em 1964, Deus e o Diabo na Terra do Sol é o filme que consagrou Glauber Rocha como um dos expoentes do Cinema Novo. No clássico, um casal vivendo em condição de miséria, vagando sob o sol escaldante da caatinga, torna-se incapaz de distinguir entre Deus e o diabo.
Nascidos sob o estigma da pobreza, Manoel (Geraldo Del Rey) e Rosa (Yoná Magalhães) são dois nativos da exclusão social que se tornam intolerantes com a própria realidade. Logo no início do filme, Manoel é encarregado de comprar algumas cabeças de gado; o trato é que o fazendeiro partilhe o lucro das vendas.
Por azar, mais da metade dos bovinos morre antes de chegar ao destino. Na hora do pagamento, o patrão afirma que não dará nada ao empregado, já que o gado morto, segundo o fazendeiro, pertencia a Manoel. Encolerizado com o desvio de caráter do latifundiário, o rapaz o mata. A cena representa a vitória do escravo do campo sobre o coronelismo.
Com medo, o casal foge e abandona tudo, não apenas pelo temor de serem presos, mas também porque começam a acreditar que a honestidade não vale a pena. Na fuga, a dupla conhece o profeta Sebastião (Lídio Silva), uma falsa personificação messiânica. Sem rumo e desesperados, decidem segui-lo.
Mesmo com um grande poder de persuasão diante de uma legião de miseráveis e ignorantes, o líder religioso mostra a verdadeira face quando tenta sacrificar uma criança. Rosa impede Sebastião e em seguida o mata. Fica claro o quão tênue é a linha entre o fanatismo religioso e a barbárie motivada pela insanidade.
A experiência contribui para a destruição dos poucos valores que o casal ainda preservava. Honestidade e espiritualidade se esvaem em detrimento da obtusa condição existencial dos personagens. Novamente sozinhos, e cercados pela imensidão desértica, encontram o cangaceiro Corisco (Othon Bastos), um cético justiceiro que, sem grandes esperanças na humanidade, atribui aos burgueses as desgraças vividas pelo povo.
Frio, impiedoso e violento, o fora-da-lei representa o diabo, em uma subjetiva idealização do cineasta. Quando Corisco é assassinado pelo mercenário Antonio das Mortes (Maurício do Valle), Manoel e Rosa se interiorizam ainda mais, crentes de que com a morte simbólica de Deus e do diabo só resta acreditar no homem, na possibilidade de que um dia ele encontre a si mesmo.
Embora pouco valorizado no Brasil, o filme de Glauber Rocha é cultuado em muitos países, principalmente na França e nos Estados Unidos, onde figura entre as obras preferidas de cineastas como Martin Scorsese e Quentin Tarantino. Amigo do cineasta brasileiro, com quem teve contato pela última vez em 1980, Scorsese considera a filmografia de Rocha uma das três mais importantes em sua formação cinematográfica.
Aluga-se ideologia cinematográfica
Ex-bancário mantém em Paranavaí uma videolocadora com grande acervo de filmes alternativos
Em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, a videolocadora de José de Arimateia Tavares se destaca, mesmo com a ascensão dos filmes online e de plataformas como Netflix. José de Arimateia não se limita a oferecer ao público somente filmes comerciais. Vai muito além, disponibilizando cultura e educação em DVD e Blu-ray. Em um passeio pelos expositores, geometricamente alinhados, é fácil encontrar as mais importantes correntes artísticas do cinema mundial.
Enamorado pelo cinema alternativo ou cult desde a juventude, na década de 1990 o ex-bancário conhecido como Teia decidiu abrir uma videolocadora idealizada muitos anos antes. Sua missão extracomercial e até pessoal era reunir um acervo com títulos que tanto vislumbrou assistir.
“Tentei comprar esses filmes apenas para apreciação pessoal, mas as produtoras não negociavam com quem não fosse do ramo. Então esse foi o estímulo final para que eu abrisse a locadora”, justifica José de Arimateia.
A partir de 1996, com o novo empreendimento, Teia parou de viajar até Curitiba e Londrina para alimentar o amor pela sétima arte. “Fiz isso durante 12 anos. Ia até a capital nos finais de semana e assistia pelo menos sete filmes”, conta.
