David Arioch – Jornalismo Cultural

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Knut Hamsun, o escritor norueguês que influenciou outros importantes nomes da literatura

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Håndkolorert dias. Forfatterene Knut Hamsun og Marie Hamsun står foran en stor høysåte sammen med en hund. *** Local Caption *** Hamsun, Knut, forfatter (1859-1952) Hamsun, Marie, forfatter (1881-1969)

Knut Hamsun foi um escritor norueguês que influenciou e inspirou Franz Kafka, Thomas Mann, Hermann Hesse, Isaac Bashevis Singer, Ernest Hemingway, H.G. Wells, Stefan Zweig e Charles Bukowski, entre outros escritores. Para quem não conhece o trabalho dele, sugiro que leiam “Fome”, “Pan” e “Um Vagabundo Toca em Surdina”. Hamsun era um autor bastante controverso, que nunca fez questão de velar a sua simpatia por um tipo telúrico de anti-civilização.

Ser tímido

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Kafka, por exemplo, era tímido, e sua força literária tinha relação com a sua timidez (Foto: Reprodução)

Não vejo como ser tímido pode ser tão ruim. Muito do que faço na minha vida tem justamente a timidez como motriz. As pessoas subestimam a timidez quando a relacionam apenas aos aspectos negativos da vida em sociedade. Pessoas tímidas naturalmente ouvem mais e observam mais. Também refletem muito.

Kafka, por exemplo, era tímido, e sua força literária tinha relação com a sua timidez. Hermann Hesse, William Faulkner, Edgar Allan Poe, Marcel Proust, Emily Dickinson, Emily Brontë, George Bernard Shaw, Hunter Thompson e Nathaniel Hawthorne também eram tímidos. São nomes que hoje ocupam posição de destaque na literatura mundial. Logo ser tímido não é uma forma de fracasso.

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Romain Rolland: “Milhares de animais [atualmente milhões] são assassinados todos os dias, sem sombra de remorso”

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“Ele tentava elevar a própria fronte, gemendo como uma criança, balindo e pendendo a língua cinza”

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Rolland também dedicou sua vida à defesa dos direitos dos animais e da dieta vegetariana (Foto: Reprodução)

Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1915, o escritor francês Romain Rolland, autor de “Jean-Christophe”, um dos romances mais importantes do século 20, também dedicou sua vida à defesa dos direitos dos animais e da dieta vegetariana. Importante pensador, Rolland influenciou Sigmund Freud e se tornou amigo de Mahatma Gandhi. Em 1922, o alemão Hermann Hesse, também vencedor do Nobel de Literatura, dedicou o livro “Sidarta”, um dos romances mais espiritualistas da literatura mundial, ao seu querido amigo Romain Rolland.

“Milhares [atualmente milhões] de animais são desnecessariamente assassinados todos os dias, sem sombra de remorso. Se alguém fizesse menção a isso, seria considerado ridículo. Por isso esse crime é imperdoável”, escreveu Romain Rolland no romance “Jean-Christophe”, publicado em dez volumes entre os anos de 1904 e 1912. Na obra com viés autobiográfico, o autor francês narra a história de um gênio musical alemão que adotou a França como lar. A partir daí, ele sincretiza suas visões musicais, questões sociais, internacionalismo humanista e direitos dos animais.

“Ele não podia mais suportar ver uma das cenas mais ordinárias que testemunhara centenas de vezes – um bezerro chorando em uma cesta de vime, com seus grandes olhos salientes, seus tufos brancos encaracolados sobre a testa, seu focinho roxo e suas pernas dobradas. Havia um cordeiro com as quatro pernas amarradas sendo transportado por um camponês. Pendurado de cabeça para baixo, ele tentava elevar a própria fronte, gemendo como uma criança, balindo e pendendo a língua cinza. Havia aves amontoadas em uma cesta e podia-se ouvir ao longe os guinchos de um porco sangrando até a morte, além de um peixe a ser limpo em uma cozinha”, registrou Rolland em “Jean-Christophe”.

