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George Orwell, a redenção de um artista
As obras de Orwell revelam como ele se sentia em relação ao violento sistema em que estava inserido
Richard Walmesley Blair passou 35 anos trabalhando no Departamento de Ópio do Serviço Civil Indiano, uma agência do governo britânico que abalizava a produção de papoula no país. Mesmo assim, Eric Arthur Blair, que cresceu na Inglaterra sem a presença do pai, se dispôs a seguir um destino semelhante, ou seja, tornar-se um filho fiel do Império Britânico.
Aos 19 anos, Blair foi aprovado em sétimo lugar, de um total de 27 classificados, para ingressar como assistente da superintendência da Polícia Imperial Indiana na Birmânia. De acordo com o escritor e professor de literatura canadense, Steve King, o que Eric testemunhou mudou o rumo de sua vida.
“Suas novelas e ensaios revelariam como ele se sentia sobre o sistema de espancamentos, enforcamentos, vigilância e escravidão social em que estava inserido. Blair escreveu mais tarde que independente de tempo e treinamento, ele nunca conseguiu se sentir indiferente à face humana. Por isso, renunciou à função em 1927, depois de cinco anos de ‘trabalho sujo’”, explica.
Richard recebeu a decisão do filho com decepção, principalmente quando soube que seu desejo era tornar-se escritor. Eric iniciou sua jornada para alcançar um tipo peculiar de redenção por meio da literatura. Estava empenhado em se dedicar a um tipo peculiar de redenção. Como forma de compensação por tudo que viu e viveu na Birmânia, ele se colocou entre os oprimidos para tentar entender como era ser um deles.
Visitou minas e estaleiros, viveu com andarilhos e vagabundos, aceitou os piores trabalhos e passou fome. São experiências que deram origem ao seu livro de estreia Down and Out in Paris and London, de 1933, lançado no Brasil como Na Pior em Paris e Londres. O jovem autor não gostou muito da obra e antes de publicá-la decidiu adotar o nome George Orwell. Pensou também em outros nomes como P.S. Burton, identidade que adotou quando virou andarilho, Kenneth Miles e H. Lewis Allways.
Os 15 anos seguintes da vida do escritor foram dedicados a combater o totalitarismo e defender através de suas obras a forma mais genuína de socialismo. Quando se juntou à causa republicana na Guerra Civil Espanhola, eles queriam que ele contribuísse escrevendo, fazendo propaganda, porém o seu desejo era lutar. E foi o que conseguiu. A experiência o inspirou a escrever o livro Homage to Catalonia (Homenagem à Catalunha), de 1938.
Como voluntário, George Orwell participou de inúmeras incursões, ficando conhecido pela imprudência nos campos de batalha. E o que fazia dele um alvo fácil era a inexperiência e altura – ele tinha mais de 1,90m. Na primavera de 1937, Orwell quase morreu após levar um tiro na garganta.
“Durante a Segunda Guerra Mundial, como ele sempre sofreu com doenças brônquicas e pré-tuberculosas, teve de se contentar em atuar como guarda territorial, dando palestras sobre combate e cuidando de suprimentos de bombas caseiras que ele resguardou na sua própria casa, perto da lareira”, declara King.
Em 1940, o escritor pressionou o governo britânico para custear exibições do filme O Grande Ditador, de Charlie Chaplin, por toda a Inglaterra. Também fez uma campanha para distribuir armas, inclusive granadas, a cada morador, com a intenção de criar um exército civil capaz de se defender se necessário. “Um rifle pendurado na parede de um operário ou de um camponês é um símbolo da democracia”, escreveu George Orwell.
Depois dos 40 anos, Orwell percebeu que não viveria muito. A tuberculose piorou e ele continuou evitando repouso. Contrariando todas as recomendações, se mudou para a remota Ilha de Jura, na costa oeste da Escócia. Sua casa não tinha eletricidade e se situava a 12 quilômetros de uma estrada que só poderia ser alcançada a pé. E a loja mais próxima ficava a 40 quilômetros. Para piorar, sua esposa, Eileen O’Shaughnessy, faleceu repentinamente em 1945. Então o escritor teve de encarar a realidade de criar sozinho o filho Richard, um bebê que adotaram em junho de 1944.
Quando a guerra acabou, em 2 de setembro de 1945, ele começou a criar a sua novela mais famosa – 1984, até hoje considerada um dos maiores manifestos literários contra o totalitarismo. “Seus heróis vieram das fileiras das classes operárias porque ele acreditava que os horrores gerados pela polícia do pensamento, novilíngua e o ritual Dois Minutos de Ódio deveriam ser combatidos pelos Winston Smith do mundo, não pelos Winston Churchill”, enfatiza King.
Em 1946, Orwell tentou encontrar uma companheira que pudesse ajudá-lo a criar Richard, mas suas três propostas foram declinadas, até porque ninguém queria morar na isolada Ilha de Jura. Três anos depois, o escritor foi surpreendido por Sonia Brownell que aceitou se casar com ele. E ela admitiu que foi conquistada por uma frase: “Procuro uma mulher para ser viúva de um homem de letras.”