O empresário se emociona ao se recordar da década de 1970, quando o cinema político do cineasta russo Sergei Eisenstein parecia tão distante da realidade de quem vivia no interior do Paraná. “Pensei que nunca assistiria ‘A Greve’, ‘Outubro’ e ‘Encouraçado Potemkin’”, frisa, referindo-se ao cinema revolucionário que contribuiu para os rumos do socialismo na Rússia.
Dentre os preferidos, José de Arimateia cita também o cinema surrealista e neorrealista do italiano Federico Fellini e os franceses Jean Renoir, expoente do realismo poético, e o controverso Jean-Luc Godard, ícone da Nouvelle Vague. Segundo o empresário, o contato com filmes tão paradoxais, convergentes e divergentes proporciona uma grande coerência de apreciação. “Automaticamente, você começa a selecionar coisas diferentes”, enfatiza.
E o que não falta na videolocadora é variedade. São mais de 700 títulos de filmes que compõem um cosmopolitismo cinematográfico atraente aos olhos de quem busca não apenas entretenimento, mas uma significativa contribuição para a formação humana.
Cinema novo, surrealista, expressionista alemão, revolucionário soviético, nouvelle vague são algumas das correntes artísticas que fazem da locadora um subjetivo reduto de estudantes universitários, artistas e intelectuais.
Dos clássicos que não atendem diretamente aos anseios da indústria cultural, Teia adianta que os mais procurados são sempre os filmes de Stanley Kubrick, Steve McQueen, Quentin Tarantino e Alfred Hitchcock.
“O ano de produção assusta quem não gosta de arte”
Para quem está acostumado apenas com lançamentos e filmes comerciais, a área cult da locadora de José de Arimateia Tavares pode até despertar atenção em um primeiro momento, mas a curiosidade não ultrapassa os limites da sinopse no estojo do DVD ou Blu-ray. “O ano de produção normalmente assusta quem não gosta de arte”, diz Teia.
Os mais relegados ao ostracismo são os filmes do cinema expressionista alemão e revolucionário soviético. O Gabinete do Dr. Caligari, por exemplo, do realizador alemão Robert Wiene, foi lançado em 1920.
“É algo que não está no âmbito das informações que muitas pessoas têm. Por isso, o cliente apenas olha, mas sem maior profundidade”, pondera José de Arimateia. O empresário atribui a surpresa dos clientes ao fato de que a locadora é a única em Paranavaí que não oferece apenas filmes comerciais.
No entanto, há clientes que valorizam o acervo da videolocadora, normalmente são jovens com pouco mais de 20 anos. “Eles procuram idealizadores como Federico Fellini e Stanley Kubrick. Isso tem relação com a formação cultural adquirida nas universidades”, avalia o empresário.
“Qualquer filme não comercial é interessante”
Como o ser humano vive sob a égide de um plano cartesiano de informações, é impossível que uma pessoa esteja atenta a todos os gêneros cinematográficos, sejam artísticos ou não. O empresário José de Arimateia Tavares admite esse fato, mas ressalta que qualquer filme de gênero não comercial já se torna interessante apenas em existir.
“Não interessa quem seja o idealizador ou qual é a proposta dele com o filme, a verdade é que ali teremos alguma novidade, algo jamais oferecido por um filme convencional”, justifica.
Para Teia, é regozijante ter uma locadora, principalmente pela oportunidade de conhecer a fundo o trabalho de cineastas brasileiros que tardiamente são valorizados. “O Fernando Meirelles é um grande cineasta e o primeiro filme dele que adquiri foi ‘Domésticas’. É uma pena que a maioria só conheça o seu trabalho em ‘Cidade de Deus’”, destaca.
O empresário também reconhece qualidade nos títulos do Cinema Novo que tem Glauber Rocha como um de seus grandes representantes. “Não tenho tanta simpatia por essa corrente cinematográfica, mas alguns filmes realmente são clássicos e de extrema qualidade”, comenta.
O interesse de Teia por filmes não comerciais não significa que ele desmereça os demais. “Não sou preconceituoso com relação a filmes. Por pior que seja o filme, assisto de ponta a ponta para reconhecer alguma qualidade”, assegura.
Alguns realizadores do cinema não convencional que podem ser encontrados na locadora do Teia
Federico Fellini, Ingmar Bergman, Stanley Kubrick, Sergei Eisenstein, Glauber Rocha, Jean-Luc Godard, Jean Renoir, Fritz Lang, Robert Wiene, Luis Buñuel, Ed Wood, Michelangelo Antonioni, Ettore Scola, Friedrich Wilhelm Murnau, Akira Kurosawa, etc.