Em 1886, o que o influenciou a se tornar vegetariano e a adotar um estilo de vida frugal foi a obra “O que devemos fazer”, de Liev Tolstói, em que o escritor russo aborda a miséria, as desigualdades e os índices de mortalidade nas grandes cidades. Tolstói se questionava sobre finalidade do dinheiro e a divisão do trabalho, além de criticar o sistema político vigente. Ao saber que o escritor russo, um tradicional aristocrata, adotou o vegetarianismo e optou por trabalhar com camponeses, Roland enviou-lhe uma carta e obteve uma longa e alentadora resposta.

Mais tarde, inspirado pela filosofia vedanta, e principalmente pelas obras de Swami Vivekananda, um dos responsáveis pela introdução da vedanta e do yoga no Ocidente, Romain Rolland, um jovem exigente e tímido, se empenhou na redescoberta de si mesmo. Embora trabalhasse como professor, não gostava de lecionar. Sua vocação e satisfação maior era a escrita, tanto que em 1912, quando conseguiu garantir uma renda mensal modesta com a literatura, a sua primeira decisão foi pedir demissão do cargo de professor.

Pacifista ao longo de toda a sua vida, Romain Rolland protestou contra a Primeira Guerra Mundial. Quando se mudou para a Suíça, ele escreveu “Au-dessus de la mêlée”, uma crítica à guerra, publicada no Jornal de Genebra em 22 de setembro de 1914. Dez anos depois, lançou seu livro sobre o líder indiano Gandhi, de quem se tornou amigo em 1931, após o primeiro encontro dos dois. Em 1923, Rolland começou a se corresponder com o austríaco Sigmund Freud, criador da psicanálise. Os dois tinham grande admiração um pelo outro, tanto que em uma das cartas, Freud admitiu: “Trocar uma saudação com você continuará a ser uma feliz memória até os meus últimos dias.”

O escritor francês foi inspirado pela filosofia oriental (Foto: Reprodução)

O escritor francês foi inspirado pela filosofia oriental (Foto: Reprodução)

Estudioso do misticismo oriental, Romain apresentou a Sigmund Freud, com quem se correspondeu por mais de 15 anos, o conceito de “sentimento oceânico”, uma impressão de vínculo e comunhão com o mundo, desenvolvido através de suas pesquisas. Mais tarde, o austríaco publicou em 1929 o livro “Civilizações e Seus Descontentes”, que traz logo nas primeiras páginas um debate sobre a origem desse sentimento. Depois de ler a obra “O Futuro de uma Ilusão”, Rolland fez algumas observações que serviriam como premissa para Freud escrever “O Mal-Estar na Civilização”. O escritor francês exerceu influência sobre o austríaco e suas obras até 1939, quando Sigmund Freud faleceu.

Em 1928, Rolland e o filósofo húngaro e pesquisador da vida natural, Edmund Bordeaux Szekely, fundaram a Sociedade Biogênica Internacional com a intenção de expandir suas ideias sobre a integração entre mente, corpo e espírito. A instituição advogava em favor do estilo de vida simples e da alimentação vegetariana.

“As torturas inomináveis que os seres humanos infligem a essas criaturas inocentes fez seu coração doer. Concedendo aos animais um raio de razão, imagine o quanto o mundo pode ser um pesadelo terrível para eles. Um sonho com homens de sangue frio, cegos e surdos cortando suas gargantas, abrindo-as, eviscerando-os, fatiando-os, cozinhando-os vivos e às vezes rindo da forma como eles se contorcem de agonia. Existe algo mais atroz entre os canibais da África?”, escreveu Romain Rolland em “Jean-Christophe”.

O escritor francês foi uma das principais inspirações da ativista canadense Anita Krainc, co-fundadora do movimento vegano Toronto Pig Save, que em 22 de junho de 2015 foi presa após dar água a porcos confinados em um caminhão a caminho de um matadouro na Grande Toronto.

