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O guarda Clemente
Eu via seu bigode escuro, espesso e longo como se fosse as cortinas do firmamento
Quando eu tinha seis anos, todos os dias um guarda nos aguardava na mesma rua para fazer a nossa travessia. Eu e centenas de outras crianças passávamos por lá pontualmente. Clemente sorria de longe e estendia a mão com tanta devoção que até os raios de sol pareciam mais intensos, iluminando sua fronte e destacando seus dentes nevados.
Levava o apito à boca e emitia um som curto e oxítono, porém eficaz. Era o suficiente para que todos ficassem atentos. Então Clemente segurava minha mão miúda com firmeza e me guiava até a calçada da escola, me protegendo de motos, carros, caminhonetes e caminhões. Cuidadoso, sempre mantinha o próprio corpo mais próximo dos veículos enquanto o meu era velado pelo seu.
A sincronia entre o apito e a instantânea paragem era surreal, como se coreografada. E poucos ousavam encostar sequer um centímetro de pneu na faixa de pedestre. Se alguém o fizesse, Clemente tirava uma trena do bolso, agachava no asfalto por segundos, caminhava até o motorista e o cumprimentava com um caloroso aperto de mão.
“Como vai? Tudo bem? Está quente hoje, não? Imagino que o senhor tenha pressa, claro, quem não tem hoje em dia, não é mesmo, meu amigo? Por isso entendo porque o senhor está com os dois pneus dianteiros sobre a faixa. Acontece. A pressa faz a gente cometer esses pequenos deslizes. Dê uma olhadinha aqui. São apenas 25 centímetros de invasão, o que acredito que o senhor, assim como eu, sabe que não vai garantir que o senhor chegue mais rápido a lugar nenhum. E, claro, agora não temos muitas crianças na rua, mas há horários em que esse espacinho faz uma falta que o senhor nem imagina. Posso contar com sua colaboração?”, disse num início de tarde, retribuindo a concordância do motorista com um aceno de cabeça e um sorriso frugal.
Durante a travessia com Clemente, eu erguia a cabeça, mirando o céu com o nariz, e o observava. Pequeno, eu acreditava que ele podia tocar aquela imensidão azul com o topo do seu quepe. Eu via seu bigode escuro, espesso e longo como se fosse as cortinas do firmamento. As nuvens se moviam próximas de sua cabeça, reafirmando a ideia de que pelo menos naquele cruzamento ele era a autoridade suprema, e além dele não havia mais ninguém.
Após às 17h30, quando o sinal da escola era acionado, avisando que as aulas acabaram, fazíamos o mesmo trajeto. Horas se passavam e Clemente continuava sorrindo e estendendo as mãos. Ele jamais demonstrava cansaço, irritação ou enfado. Era tão educado que às vezes os motoristas estacionavam seus veículos e caminhavam até ele para parabenizá-lo pelo trabalho.
E aquilo fazia dele um dos personagens mais admiráveis da minha infância, alguém em quem eu também poderia me espelhar para me tornar um ser humano digno quando crescesse. Não era raro ver pessoas querendo presenteá-lo. Comprometido com sua ética de trabalho, ele agradecia com olhos abrilhantados e recusava, a não ser os presentes feitos a mão, uma comidinha ou doce caseiro.
Criança, eu nunca tinha ouvido falar em racismo, até que no recreio perguntei ao meu coleguinha Beto porque ele e alguns outros garotos não seguravam a mão de Clemente. Inclusive um dia o vi tirando a mão do guarda de cima do seu ombro. “Ué, porque ele é preto! Meu pai falou que não devia existir guarda preto porque essa gente não é de confiança; tem só a palma da mão branca. Fora que tem mau cheiro e cabelo duro”, respondeu com naturalidade.
Assustado, fiquei em silêncio. Durante o recreio, sem saber o que aquilo significava, sentei num canto do pátio e pensei nas palavras de Beto. Me dei conta de que realmente Clemente era um homem negro, o primeiro que vi desde que nasci, mas e daí? Dias depois, Beto me deu um ultimato falando que eu não poderia andar mais com ele e com outros três coleguinhas se eu continuasse segurando a mão de Clemente. Ignorei e ao longo de meses fui excluído das brincadeiras no parquinho da escola. Na hora do futsal, Beto convencia todas as outras crianças a me deixarem de fora.
Um mês se passou e não vi mais clemente no cruzamento, seu local de trabalho. Ele não voltaria mais. Em seu lugar colocaram um rapaz loiro e de olhos claros que dedicava sua atenção às adolescentes que circulavam pelas imediações. Influente, o pai de Beto conseguiu fazer com que Clemente fosse transferido para outra cidade. Inventaram uma desculpa de falta de guardas e o convenceram a partir.
Mais tarde, num sábado, Beto caminhava e chupava um picolé quando foi surpreendido por um carro desgovernado que invadiu a calçada no cruzamento da Rua Pernambuco com a Rua Souza Naves. Aturdido, jogou o palito, fechou os olhos e se encolheu. Não viu Clemente sair do mercado, arremessar as sacolas e se jogar com ele no asfalto.
O guarda ganhou ferimentos superficiais por todo o corpo. Ao ver Beto ileso, sorriu, sem se importar com a roupa rasgada. Constrangido e com olhos esgazeados, o menino se encolheu em posição fetal. Descobriu que a mão rejeitada é aquela que mais deveria ter sido afagada.