O romance distópico 1984 foi concluído em dezembro de 1948 e logo o estado de saúde de george Orwell piorou, tanto que acabou internado no The Costwold Sanatorium, em Gloucesterhsire, no sudoeste da Inglaterra. Quando seu editor o visitou em 21 de janeiro de 1949, eles decidiram que seria melhor mudar o título da obra, então chamada The Last Man in Europe (O Último Homem na Europa).
O New York Times Book Review definiu a receptividade do livro como esmagadoramente admirável, com gritos de horror que superaram os aplausos. Muitos viram o título como ameaçador, mas ele só foi escolhido porque 84 é o inverso de 48, ano em que Orwell terminou de escrevê-lo. Ele faleceu em 21 de janeiro de 1950, exatamente um ano depois da escolha definitiva do título.
Saiba Mais
George Orwell nasceu em 25 de junho de 1903 em Motihari, na Índia, e faleceu em 21 de janeiro de 1950, no University College Hospital, em Londres, na Inglaterra. Ele tinha apenas 46 anos.
Obras mais importantes de George Orwell
1984 (1949), Animal Farm (A Revolução dos Bichos – 1945), The Road to Wigan Pier (O Caminho para Wigan Pier – 1937), Homage to Catalonia (Homenagem à Catalunha – 1938) e Down and Out in Paris and London (Na Pior em Paris e Londres – 1933).
Passagens do livro 1984, lançado em 1949 (Página 63)
Era provável que houvesse milhões de proles para quem a Loteria era o principal senão o único motivo de continuar a viver. Era o seu deleite, sua loucura, seu anódino, seu estimulante intelectual. Quando se tratava da Loteria, até gente que mal sabia ler e escrever fazia intrincados cálculos e fantásticas proezas de memória. Havia um exército de homens que ganhava a vida graças à simples venda de sistemas, previsões e amuletos.
Winston nada tinha que ver com a exploração da Loteria, que era administrada pelo Ministério da Fartura, mas sabia (como sabiam todos do Partido) que em grande parte os prêmios eram imaginários. Na realidade, só eram pagas pequenas quantias, sendo pessoas inexistentes os ganhadores da sorte grande. Na ausência de qualquer intercomunicação real entre uma parte e outra da Oceania, não era difícil arranjar isso.
Mas se esperança havia, estava nas proles. Era preciso agarrar-se a isso com unhas e dentes. Quando se traduzia o pensamento em palavras, parecia razoável: mas quando se considerava os homens que passavam pela calçada, a ideia se transformava em ato de fé.
Referências
http://www.todayinliterature.com/
Taylor, D. J. (2003). Orwell: The Life. Henry Holt and Company.
Ingle, Stephen (1993). George Orwell: a political life. Manchester, England: Manchester University Press.
Crick, Bernard R. (1980).George Orwell: A Life. Boston: Little, Brown and Company.
“The Orwell Prize | Life and Work—Exclusive Access to the Orwell Archive”. Pesquisa realizada em 29 de maio de 2016.
O trauma espanhol
Soldados de Salamina explora o obscurantismo da Guerra Civil Espanhola
O filme Soldados de Salamina, idealizado pelo cineasta espanhol David Trueba e lançado em 2003, explora o obscurantismo da Guerra Civil Espanhola partindo da suposta execução do escritor e falangista Rafael Sánchez Mazas.
A protagonista da obra é a escritora em crise Lola Cercas (Ariadna Gil) que decide se aprofundar em uma pesquisa in loco sobre a Guerra Civil Espanhola. O ponto de partida é a ordem de execução do poeta Rafael Sánchez Mazas, um dos fundadores da Falange Espanhola, grupo paramilitar que se aliou ao ditador Francisco Franco em 1936. Decidida a descobrir como Mazas sobreviveu, Lola viaja em busca de personagens que participaram do evento.
Enquanto Lola é uma personagem alheia a própria história, inclusive se entrega a pesquisa como razão existencial, o seu estado de vulnerabilidade é uma simbologia da Espanha da época; confusa e controversa, principalmente com relação aos elementos históricos da Guerra Civil Espanhola ocultados por conveniência política. No decorrer do filme, Lola constrói uma outra identidade de si mesma conforme encontra novas informações sobre o episódio da execução de Rafael Sánchez.
O cineasta David Trueba deixa evidente na trama a importância da memória histórica para a preservação da identidade de um país, tanto que a personagem principal só consegue reconstituir importantes fatos da Guerra Civil Espanhola a partir da oralidade, pois não havia muitas provas materiais do que aconteceu com Mazas. O filme oferece poucas respostas, mas faz muitas perguntas e termina de uma maneira que impele o espectador a refletir sobre o assunto enquanto a folclórica canção “Suspiros de España”, de Antonio Álvarez Alonso, ainda ecoa.
Sobre a estética cinematográfica, os destaques são a quebra de linearidade, estruturada a partir de flashbacks, e a fotografia sobre a qual incide pouca luminosidade dando a ideia do quão a Guerra Civil Espanhola é um trauma histórico obscuro; um acontecimento com riqueza de detalhes desconhecidos pela população.