Romain Rolland e a internacionalização do humanismo

Nascido em Clamecy, Nièvre, em 29 de janeiro de 1866, o escritor francês veio de uma família diversificada, formada por grandes investidores da área urbana e pequenos agricultores. Na Escola Normal Superior de Paris, Romain Rolland estudou filosofia, mas desistiu porque não gostou do viés ideológico e impositivo do curso. Por isso optou por se graduar em história.

Rolland com Mahatma Gandhi, de quem se tornou amigo, em 1931 (Foto: Reprodução)

Rolland com Mahatma Gandhi, de quem se tornou amigo, em 1931 (Foto: Reprodução)

Em 1889, se mudou para Roma, onde viveu dois anos e se tornou amigo da escritora alemã Malwida von Meysenbug, amiga do filósofo Friedrich Nietzshe e do compositor Richard Wagner. As ideias de Rolland, aliadas aos ensinamentos de Liev Tolstói e as lições de Malwida, moldaram sua visão política e humanitária, internacionalizando suas ideias.

De volta à França em 1894, Rolland obteve seu título de doutorado com a tese “A Origem do Teatro Lírico Moderno – A História da Ópera antes de Lully e Scarlatti”. Ao longo de 20 anos, lecionou em vários liceus de Paris, até que foi nomeado diretor de educação musical da Escola de Estudos Sociais Avançados entre os anos de 1902 e 1911. Em 1903, também assumiu a primeira cadeira de história da música da Sorbonne.

Seu primeiro livro foi publicado em 1902, aos 36 anos, quando ele estudava o teatro popular e defendia a democratização do teatro. No ensaio “Le Théâtre du peuple”, publicado em 1913, Romain Rolland diz que o palco e o auditório devem sem abertos para as massas. “Precisamos que o teatro seja assistido pelo povo, mas antes temos que criar algo que seja voltado para eles”, sugeriu.

Como humanista, também abraçou o trabalho dos filósofos da Índia. Muitas de suas pesquisas foram registradas oralmente, através de conversas com Rabindranath Tagore e Mahatma Gandhi. Místico, Rolland enxergava a si mesmo como alguém com uma ancestralidade muito curiosa, e isto o inspirou a escrever a novela Colas Breugnon, publicada em 1919. Em seguida, vieram “Clérambault” e “Pierre et Luce”, de 1920; além do seu segundo romance de sete volumes – “L’âme Enchantée”, escrito entre os anos de 1922 e 1933.

Na primavera de 1919, o francês convidou o escritor irlandês George Bernard Shaw, também vegetariano e pacifista, para assinar uma petição em favor da paz. Rolland também se correspondeu com Albert Einstein, e juntos fundaram um comitê antifascista. Em 1920, o escritor francês retomou seus estudos sobre a filosofia mística da Ásia, especialmente da Índia, o que rendeu uma biografia sobre Gandhi, publicada em 1924.

Dois anos depois, ele se aprofundou nos estudos sobre o yoga e lançou as biografias dos gurus Vivikananda e Ramakrishina.  Em 1932, ingressou no Comitê Mundial Contra a Guerra e o Fascismo, organizado por Willi Münzenberg. Depois se mudou para Villeneuve, às margens do Lago Genebra, no cantão de Vaud, e se entregou ainda mais à escrita.

Em 1935, Romain Rolland viajou para Moscou, a convite do escritor russo e também vegetariano Maxim Gorky. Como um tipo de embaixador dos artistas franceses na União Soviética, ele tentou convencer Josef Stalin a parar com a repressão contra seus opositores. Chegou a pedir clemência para o escritor anarquista Vicor Serge. Em 1937, Rolland retornou para Vézelay, uma comuna francesa da Borgonha, ocupada pelos nazistas em 1940. Se isolou e seguiu produzindo em ritmo intenso, até que faleceu em 30 de dezembro de 1944.

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Em 1966, a União Soviética lançou um selo comemorativo no centenário de nascimento de Romain Rolland. A homenagem foi justificada como um tributo aos nobres ideais de sua produção literária, e ao amor e a simpatia com a qual ele descreveu os mais diferentes seres vivos.