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Ni e Jabulana, os guardiões do Cemitério Municipal de Paranavaí
Casal de cães de pequeno porte já evitou furtos e afastou usuários de drogas
São 8h e dois cães pequenos e mestiços prestam atenção em tudo que ocorre nas imediações do portão do Cemitério Municipal de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Quando entro no local, continuam sentados, mas acompanham meus passos com os olhos.
Assim que começo a conversar com a autônoma Maria Lurdes da Silva, um cão de pelagem escura chamado Ni reconhece que não sou uma ameaça, coça a orelha, se levanta e decide patrulhar a calçada à direita do cemitério. Jabulana, uma cadelinha de pelo claro, abana o rabo enquanto segue o caminho inverso, descendo à esquerda.
Maria Lurdes conta que Ni se tornou o guardião do cemitério há mais de quatro anos, pouco antes de ganhar a companhia de Jabulana, encontrada ainda filhote depois de ser abandonada ao relento no cemitério. O nome faz referência à bola da Copa do Mundo de 2010. “Ela estava sozinha, assustada e gemendo”, diz a autônoma que a adotou.
Pouco tempo depois, Ni e Jabulana retornam e percorrem todo o cemitério. Sobem nos pontos mais altos para terem uma visão privilegiada da movimentação. Também circulam pelo cruzeiro e alas das gavetas. Só interrompem o percurso e sentam próximos a um túmulo quando encontram um grupo de pessoas.
Deixam a impressão de que estão checando se está tudo bem no local. Qualquer ação suspeita desperta a atenção dos cães. A vantagem de serem pequenos e aparentemente dóceis é que muitas vezes passam despercebidos por quem entra no cemitério com má intenção.
Espertos, os animais já impediram ações de ladrões de lápides, principalmente furtos de placas de bronze. “Quando veem alguma coisa errada, latem sem parar e partem pra cima”, garante Maria Lurdes, acrescentando que Ni e Jabulana afastaram do cemitério muitos jovens que iam até o local para usarem narcóticos. Embora nunca tenham recebido treinamento, os cães identificam usuários de drogas de longe, mesmo quando não estão consumindo nada.
A rotina de Li e Jabulana como guardiões do cemitério começa junto com o expediente dos funcionários. “Se venho trabalhar todos os dias, eles vêm também. Dependendo, chegamos 6h30, 7h. Daí levo eles em casa pra almoçar, retornamos e ficamos aqui até as 18h”, explica o mestre de obras Sebastião Donizete de Azevedo que constrói e reforma jazigos.
Ni também tem o hábito de proteger a caixa de ferramentas enquanto Azevedo trabalha. “Eles tomam conta de tudo no cemitério. Mexeu onde não deve, a confusão está armada”, garante Sebastião Donizete que é facilmente localizado pela dupla através do faro, independente da distância.
Os cães também montam guarda quando Maria Lurdes realiza algum serviço esporádico de lavagem de túmulos. “Eles ficam do lado observando. São nossos protetores. Ainda bem que nunca ninguém conseguiu machucar eles”, comenta a autônoma que mora em frente ao Cemitério Municipal de Paranavaí com o marido Donizete de Azevedo.
É provável que a convivência e a proximidade com o local de trabalho do casal façam com que Ni e Jabulana vejam o cemitério como uma extensão da própria casa. “Praticamente foram criados aqui dentro, tanto que um dia tivemos de pular o muro para buscar o Ni. Era noite e ele não chegava. Encontramos o bichinho dormindo em cima de um jazigo. Se deixasse, esperaria a gente até no dia seguinte”, revela Maria Lurdes emocionada.
O episódio lembrou o dia em que o pai do cãozinho morreu e o enterraram no quintal. Desolado, Ni passou dias dormindo sobre o túmulo improvisado. “Pois é, mais vale um cachorro amigo do que um amigo cachorro”, cita Azevedo sorrindo, se recordando do ditado popular e destacando que o animalzinho é o seu maior companheiro.
Em retribuição, Sebastião Donizete e Maria Lurdes levam os animais para passear quase todos os dias e só os alimentam com ração de alta qualidade. “Na realidade, nos preocupamos mais com a alimentação deles do que com a nossa”, garante o mestre de obras às gargalhadas.
Ni e Jabulana convivem em harmonia com outros animais que moram no cemitério, inclusive os muitos gatos alimentados pelo administrador Amilcar Pereira dos Santos. Pela manhã, é fácil encontrar pratinhos com ração ao lado do escritório administrativo situado na entrada. O ambiente os atrai pela tranquilidade.
“Menina”, a gatinha que gostava de velórios
Há alguns anos, uma gatinha rajada chamada Menina se tornou muito popular nos velórios realizados na Capela Mortuária Municipal, ao lado do Cemitério Municipal de Paranavaí. Era raro o animal não comparecer a algum velório. Ficava quase sempre na mesma posição acompanhando a cerimônia.
“As pessoas se assustavam e diziam que ela parecia gente. Dava a impressão de que ela transmitia respeito. Mantinha a postura e não incomodava ninguém. Ficava só observando”, garante a autônoma Maria Lurdes da Silva, com quem Menina morava desde que era filhote.
Saiba Mais
Sebastião Donizete de Azevedo e Maria Lurdes da Silva foram surpreendidos muitas vezes ao saírem do banco e encontrarem Ni em posição de guarda os aguardando para irem embora. Episódio semelhante se repetiu também em lojas e mercados.