Romain Rolland também escreveu biografias sobre Beethoven, publicada em 1903; Hugo Wolf, em 1905; Michel-Angelo, em 1906; e Tolstói, em 1911.

Seu grande amigo, o escritor austríaco Stefan Zweig lançou a biografia “Romain Rolland – The Man and his Work” em 1921.

Frase célebre de Romain Rolland

“O pessimismo da inteligência não deve abalar o otimismo da vontade.”

Referências

Rolland, Romain. Jean-Christophe (1904-1912). Editora Globo (1986).

Zweig, Stefan. Romain Rolland – The Man and his Work (1921). Disponível em archive.org.

Cruickshank, John. Rolland, Romain. The Penguin Companion to Literature 2: European Literature. Harmondsworth: Penguin (1969).

Parsons, William B. The Enigma of the Oceanic Feeling: Revisioning the Psychoanalytic Theory of Mysticism. Nova York. Oxford University Press (1999).

Bradby, David. Rolland, Romain. The Cambridge Guide to Theatre. Cambridge University Press (1998).

Hermann Hesse e a política

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“A política implica em tomar partido e ser partidário se opõe ao humanitarismo”

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Hesse deixou claro que sua identidade de escritor o impedia de se ver como alguém engajado politicamente (Foto: Hermann Hesse Stiftung)

Ao contrário de muitos escritores, o célebre autor alemão Hermann Hesse  jamais se envolveu com política partidária. Em 1917, quando tinha 40 anos, e influenciado pelo contexto da época, Hesse deixou claro que sua identidade de escritor o impedia de se ver como alguém engajado politicamente, na literalidade. “Minha tentativa de desenvolver um gosto por assuntos políticos fracassou”, escreveu em carta que integra o acervo da Hermann Hesse Stiftung.

Ainda assim, anos antes, em 1912, o escritor alemão já não estava satisfeito com os rumos do Império Alemão, sob comando do kaiser Guilherme II, e decidiu se tornar o primeiro emigrante voluntário do país, mudando-se para a Suíça – um desejo também reforçado por conflitos familiares abarcando religião.

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“Humanitarismo e política, é praticamente impossível servir as duas ao mesmo tempo” (Foto: Hermann Hesse Stiftung)

Após o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, Hesse recebeu inúmeros convites para assumir cargos políticos na República Soviética da Baviera (Räterepublik) – todos foram declinados. Mais tarde, questionado sobre o motivo de jamais ter aceitado uma das ofertas, ele justificou: “Não me identifico com a política. Caso contrário, eu teria me tornado um revolucionário. Não tenho nenhum outro desejo em vida que não seja encontrar o meu próprio caminho, a minha espiritualidade.”

No entanto, segundo o escritor alemão Paul Noack, estudioso das obras de Hesse, isso não é motivo para criticá-lo, já que ele não era apolítico. A maior prova disso foi o seu comprometimento com a humanidade e o humanitarismo. “Humanitarismo e política são questões mutuamente exclusivas. Ambos são necessários, mas é praticamente impossível servir aos dois ao mesmo tempo. A política implica em tomar partido e ser partidário se opõe ao humanitarismo”, argumentou Hesse, um defensor da paz.

No início da Primeira Guerra Mundial, de acordo com informações da Hermann Hesse Stiftung, o escritor resistiu como um dos poucos intelectuais alemães que não se deixou levar pelo entusiasmo geral da guerra. Inclusive, entre 1914 e 1918, Hermann Hesse publicou dúzias de ensaios criticando as beligerâncias em jornais de língua alemã. Se engajou tanto em causas humanitárias que em 1915 ajudou a criar em Berna, na Suíça, um centro de bem-estar para prisioneiros de guerra.

Um dos primeiros críticos do nazismo, viu seus livros serem qualificados pelo Terceiro Reich como “indesejáveis”. Não chegaram a ser banidos da Alemanha, mas deixaram de ser publicados no país. Quem também se juntou a Hermann Hesse na época foi o ilustre Thomas Mann – autor de clássicos como “A Montanha Mágica”, “Os Buddenbrooks” e “Morte em Veneza”. Além disso, Hesse ajudou financeiramente muitos refugiados alemães.

No final da Segunda Guerra Mundial, tentando se valer do prestígio do escritor, a União Soviética, os Estados Unidos e a Inglaterra tentaram convencê-lo a se envolver na coordenação de uma ofensiva de paz. “Eu não sou amigo da guerra e não sou amigo dos Estados Unidos. Também não sou amigo da mentira e do uso de meios impróprios nas lutas políticas. Eu não lutaria nem por Truman nem por Stalin”, garantiu. E manteve a palavra até o dia 9 de agosto de 1962, quando faleceu aos 85 anos, em Montagnola, na Suíça.

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Hermann Hesse é conhecido por obras como “O Lobo da Estepe”, “Sidarta”, “Demian”, “Narciso e Goldmund”, “Peter Camenzind” e “O Jogo das Contas de Vidro”,

No dia 14 de novembro de 1946, o escritor foi contemplado com o Prêmio Nobel de Literatura.

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Hermann Hesse e o gato Narziss

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Hesse sentia-se como uma criança perto de Narziss (Acervo: Arquivo Suíço de Literatura)

Hesse sentia-se como uma criança perto de Narziss (Acervo: Arquivo Suíço de Literatura)

Embora seu comportamento ostracista fosse bastante conhecido, já que Hermann Hesse não gostava de receber visitas, o escritor alemão, radicado na Suíça, tinha uma cativante predileção por gatos. Um de seus grandes amigos em uma produtiva fase de sua vida era o gato Narziss (Narciso) que o fazia sentir-se como uma criança, um espírito livre alheio à idade e ao tempo.

Seu companheiro inclusive partilhava do mesmo nome de um dos protagonistas da obra Narziss und Goldmund, um noviço e racional literato. Na obra publicada em 1930, curiosamente há três analogias e referências poéticas aos felinos:

“Quando sentiu as mãos sobre ela, suas delicadas mãos suaves tão cheias de sentimento, algo que ela nunca tinha sentido antes, sua pele tremeu e sua garganta soou como o ronronar de um gato.”

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Hesse tinha uma cativante predileção por gatos (Acervo: Arquivo Suíço de Literatura)

“A fim de acalmá-la, Goldmund suavemente esfregou sua bochecha contra seu cabelo e acariciou seu quadril e joelho com uma mão tranquila, da mesma forma que um gato faz carícias.”

“O rosto não disse nada, mas a postura e os punhos cerrados disseram muito: incompreensível sofrimento, luta infrutífera contra a inédita dor. Ao lado de sua cabeça, um buraco de gato fora aberto na porta.”

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Written by David Arioch

February 25th, 2016 at 11:31 pm

Enquanto o ônibus não chega

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A rodoviária desapareceu do meu campo de visão e me senti na orla da existência terrena

Fui até o ponto de vendas da Viação Garcia e comprei uma passagem para Nova Esperança (Foto: Reprodução)

Fui até o ponto de vendas da Viação Garcia e comprei uma passagem para Nova Esperança (Foto: Reprodução)

Num final de tarde de novembro de 2004, quando eu cursava o penúltimo ano de jornalismo, caminhei a pé da faculdade até a Rodoviária de Maringá, na Avenida Tuiuti. A garoa caía fria, amenizando o calor irradiado pelos meus pés. Chegando lá, fui até o ponto de vendas da Viação Garcia e comprei uma passagem para Nova Esperança. A atendente me disse que o ônibus metropolitano atrasaria uma hora ou uma hora e meia porque um dos carros quebrou perto de Presidente Castelo Branco.

Como eu estava longe de casa desde às 6h, não gostei do que ouvi. Circulei pelo pátio, olhei alguns assentos e me imaginei deitado sobre eles, dormindo até a hora do embarque. A ideia rapidamente foi ofuscada pela franca possibilidade de eu perder o ônibus e ainda ser assaltado. Então fui até o banheiro, onde o zelador que despejava o sabonete líquido dos refis me observou de uma forma que pensei que tivesse algo de muito errado com minha aparência. Me aproximei do espelho e não notei nada. Lancei bastante água fria sobre o rosto, tentando afastar o sono e a letargia que me dominavam. Depois ajeitei os cabelos longos e pretos atrás da orelha e me dirigi até a lanchonete.

Pedi um salgado assado recheado com palmito e uma garrafa de água mineral. Comi tranquilamente, alheio às conversas ao meu redor e também à grande TV em volume alto transmitindo um jogo de futebol pela ESPN. Divagando, me recordei que a Editora Escala ainda comercializava a coleção “Grandes Obras do Pensamento Universal”. Me agradava a ideia de comprar livros feitos com papel reciclado por não mais do que R$ 7, se encaixando no meu orçamento. Caminhei poucos metros até a banca de jornais e revistas e contei pelo menos 10 títulos de meu interesse. Filosofia me apetecia muito à época. Escolhi “Cartas Persas”, de Montesquieu; “A Gaia Ciência”, de Nietzsche; e “Ensaio Sobre a Liberdade”, de Stuart Mill. Gastei menos de R$ 20, guardei meus novos livros na mochila e inquieto percorri todos os cantos do pátio até a estafa me consumir pela segunda vez.

Diante da plataforma, sentei numa poltrona fria e abri a mochila enquanto choros e gritos de crianças ecoavam por todas as direções. Algumas queriam dormir, outras pediam doces e brinquedos das lojas. Fechei os olhos por alguns segundos, restabeleci a serenidade e abri o livro “Demian”, do alemão Hermann Hesse, um de meus autores preferidos de todos os tempos, que dialogava com minha humanidade juvenil, conflituosa e existencialista mais do que qualquer outra pessoa. Exatamente na página 28, assim que li o trecho “O fim daquele suplício e a minha salvação me chegaram de onde menos esperava, e com isso entrou em minha vida algo novo, algo que até hoje continua atuando sobre mim”, uma moça da minha idade, de aproximadamente 1,68m, pele alva e coruscante como as pétalas de uma margarida, cabelos castanho-claros e olhos que fulguravam a beleza e transparência de um topázio amarelo, sentou-se ao meu lado, mantendo sobre o colo um exemplar de “Viagem ao Oriente”, do mesmo autor.

A observei furtivamente e continuei minha leitura por pouco tempo. Perdi a concentração ao sentir que seu corpo exalava um perfume que era um paradoxo em essência, um bálsamo suave de frutos silvestres. Sem saber, ela me conduziu a um bosque etéreo, onde a natureza suspensa de suas ramas me cobria com uma luz morna e serena. “Lá estava o mundo ofertando-se por completo diante dele. Voltava com novas cores, cheios de vida, pertenciam-no e falavam sua linguagem. Tinha o mundo inteiro em seu coração e cada uma das estrelas do céu resplandecia nele e irradiava prazer em toda sua alma”, murmurava minha mente, parafraseando fragmentos da página 132 de “Demian”.

Antes de dizer oi, como se acompanhasse minhas reflexões, a jovem ao meu lado comentou que um novo raio de luz se voltava para ela. “Sinto uma alegria aprazível, patente e sem discórdias, coisas que duram breves minutos ou longas horas”, sussurrou, também citando “Demian”, me surpreendendo a ponto de meus olhos se agigantarem em espavento. A cada palavra, seu sorriso iluminava e aquecia meu rosto, contagiado por satisfação que intrigava e alimentava minha substância. Nos cumprimentamos e perguntei seu nome. Com expressão enigmática, me respondeu que era Gertrude. “Sendo assim, o meu é Kuhn”, declarei com um sorriso enviesado seguido por uma rara gargalhada que atraiu a atenção até de estranhos. Numa brincadeira singela, condutora do desconhecido, nos apresentamos com nomes de personagens indissociáveis da novela Gertrude, de Hesse, transpondo para o mundo material um pouquinho da emoção, espiritualidade e motivação que inebriam os seres humanos imersos na sua ficção.

Não perguntei nem especulei nada sobre sua vida e ela fez o mesmo. Apenas seguimos mergulhados em um mundo totalmente nosso. Em menos de meia hora, eu já pouco enxergava além de seus olhos. A rodoviária desapareceu do meu campo de visão e me senti na orla da existência terrena, sobre uma ponte que vibrava, atraindo meus pés para um quinhão distante, que se projetava para dentro e para fora de mim, fazendo meu coração rufar. Como passatempo, ela sugeriu recriarmos “Gertrude” com base em nossos anseios, desconsiderando o que Hesse teria feito ou pensado. Assim a história renascia através da nossa oralidade. Eu falava por Kuhn e ela por Gertrude. Imaginei mais tarde que ao nosso redor parecíamos dois jovens alucinados, o que não nos incomodava nem um pouco. Nos confortávamos com a completude do momento.

Quando o ônibus chegou, entramos e caminhamos até as últimas poltronas à direita. O veículo estava quase vazio. Ela sentou ao meu lado e tirou algumas folhinhas verdes que se fixaram no meu cabelo como presente de uma brisa. Logo começou a esfriar, e o céu enturvecido fez a noite precoce suplantar o horário de verão. Então tirei uma blusa da minha mochila e ela a vestiu. Sem dizer palavra, escorou a cabeça em meu ombro e assistimos a chuva paulatina escorrer pela janela. Como havia poucos passageiros, ouvíamos até os sons estalados dos pneus do ônibus em atrito com a água. A luz que inexistia lá fora, crescia dentro de nós, iluminando tudo aquilo que a visão ignora na superficialidade. Definitivamente o mundo era um lugar diferente.

Gertrude dormia segurando minha mão esquerda, trazendo no rosto uma expressão maviosa que principiava um sorriso. Seus cabelos claros se misturavam aos meus mais escuros que a noite, por ora, grafitada. Seu perfume atuava sobre mim como um fruitivo calmante que harmonizava o ritmo do meu coração. Em Nova Esperança, a chuva se dissipou. Ela acordou e desembarcamos na rodoviária. Não havia conexão para Paranavaí e tivemos que esperar um ônibus convencional da Garcia que chegaria em 40 a 50 minutos. O lugar estava deserto, tanto que ouvi sons de latões de lixo revirados por andarilhos. Gertrude se aproximou de um cãozinho sujo e lhe acariciou a cabeça e a barriga até que ele deitou no pátio da rodoviária com ar de satisfação e as patas apontadas para cima. “O nome dele poderia ser Knulp. É simples, tem jeito de viajante e tenho certeza que não se importa com nada daquilo que motiva a ganância humana”, brincou Gertrude, citando outro personagem de Hesse, e me abraçando contra uma pilastra.

Mantendo meu queixo levemente encostado sobre sua cabeça, em meio ao silêncio notívago, eu ouvia sua respiração e ela a minha. Ficamos assim até a chegada do ônibus. Sentamos nas primeiras poltronas e ela voltou a encostar sua cabeça em meu ombro. Lá fora, assistíamos o estoico contraste da miséria humana. Em Alto Paraná, um rapaz acompanhado de três amigos em um Alfa Romeo Visconti arremessava garrafas long neck contra as placas de sinalização. Na mesma avenida, logo atrás, um homem de mais de 80 anos, com um problema de coluna tão severo que suas costas formavam um arco, recolhia as garrafas que caíam inteiras. Antes de chegarmos a Paranavaí, Gertrude já tinha se aninhado em meu peito. Quando passamos pela polícia rodoviária, perguntei onde ela morava e me disse que iria passar a noite em um hotel, retornando para casa pela manhã. Não entendi o motivo, mas respeitei sua decisão. Afinal, não queria ser visto como intrometido. Na Avenida Heitor de Alencar Furtado, contei que eu desceria no cruzamento com a Rua Antenor Grigoli, e apontei com o dedo o meu destino.

Assim que me levantei, Gertrude segurou minha mão e, com olhos vibrantes, pediu que eu a acompanhasse. Descemos na Avenida Paraná e fomos para um hotel na Rua Getúlio Vargas. Por sorte, ainda havia uma suíte disponível. Subimos, tomamos banho e passamos a noite juntos, nos redescobrindo nas nossas particularidades. Minha voz começava onde a dela terminava, e tudo que emanava de sua natureza floreava a minha própria. Antes de sermos vencidos pelo sono, enquanto ela repousava sobre o meu peito, deslizei as pontas dos dedos das minhas duas mãos pelo seu rosto delicado e, observando atentamente seus olhos dourados, falei: “Há que se ver no olhar o reflexo de um mar que corre calmo e se arrebata com o aroma mais sereno trazido pelo ar. Acho que nem tudo na vida precisa de nome ou de definição. Se estamos aqui agora é o que importa, essa existência rara de uma conexão.”

Ela sorriu, tapou meus olhos com uma de suas mãos miúdas e percorreu meus lábios com os dedos da outra. Depois se aconchegou entre meus braços e dormimos. Pela manhã, por volta das 8h, senti o sol invadindo a janela e iluminando o quarto. Gertrude não estava mais lá. Vesti minhas roupas e desci até a recepção. Ela pagou a conta do hotel, partiu e pediu ao recepcionista que me entregasse um envelope. Numa folha de caderno, confidenciou que não tinha parentes em Paranavaí, que sequer conhecia a cidade. Somente quis me acompanhar e passar pelo menos uma noite comigo, entregue a algo que segundo ela era mais verdadeiro do que a própria vida.

“Me pergunto às vezes quantas pessoas vêm e vão sem se calar o suficiente para ouvir o som do próprio coração. Tanta gente impaciente buscando profundidade em águas rasas, forçando a semeadura de frutos em árvores desfalecidas. Amam o que não amam e amargam na própria essência a dor da falta de vigor. Distante das aparências, choram caladas porque escolheram o pouco que se revestia de muito, o desespero que se travestia fortuito. Numa noite, tive com você o que muitas pessoas nunca tiveram ao longo da vida. Isso é amor em forma inominada, livre, isento, sem rótulos, que reafirma a ideia de que a vida vale a pena até na efemeridade das horas. Somos feitos de lembranças, de momentos e experiências, não de coisas, alianças e convenções sociais. Me perdoe, eu queria muito te ver novamente, mas não posso. Só que nunca esqueça que a ti carregarei pra sempre em meu ser”, escreveu.

Meu coração disparou e minhas mãos tremularam. Voltei pra casa e passei meses sentindo o perfume da tão conhecida e tão desconhecida Gertrude em meu corpo. Ocasionalmente sua voz se projetava no horizonte da minha mente, onde sua frase final dulcificava um eterno poente. “Ficava-lhe a consolação de encontrando-se, por assim dizer, do lado de fora da vida, poder apropriar-se dela e absorvê-la toda de um trago. Restava-lhe a singular e livre paixão de contemplar e observar…Seu destino era, pois, seguir sua estrela, que não reconhecia desvios em seu curso”, registrou, em referência ao final de Rosshalde, de Hesse, que também era o nosso próprio fim.

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Hermann Hesse se correspondia com mais de seis mil leitores

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Hermann Hesse preferia se comunicar por cartas (Foto: Reprodução)

Embora ostracista, o escritor alemão Hermann Hesse, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1946, se correspondia com pessoas do mundo todo. Às vezes, mais de 1/3 do seu dia era dedicado a responder cartas. Ao longo da vida, recebeu mais de 20 mil correspondências de mais de seis mil remetentes de 100 países, segundo o Arquivo Suíço de Literatura. Todas foram respondidas por Hesse que curiosamente não gostava de visitas. O escritor é famoso por obras que se tornaram clássicos da literatura mundial, como “Demian”, “Sidarta”, “O Lobo da Estepe”, “Narciso e Goldmund” e “O Jogo das Contas de Vidro”.

Written by David Arioch

November 11th, 2012 at 11:52 am